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On-line ISBN 85-86736-12-0
On-line ISBN 85-86736-12-0
An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002
A educação moral e o tempo pedagógico perdido.
The moral education and the "lost pedagogical time"
Rogério Rodrigues
Universidade Federal de Itajubá. e-mail: rogerio@efei.br
RESUMO
O objetivo deste estudo é analisar como a educação escolar utiliza o "tempo pedagógico". Usualmente, há nas escolas, uma ênfase no controle do corpo ao invés da transmissão da cultura. Isso resulta em um "tempo pedagógico perdido", o qual tem diversas implicações educacionais.
Palavras-chave: Educação; Psicanálise; Ética
ABSTRACT
This research aims to analyze how the school education uses the "pedagogical time". Usually, is emphasized in the schools, the control of the body, and not the transmission of the culture. It results in a "lost pedagogical time", having many educational implications.
Key-words: Education; Psychoanalysis, Ethics.
O "aparelho escolar" poderá funcionar no sentido de cumprir o papel de educar as "crianças do futuro". Mesmo que a escola seja uma instituição normativa há uma esperança de que no seu interior opere a transmissão dos conhecimentos básicos da ciência. Entretanto, a escola cada vez mais torna-se um "aparelho" exclusivamente educador da norma. O tempo de permanência na escola, na maioria dos casos, é apenas organizado para manter alunos e professores confinados na sala de aula.
Sobre o tempo que é "inutilmente perdido" no interior da escola podemos nos referir ao relato de uma jovem adolescente. Certa vez quando essa jovem acabara de chegar da escola perguntei-lhe como tinham sido suas aulas naquele dia. Ela respondeu prontamente: "Hoje, na escola, não tivemos nada. A professora das duas primeiras aulas faltou e todas as outras aulas eram de matemática". Acabei por indagá-la: "Então você teve as aulas de matemática?" Ela me respondeu em seguida: "Não! Não tivemos nada. O professor de matemática não fazia nada. Ele é muito estranho. O tempo todo ficou sentado na sua cadeira e olhava para nós com um jeito ‘meio esquisito’. Ele não falava nada". Em seguida eu perguntei: "O que os alunos ficavam fazendo?" Ela respondeu: "Nós ficamos apenas conversando e algumas vezes, quando o barulho na sala aumentava, ele fazia: psiu, psiu, psiu. Esse professor é muito estranho".
Essa jovem durante e, principalmente, em seguida ao seu relato de toda a história, deu várias risadas sobre as atitudes "estranhas" do professor. Tudo indica que o professor, efetivamente, não sabe o que fazer perante a sala de aula e isso pode ser algo "cômico". Entretanto, é oportuno nos perguntarmos do que ela estaria, efetivamente, rindo: seria de sua própria tragédia em "perder" o tempo precioso de sua adolescência na escola? O seu riso, também, poderia ser uma forma de lidar com a tragédia do professor que é impotente para fazer algo com o tempo pedagógico que lhe é designado para trabalhar com os alunos? Tanto uma coisa como outra, sinalizam que a permanência na escola é algo que anula o desejo, pois, obrigatoriamente, todo o tempo pedagógico deve ser preenchido com atividades escolares. Compreende-se que o ambiente escolar é um lugar onde professor e aluno não podem ficar sem ter o que fazer. Vive-se na escola um "tarefismo pedagógico".
O fato de a aluna defrontar-se com o "professor de matemática que não fazia nada" pode proporcionar o tempo para a manifestação do seu próprio desejo. Ela vivencia isso como um sentimento de estranhamento e conflito, pois prefere subordinar-se ao mando o outro é quem sabe , a ter que defrontar-se com sua própria vida e decidir sobre ela o seu não saber. Assim sendo, ela não consegue elaborar sua própria condição de espectadora das tragédias da vida, qual seja, a de ter que assumir suas próprias "responsabilidades" pelo uso do tempo e abandonar o estado de submissão ao mando de um outro que supostamente sabe o que, pedagogicamente, se deve fazer na escola. Considera que o professor é "esquisito", mas quem se sente "esquisita" é ela própria, pois uma vez que o mesmo não propõe nenhuma tarefa, a deixa sem condições de anular-se enquanto sujeito moral e a permite viver a tragédia de defrontar-se com o seu próprio estado de liberdade no ambiente escolar.
Poderíamos apenas pensar no caso dessa jovem cujo motivo de seus risos foram as atitudes "estranhas" do professor. Todavia, seus risos podem ser considerados como a descarga de algo que não pode ser muito bem compreendido e significado pelo seu próprio ser. Diríamos que as atitudes "esquisitas" do seu professor lhe causam algum "mal-estar". Essa jovem poderia ter uma certa esperança na escola, no entanto, encontra no interior desta as horas de tempo "perdido" pedagógico e, simbolicamente, não consegue elaborar o sofrimento de seu próprio confinamento: sem ter o que fazer a não ser pensar.
A atitude do "professor de matemática em não fazer nada", com tantas horas pedagógicas perdidas é oportuna para questionarmos a "verdadeira" função da escola. A escola é designada para educar as "crianças do futuro"; contudo, não estaria ocorrendo uma alteração do papel principal de transmissão da cultura e secundário do controle dos corpos, para o papel principal do controle dos corpos e secundário da transmissão da cultura? Tudo indica que temos uma inversão na escola, pois o surgimento do tempo pedagógico perdido torna a transmissão da cultura em algo secundário. A partir dessa perspectiva, todas as "esquisitices" do professor assumem um significado, pois parecem resultar de uma intenção declarada de somente querer domesticar, mais precisamente, controlar os corpos das "crianças do futuro". Assim sendo, o riso da jovem seria uma descarga dessa "experiência psíquica" em defrontar-se com um educador físico que submete seu tempo e desejo a uma atividade desnecessária para sua formação cultural, mas, por outro lado, totalmente necessária para a anulação de seu próprio ser.
Com o riso a jovem poderá encontrar uma defesa e, quem sabe, uma possibilidade de amenizar sua angústia catastrófica de sentir a vida não vivida do seu próprio ser. Todavia, a experiência escolar do tempo pedagógico perdido é implacável em seu objetivo, ou seja, educa-se para a normalidade e, simultaneamente, para se evitar a formação dos anormais mesmo que isso implique na anulação da existência do "ser".
Podemos afirmar que o relato dessa jovem sobre as "esquisitices" de seu professor apresenta um total desmascaramento da função da escola. Poderíamos dizer que essa aluna teve todas as aulas? Diríamos que sim, pois perante a burocracia escolar sua carga horária foi rigorosamente cumprida, totalizando a somatória das horas de seu tempo pedagógico. Poderíamos, até mesmo discordar disso, afirmando que as aulas de matemática não foram "corretamente" ministradas. Contudo, não podemos deixar de indicar que ela e seu professor tiveram um outro tipo de atividade que é estritamente educativa: disporem de seus tempos e submeterem seus desejos em detrimento da formação de um determinado tipo normal de sujeito. A escola deixa de ser um lugar de um encontro ético e torna-se apenas especializada em formar o sujeito moral, no qual professor e aluno submetem o tempo e o desejo para receberem algo em troca, que nesse caso específico, respectivamente, são salário e certificado de conclusão. É preciso abandonar essa situação de uma educação moralizante com uma simples pergunta: o que o professor e os alunos esperam desse encontro? Seria apenas a presença física de ambos no interior da escola? Tudo indica que este é o elemento principal, pois o "aparelho escolar" especializou-se em controlar a presença dos professores e alunos. Contudo, qual seria o elemento primordial para o funcionamento de uma escola pautada na ética?
Para compreendermos o que seria a formação do sujeito ético não é tão simples. Diríamos apenas que este possui um estreito vínculo com a "verdade". Mas, nada e nem ninguém pode efetivamente afirmar o que seria a "verdade". Sendo assim, o sujeito ético não possui uma condição a priori que fundamenta sua ação. O sujeito ético difere completamente de uma prática normativa, pois defronta-se com o seu estado de liberdade sem estar subjugado ao campo da moral, ou até mesmo, à vontade de um outro.
Para Leandro de Lajonquière (1999 a) a ética é negativa, pois é uma exigência sobre o que não se pode fazer. A moral é positiva, pois implica em apenas afirmar que se pode fazer. Dois casos podem apontar diretamente para a seguinte situação: os normais são presos no "ser em si" (Cf. Sartre, 1997) atuam numa "má-fé", e portanto não seriam éticos. Os outros poderiam caminhar para uma atitude "verdadeira" e, portanto, ética ao defrontar com seu "estado de liberdade", pois estariam colocando em movimento o seu "vir a ser" (Cf. Sartre, 1997).
Uma atuação ética é aquela que se encontra inserida diretamente na lei, ou seja, o sujeito pode movimentar-se no tempo, o seu desejo, num amplo conjunto de ações que lhe são permitidas e somente algumas coisas lhe são proibidas. As que se encontram interditadas são coisas relacionadas com a instauração da lei. A educação moralizante é restritiva, pois define apenas um estreito campo de ação para o sujeito. Temos assim um problema, qual seja, podemos discursar com uma certa segurança sobre o que seria o sujeito moral e, até mesmo, escolher uma "boa" educação para as "crianças do futuro", mas o que podemos falar do sujeito ético ou de uma educação que seja estritamente ética? Seria possível pensarmos numa relação entre a ética e a educação? Já que a sujeição do desejo do sujeito no tempo pedagógico perdido foi o motivo impeditivo da formação do sujeito ético, a instauração de uma outra forma do uso do tempo pedagógico poderá nos ajudar a dissolver essa possível tragédia vivida no âmbito escolar.
O desejo deve ser compreendido diferentemente da necessidade. Temos, regularmente, no transcorrer do tempo, a necessidade de ingestão de alimentos. O desejo possui uma outra relação com o sujeito e o tempo. A metáfora da onda pode nos ajudar a compreender essa relação entre o tempo e o desejo. Um surfista ao descer uma onda deve estar completamente presente naquilo que faz. Sua prancha deve estar conectada com a onda. Um pequeno descuido ou distração poderá resultar em sua queda da onda. Assim sendo, diríamos que um sujeito ético é aquele que surfa no tempo com o seu próprio desejo (Cf. Sant’ Anna, 1999). O tempo e o desejo movimentam o sujeito ético.
Podemos observar que atualmente, o "aparelho escolar" apenas aprimorou-se no controle do tempo e nada quer saber sobre o desejo. Quando muito, na escola, confunde-se desejo com necessidade. Como nada se pode dizer do que seria uma educação ética, optamos por uma escola moralizante e para tanto estruturou-se em torno da escola um batalhão de idólatras da norma para colocar em funcionamento a "atividade educativa". São os especialistas do ensino que sabem: quando ensinar; como ensinar; o que ensinar; para que ensinar e impõem aos professores e aos alunos as "normas pedagógicas" para serem estritamente seguidas. Tem-se a necessidade de que todo o processo educacional deva ficar centrado entre os: "supervisores", "orientadores", "psicólogos", "administradores", entre tantos outros que sabem o que é uma "boa" escola, um "bom" professor e um "bom" aluno.
Ensinar é um grande problema ético, pois, o sujeito, pautado em determinadas "verdades", tem o dever e a autoridade de afirmar o que se deve fazer e pensar. Entretanto, como fazer isso sem que se anule o outro como um objeto de que se modela corpo e pensamento? O fato é que temos grande dificuldade em lidar com o desejo. Ser um sujeito ético não é nada fácil, mas quem disse que o era? A vida do sujeito ético em contraposição ao estilo de vida do sujeito moral indica algo sobre a relação entre ética e educação, ou seja, uma má noticia para ser dada: o processo de escolarização não é condição sine qua non para a formação do sujeito ético. Seria mais ético se os educadores abandonassem por vez a "ilusão pedagógica" (Cf. Lajonquière, 1999 b) de querer encontrar alguma conexão entre ética e educação. Paradoxalmente, isso poderia ser, de modo efetivo, uma possível aproximação entre a ética e a educação. Assim, em vez de os educadores ficarem, obsessivamente, aperfeiçoando mecanismos de controle, seria mais ético que pudessem investir um pouco mais em escutar, em querer escutar o desejo: tanto o próprio, como também, o do outro. Ou seja, encontrar formas de aproximar tempo e desejo. Entretanto, como já afirmamos antes, a escola que temos é controladora e especializou-se numa prática ostensivamente repressora. Assim sendo, optou-se pela construção de uma escola do "possível" da "boa educação" e impediu-se a construção da escola do "impossível" nada queremos saber sobre o desejo e, apenas utilizamos grande parte desse tempo, para subordinar o sujeito moral ao comando de um outro, supostamente, mais potente.
No âmbito da solução pedagógica, os educadores "profetas da verdade" , sabem, antecipadamente como deverá ser para que o sujeito seja, no futuro, a pura manifestação do "bem". O abandono dessa posição de "profeta da verdade" implicaria numa "responsabilidade" de assumir todas as vicissitudes da vida sem querer prever a solução para algo que ainda não aconteceu. Para tanto, os educadores teriam que caminhar na constituição de uma "educação para a realidade" (Freud, 1996, p. 2988), ou seja, uma "prática pedagógica" que estaria se defrontando diretamente com o sujeito no seu estado de liberdade, mais precisamente, com o "inesperado" que ele possa "vir a ser" (Cf. Sartre, 1997). No entanto, resistimos e tragicamente, recuamos, diante da possibilidade de viver o "estado de liberdade" e a recusamos. De modo medíocre nos orgulhamos em "ser" e, de maneira arrogante, ficamos com nossas pequenas "verdades" perante as "crianças do futuro" que nada mais, são o pleno exercício educativo do "tempo pedagógico perdido".
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. (1996 ). El porvenir de una ilusion. 1927. In: ________. Obras Completas Sigmund Freud. v. III. (Luis López-Ballesteros y de Torres, Trad.). Madrid: Biblioteca Nueva.
LAJONQUIÈRE, Leandro de. (1999 a). Anotações de palestra. Campinas: UNICAMP. 25 de novembro.
________. (1999 b). Infância e Ilusão (Psico) Pedagógicas: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis: Vozes.
SANT’ANNA. Denise Bernuzzi de. (1999). Anotações de palestra. I Congresso Internacional de Educação Física e Motricidade Humana e VII Simpósio Paulista de Educação Física. Rio Claro: UNESP. 29 de abril a 02 de maio.
SARTRE, Jean-Paul. (1997). O ser e o nada. (Paulo Perdigão, Trad.). Petrópolis: Editora Vozes.