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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

O boom infantil no currículo da TV

 

Infant Boom on the TV Curriculum

 

 

Simone Olsiesky dos Santos

Mestre em Educação (UFRGS) e Psicopedagoga

 

 


RESUMO

O artigo analisa o programa televisivo Gente Inocente (Rede Globo de Televisão}.Tomando como referencial teórico os Estudos Pós-Estruturalistas articulados com o Campo de Estudos da Psicanálise lacaniana, focalizando as inscrições e identificações propostas pela Pedagogia Televisiva a partir da proliferação de discursos e saberes sobre os infantis.

Palavras-chave: Infância, sujeito-infantil, Currículo Alternativo, Identificação.


ABSTRACT

The article analyses a television program called "Innocent Folks" (Gente Inocente, Rede Globo de Televisão) taking as a theoretical reference the Post-Structuralist Studies articulated with the study field of the Lacanian Psychoanalysis, focusing on the inscriptions and identifications proposed by the Television Pedagogy, from the proliferation of speeches and knowledge on the infants.

Keywords: Childhood, Infant-subject, Alternative Curriculum, Identification.


 

 

No presente artigo, analiso o programa infantil Gente Inocente, veiculado pela Rede Globo de Televisão até 2002. A decisão de investigar o "discurso" de um programa infantil está diretamente relacionada à pesquisa por mim desenvolvida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2002), na qual investiguei o Currículo e a Pedagogia da Televisão. Temática vinculada às problematizações que envolvem os programas televisivos e suas relações com a produção de subjetividades e identificações na contemporaneidade. Investigando as dimensões educativas presentes na interação da mídia com os telespectadores, na perspectiva dos Estudos Pós-Estruturalistas, suportados pelo arsenal teórico da Psicanálise lacaniana, analiso de que maneira, a mídia televisiva vem atuando, fortalecendo e produzindo identificações e diferentes inscrições no sujeito infantil, que novos discursos são propostos, no programa Gente Inocente.

Procuro demonstrar que, enquanto aparatos culturais, estas produções possuem um "currículo" estão portanto, imbuídos de significados que lhes foram atribuídos numa conjuntura social e política. Considero que há Pedagogia onde se produz conhecimento a partir da construção de verdades e da expressão de experiências, assim os textos televisivos apresentam-se como novas formas de relações pedagógicas. A questão a ser pensada conforme Corazza (2001) é de que maneira a "Pedagogia Cultural", representada também pelos textos midiáticos, incluindo nestes o Gente Inocente, possibilita a constituição de determinadas relações que produzem subjetividades.

 

NOSSO AMOR PELOS INFANTIS

No contexto contemporâneo de fragmentação, crises, descobertas e invenções emergem inúmeras possibilidades identificatórias; a partir das condições do pensamento que está em suspenso, o sujeito já não encontra as antigas certezas que lhe amparavam e, por conseqüência, encontra-se cindido e desestabilizado. Setores como o da cultura, bem como a escola tornaram-se débeis frente à comunidade construída pelos meios de comunicação de massa. Pode-se pressupor, seguindo autores como Silva (2001), que estamos vivendo o apogeu do exibicionismo no qual o espetáculo propiciado pela visibilidade seria a principal riqueza, organizando as posições de cada sujeito, ressignificando o espaço ocupado por cada um a partir do grau de visibilidade que possa vir a ocupar, como se cada sujeito investisse na própria aparência, como se todos desejassem dizer: "sou visível, sou imagem" (1990, p.30).

Verifica-se uma extensão da difusão de mercadorias imagéticas consumíveis e vendáveis, ao universo dos produtos comercializáveis foi incorporado o mais novo produto a ser divulgado e consumido: o sujeito infantil.

Dentre todas as transformações que têm sido evidentes na paisagem cultural mundial, salta aos olhos a maneira como temos nos ocupado da infância e dos infantis. As crianças são alvo de cuidados e de inúmeros investimentos, é interminável o número de programas direcionados para o público infantil, desde aqueles que se propõem educativos, até os nem tão educativos assim: o Canal Futura, O mundo da Imaginação, o Sítio do Pica-Pau-Amarelo, Angelmix, Castelo Ra-Tim-Bum, o Programa da Turma do DiDi; o próprio Gente Inocente e outros mais, nos quais os infantis são em menor número; sempre se dá um "jeitinho" de trazer um recorte sobre a infância e os infantis; além de todas as campanhas voltadas ao auxílio à criança, especialmente à carente, como o Projeto Criança Esperança (Rede Globo de Televisão); e as demais (campanhas) envolvendo a UNICEF. Observando mais atentamente, veremos ainda o quanto na televisão difunde-se a imagem do infantil-criança, sendo esta, na maioria das vezes, protagonista da cena.

Vê-se desta forma estampada na mídia televisiva com garantia de um lugar soberano, a imagem da criança. Exposição esta que supera, pela demasiada incidência, a aparição de outras imagens - fato que pode produzir um certo estranhamento, pois há inúmeros estudos e pesquisas que denunciam todo um movimento de desaparecimento da infância. No entanto, se nos aprofundarmos um pouco nas investigações, verificaremos que autores como Corazza, Calligaris e Postman estão corretos ao pontuar sobre um efeito de apagamento da infância, pelo menos da infância que esteve presente nos ideais da modernidade; a infância herança da Idade Média, portadora dos ideais de uma sociedade amalgamada num racionalismo científico, rompeu-se junto com os ideais da modernidade, cedendo espaço para uma infância e uma imagem de infantis significativamente diferentes dos paradigmas de outrora. Hoje, a infância aparece reeditada num novo formato tal qual um reality-show, tão metamorfoseada quanto a própria contemporaneidade.

Afinal que infantil é este que vem sendo representado? Como está sendo falado? Que infância é esta que aí está, bem como que discursos são produzidos sobre este outro infantil, pois há que se atentar para que, na sucessão de imagens veiculadas pela TV são considerados, aspectos marcados por descrições acerca de gênero, apresentando sexualidades, formas de comportamento, tipos físicos, raça/etnia entre outros elementos possíveis de visualizar-se. Como escreve Corazza, desde a "invenção" da infância "nossa cultura não parará mais de falar do outro-infantil, que lhe é a um tempo interior e estranho, sua mesmidade e outridade, seu igual e diferente, seu incessante Ford-Da: jogo do carretel que mostra a face do mesmo" (2000, p.46).

No que diz respeito à imagem de infância que se apresentou no programa Gente Inocente, esta esteve pautada numa imagem caricatural de criança, presa ao mundo adulto, em que as crianças constituíram-se enquanto ícones do universo adulto, imersas num devaneio de uma felicidade idílica que os adultos desejariam para si. Calligaris em 1994 já escrevia sobre este amor objetal no qual a contemporaneidade estaria inscrevendo a infância ("Como amamos as crianças"). Passados nove anos, ainda nos deparamos com este mesmo amor, por certo mais intenso do que nunca, visível nas formas de proteção à infância de todos os perigos, ameaças, e explorações que imaginamos estarem as crianças expostas e que nós, adultos participantes do social e da cultura, por certo corroboramos.

Estabelecemos verdadeiras cruzadas contra o trabalho infantil, criamos estatutos para garantir que realmente nosso projeto contemporâneo frente à infância ideal ou ao sujeito infantil idealizado se cumpra. Prevemos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, criado a partir da campanha Criança Esperança, que sejam prioritariamente efetivados os direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. O artigo 60, do capítulo V, determina a proibição de qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz, sendo vedado o trabalho noturno, insalubre ou penoso. A própria televisão sustenta, através de programas específicos sobre a temática do trabalho, opiniões contrárias ao trabalho infantil.

Decretamos "não" ao trabalho infantil, desde que este se ocupe das crianças catadoras de lixo, trabalhadoras das minas de carvão, coletoras de latinhas, plantadoras de cana-de-açúcar ou daquelas que costuram bolas de couro.Contudo, neste tempo de cruzada anti-mão-de-obra infantil, cada vez mais vemos engrossar a fileira de atores mirins e de novos talentos. Quando o trabalho infantil vem revestido dos 15 minutos de fama que poderão ser o degrau a ser calcado na direção da celebridade e, se para os adultos envolvidos puder sobrar alguns respingos deste feito, bem, aí a história seguirá por outra direção. É possível pensar, como pontua Calligaris (1994), que ao nosso amor narcísico corresponde o ideal de criança livre de penosas obrigações, e por que não encarnadas na pele dos Super–Talentosos? Saudáveis, bem vestidas, brancas (ou quando muito morenas), educadas e cheias de boa intenção - assim é aceitável que as imagens infantis componham as cenas televisivas em programas como o Gente Inocente.

A partir destes comentários, abre-se a questão: em que se constitui, ou melhor, em que se ancora a diferença que realiza uma sacralização do trabalho infantil espetacularizável, e assim o legitima e o autoriza, em contrapartida a outras formas de trabalho que são consideradas verdadeiras explorações e escravizações? Estaríamos nos desculpabilizando no fato de que todo divertimento é válido, especialmente neste contexto de desilusões e perdas de referências simbólicas? Ou, então, poderíamos justificar tal fato na busca pela superação individual, alimentada pela competitividade, que faz com que todos queiram ter seu momento de glória ou simplesmente alguma participação nos acontecimentos?

Sabe-se que a mídia televisiva absorveu num ato, antropofágico, o sentimento de pertencimento vivenciado e estimulado por outras instituições. Conforme Sarlo, "a mídia, por meio de modelos ‘interativos’ e ‘participativos’, veio se instalar nas fendas deixadas pela dissolução de outros laços sociais e de outras instâncias de participação" (1997, p.82). Possibilitando novas formas de conhecimento de si e dos outros através dos recursos simbólicos de que dispõem. Conforme Calligaris (1994) neste contexto social, só as crianças trazem consolo, representado de alguma forma na promessa de imortalidade. Neste sentido, Corazza (2000, p.33) ressalta que "a infância se constituiu para nossa sociedade ocidental como um domínio a ser conhecido". A autora investigou as práticas discursivas e não-discursivas que tornaram possíveis o dispositivo de infantilidade pelo qual as relações de poder se estabeleceram no que diz respeito aos infantis. Apoio-me nesses escritos sobre a Roda dos Expostos: local onde crianças eram abandonadas no século XIX com alguns pertences pessoais (CORAZZA, 2000), para estabelecer uma analogia entre as cenas que nos deparamos em produções como o Gente Inocente. Conforme Corazza, a Roda foi um mecanismo com fins para além da filantropia, fins políticos, ligados aos interesses do Estado, substituída por outras propostas como as próprias maternidades. Estas informações possibilitam o estabelecimento de uma espécie de analogia entre a relação de exposição a que se viam submetidas às crianças na Roda e a exposição que se verifica hoje por meio do currículo televisivo no qual a mídia assume uma posição de poder que, ao contrário da posição que o Estado ocupava frente aos Exposto da Roda, implica diretamente na participação das próprias crianças e de suas famílias nesta nova forma de exposição. Mas se naqueles tempos a exposição era pautada em laços simbólicos e objetivava dar um lugar no mundo e na cultura para aqueles pequenos em face da possibilidade de abandono completo e morte, hoje, talvez não sejam estas as justificativas para a intensa exposição de crianças na TV. Na atualidade, a relação provavelmente esta apoiada num ideal narcísico, respaldado muito mais em referências imaginárias, alimentadas por uma voracidade consumista. Razão pela qual, no espaço destinado aos comerciais durante a exibição do programa vários produtos voltados ao público infantil seguiam sendo anunciados (durante os comerciais): cereais matinais, chocolates em formato de batom, loção antipiolhos, cremes para assaduras, calçados, perfumes, bonecas, fraldas, refrigerantes, até propagandas de grandes redes de fast-food.

A questão é como nos anúncios publicitários, nas novelas e no programa Gente Inocente, revela-se uma maneira diferente de relação com os infantis, indicada pelo próprio corpo de atores composto por crianças na faixa etária dos três aos doze anos. Estes assumiram papéis de entrevistadores, coordenaram salas de bate–papo on-line e, ainda, colheram informações para as seções: "Arquivo secreto", "Neném sabe tudo "e "Fique sabendo". Os miniatores também participavam do júri junto com profissionais do meio artístico selecionando, os participantes que mais se destacassem no Show de Calouros, com pareceres positivos: talentosos, carismáticos, charmosos, ou negativos: tecnicamente não estavam tão apurados, etc. O fato é que não se sabe ao certo o quanto crianças entre 5 e 7 anos são capazes de suportar de forma satisfatória este tipo de avaliação e qual o nível de compreensão que as mesmas tiveram das declarações emitidas.

"Sob todas as formas particulares – o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade" (DEBORD, 1997, p.14). O programa, também proporcionava um show à parte, no qual os adultos responsáveis pelas crianças levavam chuveiradas quando os atores mirins fracassavam.

Como decifrar o fascínio exercido por este gênero de programação? Talvez a "face dura do narcisismo" promova essa esterilização, esse gozo com a exposição dos outros infantis. Buscou-se espetacularizar não somente a própria imagem das crianças, "vestidas de feliz, isentas das fadigas do sexo, despreocupadas" (CALLIGARIS, 1994, p.06) como também validar o ícone celebridade relativo aos convidados, expondo à atenção pública fatos sobre suas vidas. É desta forma que se constroem os alicerces de imortalidade na mídia televisiva inscritos a partir do currículo televisivo. Currículo Alternativo, pois ele guarda inúmeros diferenciais dos currículos tidos como oficiais, repleto de significantes e significados, elementos que compõem o discurso (atos, palavras e destinos) que se fazem psesentes consciente e/ou inconscientemente, representando e determinando os sujeitos, operando em níveis simbólicos.

Lipovetsky afirma que "A informação televisiva é idealmente construída para lá do bem e do mal, requer uma rigorosa neutralidade, desfile de informações, comentários, não julgar, não culpabilizar, mas mostrar tudo, expor tudo" (1994, p.35).

 

CONCLUSÃO

Considero, portanto, como já afirmava Debord, que "o espetáculo não é [simplesmente] um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens" (1997, p.14). Esta afirmação sinaliza a importância de dar seguimento às investigações sobre este Currículo Alternativo, lançando as interrogações sobre a TV, e o interesse voltado à exposição banalizada do infantil e da privacidade, satirizando, desencantando ou produzindo comiseração da imagem da criança e da vida privada, num exercício de "tirania da intimidade"; como esta vem mobilizando, fabricando necessidades e originando desejos que interferem e descortinam uma nova infância. Como a Pedagogia televisiva no contexto atual enfatiza a posição de capital-corpo, capturando o sujeito infantil e remetendo-o à posição de mercadoria a ser consumida.

 

Referências bibliográficas

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos. 6. Ed. Tradução Campinas: Papirus, 1990.

CALLIGARIS, Contardo. Disponível em: www.uol.com.br/folhadesaopaulo. Acesso em: 24 Jul. 1994.

CORAZZA, Sandra Mara. Na diversidade cultural, uma "docência artística". Pátio, Porto Alegre, n. 17, maio/jul. 2001, p.27-30.

______. História da infância sem fim. Unijuí: Ijuí, 2000.

DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

LYPOVETSKY, Gilles. O crepúsculo do dever: a ética indolor os novos tempos democráticos. Tradução: Fátima Gaspar. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. Intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro:UFRJ, 1997.

SILVA, Juremir Machado da. Silvio Santos na globo. Correio do Povo, Porto Alegre, 02 set. 2001. Cultura, p. 23.