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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Um saber sobre a criança

 

 

Valéria Ferranti


RESUMO

Esta comunicação sublinha um deslocamento teórico no ensino de Jacques Lacan acerca do estatuto da criança apontando, em um primeiro momento, a prevalência da teoria fálica, para depois bordejar a teoria do objeto pequeno a. Tal deslocamento traz implicações na direção do tratamento de crianças e consequentemente questões sobre seu fim.

Unitermos: Direção do tratamento, teoria fálica, teoria do objeto pequeno a, final de análise.


ABSTRACT

This communication emphasizes a theorical move in the teaching by Jacques Lacan about the child statute showing , in a first time, the prevalence of the phallic theory, in order to border on the theory of the little a object. This move has implications in the direction of the child treatment and, consequently, questions about its ending.

Index terms: direction of treatment, phallic theory, theory of the little a object, end of the analysis.


 

 

Esta comunicação não pretende estabelecer um saber sobre a criança à luz da psicanálise - tentativa que seria um contrasenso. A ambiguidade proposital do título aponta para a impossibilidade em circunscrever Um saber sobre a criança à luz do discurso psicanalítico, sublinhando, no ensino de Lacan, um deslocamento teórico no saber sobre o infans, destacando a existência de uma teoria fálica, associada a um período clássico com predomínio da linguística e um segundo momento, onde o corpo ganha destaque e o foco ilumina a teoria do objeto pequeno a.

A Teoria Fálica tem seu ponto nevrálgico na interpretação lacaniana pra o Édipo freudiano através da Metáfora Paterna. Metáfora, termo referendado na linguística, implica na substituição de um termo, que desaparecerá, por um novo termo, gerando um efeito de sentido.

 

 

A esta proposição de substituição significante, Lacan aplicará os termos envolvidos na Metáfora Paterna:

 

 

Trata-se aqui em substituir o Desejo da Mãe pelo Nome-do-Pai que, além de metaforizar o Desejo da Mãe, produz o falo como significação, como efeito de sentido. Encontramos o falo no lugar de denominador no resultado da equação metafórica, como denominador comum à toda significação. Fica evidenciado que a criança não encontra uma resposta acerca de seu lugar no Desejo da Mãe senão através do operador Nome-do-Pai.

O matema também evidencia outro aspecto: o Nome-do-Pai é um significante que não representa o sujeito, pois aparece sozinho, sem par, como resultado da metáfora. Assim, é um significante que foge ao estatuto dos significantes de aparecem, ao menos, em par. É um significante assemântico. Mesma definição dada por Lacan para o significante Fálico. Cabe acrescentar que se Nome-do-Pai e Falo são significantes, se encontram no Outro, mas em condição de exceção já que assemânticos.

Há uma característica que merece ser destacada: a metáfora opera através de elementos lógicos e não da realidade sensível, da ‘historinha familiar’ ou dos dramas existenciais da presença ou ausência de um genitor. Trata-se em compreender o Nome-do-Pai como operador lógico que possibilitará ao sujeito ‘criar uma ficção’ para o x, criar um significado para o Desejo da Mãe, salvando-se, através do falo, do desejo devorador da mãe.

Lacan (1992) afirmará que a mãe é como um crocodilo, em cuja bocarra a criança se encontra. O que mantém a bocarra aberta e a criança a salvo é o falo. Salvar-se da bocarra devoradora da mãe põe a criança na construção de uma relação com o mundo, uma acomodação para com seu pequeno mundo, ou seja, produção de respostas para a realidade que a cerca. Para que estas respostas sejam forjadas é necessário que a Metáfora Paterna tenha produzido o Nome-do-Pai e o falo como resultado. Para Soler (1991), esta operação tem por função juntar significante e significado, ou seja, ordenar e produzir significações onde o Nome-do-Pai teria por função um princípio de resposta para a falta de significante no Outro. A resposta do Pai é o falo, ou seja, o falo como significação, mas também da própria significação ser fálica.

Estes avanços teóricos propostos por Lacan na interpretação do Édipo são identificáveis à uma teoria fálica da criança ou a uma posição clássica onde a criança é o falo. Cabe ainda salientar que através da Metáfora Paterna, Lacan abordou o Complexo de Édipo e o Complexo de Castração como concomitantes pois, ao substituir o Desejo da Mãe por um nome, surgirá diante da ausência da Mãe como objeto real, uma palavra que tampone esta ausência. Diante deste vazio inicialmente sem sentido surge o sentido da proibição. Assim, o Nome-do-Pai substituirá o Desejo-da-Mãe também com uma proibição.

Lacan afirmará que a castração é um"(...) jogo jogado com o pai, jogo de quem perde ganha, que por si só permite à criança conquistar o caminho por onde nela será depositada a primeira inscrição da lei" (1995, p. 214). Quem perde o lugar de objeto tamponador para a falta materna – ser o falo -, ganha a possibilidade de aceder à significação fálica – ter o falo -, e assim ingressar na trilha que leva o sujeito à uma posição sexuada.

Poderemos resumir o caminho para a assunção do falo: inicialmente, a crença da universalidade do falo, ou nos termos de Freud, na "premissa universal do pênis"; em seguida, a consideração da própria castração como ato primeiramente da mãe e em seguida do pai. Neste momento a mãe é tida como fálica, como provida do atributo fálico, até a descoberta, pela criança, da castração materna. Caberá a mãe confirmar a descoberta infantil, abrindo assim uma hiância para que o Nome-do-Pai possa operar.

A descoberta da castração materna colocará o sujeito na construção de uma fantasia que lhe responda sobre o seu lugar no Desejo-da-Mãe. Eis o sintoma analisável com o qual Lacan (1958) nos dá a primeira ponta de um nó a ser atado pelo Complexo de Castração.

A segunda ponta para realizar o nó está ligada a assunção de uma posição sexuada ou seja, a eleição de uma posição sexuada e de um objeto sexual. Para a psicanálise a biologia não define se o sujeito terá uma posição feminina ou masculina, mas trata-se de aceder a uma posição que nem sempre coincide com a conformidade física. Esta ‘escolha’ se dará através do Édipo.

É no Complexo de Édipo que se unem a questão da filiação e da sexuação, pois o sujeito elegerá uma posição sexuada a partir da filiação. Quando a mãe ressurge para a criança, após a metaforização de seu desejo, aparece como objeto proibido para ela, mas possível para outro o que indica para a criança seu lugar na relação parental. Esta mulher denominada mãe é proibida como objeto do desejo devendo ser substituída por outros. Aqui se desenha para o infans seu lugar na genealogia.

Mas, para poder ligar-se aos objetos investidos de valor fálico, a criança se esboça, para Lacan, inicialmente como um "assujeito" (1999, p.195). Assujeitado aos caprichos de quem dela se ocupa, a criança encontrará no Nome-do-Pai um "princípio de resposta", um articulador da lei que priva ou não a mãe de seu objeto do desejo. Assim, o que a criança busca neste momento de ‘assujeitamento’ é ser o objeto de desejo do desejo da mãe. Este objeto é exatamente o falo, ou seja, o significante que teve, como afirma Lacan, "papel primordial na estruturação subjetiva da mãe."(1999, p. 206).

A posição subjetiva da mãe em relação ao falo, decorrente das inscrições provenientes do Complexo de Édipo e Complexo de Castração, terá papel preponderante na passagem do infans de assujeito para sujeito, desenhando o que há de singular para a criança, sua história particular frente ao Outro primordial, configurando a diacronia. A sincronia possivelmente esteja ligada à "insondável decisão do ser".

Antes de abordar alguns aspectos da teoria do objeto a, cabe ressaltar que o deslocamento teórico não se configura como um progresso, mas como um avanço pois o modelo anterior – do infans como objeto fálico -, não é substituído pelo lugar de pequeno a. São elaborações de saber acerca da criança e que tem uma implicação direta na direção do tratamento.

O texto clássico para abordar a criança no lugar de objeto é "Duas Notas sobre a criança". Notas escritas por Lacan e entregues a Jenny Aubry, onde encontramos a seguinte afirmação: "A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como objeto a na fantasia" (1998). A que presença o autor se refere? Trata-se em ressaltar a idéia que a criança, no lugar de objeto poderá saturar, obturar a falta materna, não como substituto fálico, mas como sutura no Real, do corpo do infans tomado como real na fantasia do Outro Primordial, ou seja, empresta o corpo para o fantasma da ‘mãe’, apaziguando o fantasma materno. Cabe lembrar que o matema para o fantasma é $ à a.

Para não ficar cristalizado neste lugar de objeto fantasmático da mãe, o Desejo-da-Mãe deverá ser metaforizado pelos Nomes-do-Pai, agora no plural, indicando a existência de um além do Édipo freudiano. Paradoxalmente, para ser sujeito o infans deverá primeiro ser objeto, condensando com o próprio corpo o gozo do Outro Primordial e também gozar, para depois poder, através de um dos Nomes-do-Pai criar uma versão para o desejo devorador da mãe através de um mito particular, dos sintomas e de todas as cadeias significamtes advindas da busca infinita em dar significado a este momento lógico.

Ocupar o lugar de objeto no fantasma materno equivale ao que Freud descreveu como as "(…) As primeiras experiências sexuais e sexualmente coloridas que uma criança tem em relação à sua mãe são, naturalmente, de caráter passivo" (1931).

O infans se oferece como objeto e é capturado como objeto condensador de gozo, prestando ao Outro primordial ‘um serviço sexual’. Deverá haver a separação em relação a demanda da mãe para que a criança não se cristalize nesta posição. Neste contexto, Lacan abordará a criança não como objeto passivo já que oferece-se ao Outro, oferece seu pequeno corpo para também gozar com o Outro, o que implica um avanço em relação a teoria freudiana.

Este serviço ‘sexual prestado’ à mãe deverá ser substituído pela incidência significante, originando os significantes mestres, os S1 que marcam o corpo e as zonas erógenas do sujeito. "O significante é aquilo que faz alto ao gozo"(1985) afirmará Lacan. O significante, ao marcar o corpo, circunscreve o gozo à uma zona erógena, ‘desertificando’ o corpo que era, até então, capaz de gozar em toda a superfície. Há portanto, através da inscrição significante uma perda, uma exclusão de gozo e que marcará o psiquismo.

Ao passo que o corpo se ‘desertifica’ de gozo um aspecto ganha relevo:as inscrições significantes advém da demanda do Outro, localizando o gozo em bordas anatômicas, em torno do que faz buraco, em torno do que não está.

E o sujeito se põe em direção a aceder ao gozo fálico na busca impossível de refazer o UM, miticamente vivido na relação com a mãe e que se faz radicalmente Outro através da incidência do corte significante. Esta lógica circular ganha combustível pelo fato da mulher não ter o falo e, quando torna-se mãe, captura o bebê, destacado do seu corpo, como objeto do seu gozo fálico. Concomitantemente, o infans é posto no lugar de objeto a, condensando o que Lacan denominou de mais-de-gozar.

Cecília Ferretti sublinhou os avanços teóricos no ensino de Lacan realizados a partir da década de 70 para conceituar o infantil propondo que no lugar de objeto o infans ganha uma posição antecipada diante do Pai já que poderá se safar do Outro Primordial antes mesmo da legalização. A autora afirmará que o infans é capaz de:

"(...) localizar o gozo da mãe através de uma construção fantasmática. Esta construção, porque articula real, simbólico e imaginário, permite um distanciamento em relação à mãe. Desta forma, o significante, ele próprio, possibilita um engendramento que aponta uma saída possível. É pela construção fantasmática que a criança localiza o gozo da mãe. (…) A ficção que a criança inventa a respeito do gozo da mãe garante, antes da intervenção do pai, que a criança não responde ao objeto a, que ela não é o condensador de gozo da mãe, não é seu objeto." (2000, p. 101).

A partir desta breve articulação teórica na intenção de apontar para o deslocamento do lugar do infans, uma consequência fundamental se faz presenta àqueles que se ocupam de crianças: a direção do tratamento.

Se tomamos como referência a feoria fálica, ou seja, da criança no lugar de falo materno, de acordo com Laurent ( 1994), elaborar uma versão do falo seria a direção para pensar o final de análise com crianças e, de certa forma, apostar no Pai como operador a promover uma posição sexuada. Na teoria do objeto pequeno a, a criança construiria uma versão para o a, ou seja, localizaria o gozo do Outro Primordial e do ‘serviço sexual’ através de uma construção fantamástica. Como o gozo é o gozo do Outro Primordial, não se trata aqui em considerar a identificação edípica, já que o lugar de obejto a precede a operação metafórica.

São cosntruções de saber sobre a criança e que determinam a direção do tratamento. Para tal, o analista que recebe crianças deverá saber qual teoria prevalece em sua clínica.

 

Referências Bibliográficas

FERRETTI, Maria Cecília Galletti (2000). O Infantil: Lacan e a Modernidade. Tese de Doutoramento, Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.

MILLER, Jacques-Alain (1998). A Criança Entre a Mãe e a Mulher. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Escola Brasileira de Psicanálise, n 21. Edições Eolia, 7-12.

LACAN, Jacques. Duas Notas Sobre a Criança (1998). Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. Escola Brasileira de Psicanálise, n 21. Edições Eolia, 5-6.

__________ (1995). O Seminário. Livro 4. A Relação de Objeto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

__________ (1985). O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.

__________ (1958). A significação do Falo. In Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1998.

Freud, Sigmund. (1931) Sexualidade Feminina . Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol.XXI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1988.

LAURENT, Eric (1994). Existe um final de análise para as crianças. Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. n 10. Edições Eolia, Abril/Junho, 24-33.