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ISBN 85-86736-12-0 versão
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ISBN 85-86736-12-0 versão on-line
An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Out. 2002
O saber "insabido" da criança
Angela Vorcaro
DERDIC-PUCSP. APEP - AFI
RESUMO
Este trabalho discute a questão: em que medida é possível observar crianças?, através de um percurso pelos saberes específicos sobre a infância, aqueles que estão fundados na técnica de observação.
Pretende demonstrar que para atingir os ideais de generalização típicos do registro da ciência é o específico da condição subjetiva da criança que precisa ser recusado.
Palavras chave: observação; condição subjetiva; ciência
O estudo das condições de visibilidade da criança aponta a virulência da sua opacidade.1 A tomada da criança pelo discurso conferiu-lhe posição de extremo privilégio - lugar próprio para a aposta no futuro da civilização. Conhecê-la sob todos os ângulos, cuidá-la para que se previnam todos os riscos, superar os efeitos danosos do meio familiar ao seu florescimento eficaz, otimizar suas potencialidades, são imperativos asseguradores do controle das incertezas do futuro da civilização, e esperança de garantia da estabilidade da ordem social. É o que faz da criança uma valência futura - representação que resgata o que não foi possível realizar no passado, projetada para o futuro do adulto ideal que, no narcisismo dos pais, encontra sua singularização.
Nesta representação da criança, a determinação da implicação de futuro a que deverá conformar-se assume pregnância recobridora de sua atualidade. A importância do que a criança é define-se pelos signos que permitem supor o que a criança será. A atualidade da criança sustenta-se numa evanescência que a mantém exposta a uma desmedida operação de aderência imaginária aos ideais daqueles observadores de suas manifestações, sob efeito da potencialidade que sua insuficiência subjetiva permite.
Os métodos psicológico-psiquiátricos de conhecimento da criança são esclarecedores. O procedimento diagnóstico tornou-se apelo sistemático quando se localiza, na criança, um risco ao ideal social que ela encarna. O diagnóstico é construído a partir da observação. Observar a criança é explicá-la, é determinar o que nela resiste ao ideal de saúde psíquica.
Longe de o procedimento de observação ser homogêneo na clínica, este meio - a observação - é operado em modalizações que distinguem métodos diagnósticos psiquiátrico-psicológicos de estabelecimento do conhecimento sobre a criança, com distintos ideais metodológicos
Por um lado temos o ideal da descrição classificatória, que pretende garantir transparência entre a manifestação da criança e um quadro psicopatológico correspondente. Por outro lado, o ideal da produção de novos sentidos levaram à tomada da observação como função de tradução compreensiva. Nos dois casos, estabeleceram-se modos ideais de classificar e compreender a condição mórbida da criança.
Da transcrição descritiva como ideal da observação:
A constituição da atividade diagnóstica psicopatológica tem objetivos de observação e de classificação. O encontro objetivo de um determinismo orgânico se faz às expensas da exclusão de bordas subjetivas, exclusão necessária ao diagnóstico, como aponta Clavreul (1983,p.224) <<O médico não fala e não intervém, senão enquanto é o representante, o funcionário do discurso médico. Seu personagem deve se apagar diante da objetividade científica da qual é o garante>>
No caso das escolas psiquiátricas organicistas e de algumas vertentes da psicologia (experimental e cognitiva), a perspectiva da observação é a de sustentar a garantia de objetividade cientificista. A investigação clínica propõe resolver os impasses do diagnóstico através da observação transcritiva2. A intervenção clínica, tida como não-interventiva, operaria o registro da manifestação da criança, objetivando descrevê-la. Efetuada a descrição, a manifestação é abandonada. A descrição é transformação da manifestação num objeto produzido e determinado por um código. Nessa operação, obtura-se o obstáculo da manifestação, pela descrição que a codifica.
A impossibilidade de acesso ao obstáculo que a manifestação impõe é, portanto, superada pelo código. A inscrição desse dispositivo num sistema classificatório permite simplificar e reduzir a transcrição, elegendo sinais da manifestação como seus representantes, localizáveis, portanto, num quadro de equivalências. Tal transcrição codifica a manifestação num referencial que permite comparar uma criança com todas as outras já classificadas.
Entre os pacientes que, com seus sinais e sintomas, respondem a um certo quadro patológico, persiste apagado o resto que singulariza cada um, inacessível à observação codificada que procura a identidade desse paciente aos quadros já descritos e classificados. A observação transcritiva é o que sustenta o mote do clínico especializado em reencontrá-la.
A tradução como ideal da observação:
Outro ângulo de visibilidade emergiu a partir de práticas da psicologia e da psiquiatria fenomenológicas, sob o efeito do campo interpretativo anunciado pela psicanálise e da constatação de falência da aplicação de métodos científicos a objetos humanos. Foi o que conduziu uma outra perspectiva de avaliação da criança, sustentada pelo ideal da tradução compreensiva. A prevalência da intuição do clínico, diante da observação direta da imagem da criança, tornou-se sua garantia, mostrando como a série observar-compreender implica a prática de tradução3, em que o sentido da manifestação da criança regula-se pelo sentido dado pelo clínico, é o sentido do sentido, que desconhece a própria dimensão imaginária que constitui. Ao ter como objeto o sentido, referencia a fuga de sentido insistente na manifestação observada da criança, pelo acréscimo de sentido que a compreensão oferece, obturando a resistência da literalidade da manifestação. Harmonizando mediadores psicométricos e concepções psicanalíticas a outras matrizes do pensamento psicológico, constituíram-se preceitos, recursos unidos sem estranhamento, em decorrência da concepção de aplicativo técnico que preside seus usos. O comparecimento da subjetividade do clínico no psicodiagnóstico tornou-se ideal legítimo e necessário.
Assim, o psicodiagnóstico, destituiu a técnica experimental sem não abandonar a observação direta. Mas instituiu, nela, a primazia da subjetividade do observador, conferindo-lhe estatuto de intérprete do material fenomenal que vê, situando aí a garantia de sua legitimidade. Destituiu-se, assim, a regulação teórica, em função do modo singular do observador de catalisar conceitos e observações numa construção de sentidos. Afinal, espera-se superar os limites de qualquer teoria, diante dos impasses da clínica, pelo estabelecimento de um sentido autônomo. Neste contexto, a observação perdeu o caráter de meio de acesso à verdade científica para sustentar-se como mote do intérprete especializado em criar novos sentidos. Tal funcionamento, entretanto, condena a psicologia ao silêncio, quanto ao enunciado que a fundamenta e ao desconhecimento dos laços que faz4.
A observação compreensiva rege as práticas psicodiagnósticas como fontes de produção de sentidos. O esforço do clínico é aí constituir as manifestações da criança como um quadro a ser compreendido. Em seu caráter figurativo, articula-se o que, neste quadro, está latente, por dedução do conteúdo dado a ver.
Portanto, duas orientações de clínica, instituintes do conhecimento sobre a criança, podem ser discernidas a partir da posição ideal em que os agentes clínicos se colocam: lacuna do sujeito que opera o código e preenchimento do sujeito produtor de sentidos. A primeira, buscando equivalência no código, contém aquilo que a manifestação anuncia de singular à subjetividade da criança; a segunda dissipa a manifestação da criança no sentido que constrói. É o que nos conduz à hipótese de que, a despeito da eficácia que esses métodos de observação implicam, a especificidade da criança resta, por tais meios, não formulada. A legitimidade das práticas supõe sucesso no acordo de compatibilidade que tais dispositivos sociais provocaram, conseguindo garantir a manutenção da promessa do ideal da criança. Tal lastro social, entretanto, sobrepuja a ponderação da singularidade da criança e atesta que a clínica psiquiátrico-psicológica da psicopatologia infantil é aplicativa, desvencilha-se da especificidade de qualquer teorização que restringiria um funcionamento alienante, por conduzir a construção/reconstrução a partir das diferenças que as crianças manifestam. Numa de suas vertentes, a singularidade a interrogar se perde na imediaticidade que a relação biunívoca permite. Na outra vertente, a captação do sentido pela atribuição de sentido não permite contê-lo. Os correlatos compreensivos ou descritivos da observação julgam prescindir da problematização do que os põe em marcha, para responder, com o nome ou com o sentido, à lacuna em que a criança resiste ao ideal. Nas duas vertentes, a clínica espelha o que se pode observar, ao ler, no texto das manifestações da criança, o reencontro do já sabido ou a deriva de sentido. Supera-se a morbidade inespecífica da criança pela transparência refletida pelo código ou pelo sentido, que não é senão a sutura da diferença que a unicidade da criança impõe como o que falta para aderir ao ideal disciplinar. Nos dois casos, dissipa-se o que provocou estranhamento, pela solução diagnóstica que a observação permite, sem que seja imposta a urgência do construto teórico.
Essa constatação é problemática. Ela implica, no mínimo, levantar a hipótese de que, na materialidade da criança, algo permita essa deriva.
Da contribuição da psicanálise: a transliteração
As dificuldades da clínica, que atestam o constrangimento ético da psicanálise diante da criança, sugerem interrogar a possibilidade de amputar o imaginário do psicanalista do ato analítico que se quer estruturante, na medida em que a criança imajada no ideal do outro é causa estrutural da constituição de um ser em sujeito.
Mas como a psicanálise considera a observação?
A criança foi objeto de interrogações, permitiu articulações, e cabe ressaltar, Freud a considera enquanto um funcionamento estruturado que, apesar de diferir na expressão fonatória, produz um texto, usa significantes, cifra suas urgências, ordena uma série e estabelece uma sintaxe. Mas no limite estrito da criança que é observada Freud situou apenas o caráter de verificabilidade da teoria psicanalítica, definindo a categoria de prova. Freud não situa a observação da criança como capaz de responder sobre o infantil.
Afinal, é o que ele testemunha no prefácio à quarta edição dos Três Ensaios de teoria sexual, em 1920, quando aponta uma das dificuldades inerentes à observação de crianças: <<Se os homens soubessem aprender com a observação direta de crianças, estes três ensaios poderiam não ter sido escritos>> (p.120). A observação direta da criança oferece ao próprio Freud mais o lugar de <<certificação das inferências>> e de <<testemunho da confiabilidade do método psicanalítico>>(p.176), do que o campo propício à investigação e teorização. Enquanto método, a observação direta é descartada, é fonte de equívocos. Para Freud, é necessário concomitância entre a investigação psicanalítica, que remonta até a infância, e a observação contemporânea da própria criança, enquanto métodos conjugados, devido ao fato de que <<A observação de crianças tem a desvantagem de elaborar objetos que facilmente originam malentendidos, e a psicanálise é dificultada pelo fato de que só mediante grandes rodeios pode alcançar seus objetos e suas conclusões>>(p.182).
Freud mantém o caráter de irredutibilidade da manifestação da criança à observação direta, além de apontar os seus equívocos no próprio movimento em que explicita as determinações infantis, seja na primazia que este implica quanto à constituição psíquica, seja quanto aos processos psicopatológicos. Enquanto abarca o saber do adulto do que teria sido sua infância, a criança é uma formação imaginária inconsciente do analisante adulto, que lhe permite definir a categoria do infantil sem que a materialidade da presença da criança se faça necessária, como demonstra a teorização freudiana sobre a sexualidade infantil, elaborada por meio da análise das histéricas (1914 a,p.17).
Outro estatuto é dado à criança, enquanto determinando uma posição, lugar de referência onde se deposita a incidência da formação imaginária do ideal parental (1914 b, p.87-8).
Freud (1917,p.118) confere ainda localização simbólica à criança, ao situá-la numa série de termos substituíveis (fezes--dinheiro--presente--filho-- pênis).
Dos modos de presença da criança em Freud, pode-se extrair o estatuto da criança na psicanálise.
A criança posição, substituto substituível de um valor determinado pela economia subjetiva de um outro, estabelece a demarcação de um lugar discernível. Este outro, semelhante dissimétrico pode, por isso, tornar-se agente da ação específica fundadora da subjetivação. É o que faz a dimensão simbólica5 da criança.
A criança ideal é constituída pelo olhar parental, na polimetria narcísica da semelhança/dessemelhança que a singulariza em desdobramentos que lhe atribuem valências. Nessa dimensão imaginária, a criança se especulariza referida num ideal de criança - modalização do infans que sustenta sua constituição.
A criança concreta que se manifesta para Freud sustenta um existente irredutível ao malentendido do observado, presença que se exerce suspensa a sua subjetividade inconstituída, mas que insiste no apelo da necessidade, enlaçando o outro e fazendo reincidir o narcisismo daquele. Mais ainda, a despeito de ser tida por Freud como diferente do adulto, a ele eqüivale, por ser modalizadora da repetição e do desejo, no jogo e no sonho: produtora de chiste, no equívoco da confecção de coisas com palavras; intimadora do pensamento e investigadora, diante da urgência psíquica, e figuradora do sexual, na substituição simbólica. Esse existente, de que Freud interroga a possibilidade de averiguação, responde-lhe, surpreendendo-o, ao ensinar-lhe coisas difíceis de acreditar para as quais não estava preparado.
Apesar de tudo isso, a criança que, sem a psicanálise, estaria fadada a manter-se enigma inabordável, não tornou possível a Freud a construção de um modo de análise que atendesse à especificidade que ele mesmo apontara. O caráter de obstáculo irredutível, que o atinge na irrealizada analisabilidade suposta, pode ser demarcado enquanto incidência enigmática da criança, que situa a dimensão do real6 da criança para Freud, não pelo que ele inscreveu dela, mas pelo que ele não pôde escrever sobre ela7.
A concepção que Freud nos oferece de clínica em psicanálise distingue indicações precisas que apontam o fracasso do ideal da tradução para a psicanálise, enquanto modo de operar o transporte imediato das linhas do sentido manifesto pelo paciente, por meio de uma analogia a conceitos ou através do estabelecimento de um sentido captado. Freud aponta que o discurso do paciente não se presta à imediaticidade da intuição e que os conceitos fortemente articulados na teoria psicanalítica não lhes estabelecem univocidade. Na rede tecida pelo fio do encadeamento da associação livre manifesta pelo paciente, reenlaçada pelo fio da atenção flutuante da escuta do analista, Freud põe em relevo a malha da experiência analítica, enquanto discurso tecido de um pela escuta de outro. A opacidade do dito torna a escuta psicanalítica antinômica à analogia da transcrição do registro conceitual que permitiria a equivalência dada numa tradutibilidade de sentido8.
Freud demonstra o quanto as práticas que privilegiam a transcrição ou a tradução não realizam a função analítica, mas ele vai além. Ele permite que possamos propor que as manifestações da criança escrevem um texto cifrado e que o deciframento dos hieróglifos nos ensina a ultrapassar a observação, porque nos ensina a ultrapassar a dislexia dos métodos de observação: nos ensina a ler a constelação significante que instala uma sintaxe, tantas vezes numa linguagem enigmática e alheia à língua.
Que possamos fazer uma hipótese dos valores dos termos dessa constelação sintática, partindo apenas das suas modalidades de articulação, permite que situemos a criança numa posição subjetiva em que seja possível suportar sua singularidade não partilhável, enfim, que possamos suportar que haja saber insabido, em cada criança.
Referências Bibliográficas
Allouch, J. (1994), Letra a letra, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1995.
Clavreul, J. (1983) A Ordem médica, São Paulo, Brasiliense.
Freud, S. (1905), Tres ensayos de teoría sexual, O C, vol VII, Buenos Aires, Amorrortu, 1992.
_____ (1914a), Contribución a la história del movimiento psicoanalítico, O.C., vol.XIV, Buenos Aires, Amorrortu, 1992.
_____ (1914,b), Introducción del narcisismo, O C., vol.XIV, Buenos Aires, Amorrortu, 1992.
_____ (1917), Sobre las trasposiciones de la pulsión, en particular del erotismo anal, O.C.,vol. XVll, Buenos Aires, Amorrortu, 1992.
Lacan, J. (1956) "Situation de la psychanalyse et formation du psychanaliste en 1956", Écrits, Paris, Seuil, 1966.
Milner, J-C. (1966), "Qu’est-ce que la psychologie?", traduzida em: Estruturalismo, org. E.P. Coelho, Santos, Martins Fontes, 1986.
Saurret,(1992), De l’infantile à la structure, Toulouse, Presses Universitaires du Mirail.
Vorcaro, A.,(1997), A criança na clínica psicanalítica, Cia de Freud, Rio de Janeiro.
1 Cf. Vorcaro (1997).
2 Sirvo-me da concepção que Jean Allouch (1995,p.15) nos oferece acerca da transcrição, que me parece extremamente fértil para pensar a questão da descrição classificatória, operada neste modelo de diagnóstico de crianças.
3 Sirvo-me das pontuações feitas por Jean Allouch (1995, p.16) acerca da definição de tradução, que demonstra grande pertinência em relação à clínica compreensiva.
4 Retomo a posição de Jean-Claude Milner (1986,p.227).
5 Sobre a relação entre as concepções de Freud e as de Lacan quanto aos registros simbólico e imaginário, Marie-Jean Sauret (1992,p.33 e segs) nos oferece uma excelente e detalhada abordagem.
6 Cabe lembrar que M-J. Sauret (1992, pp.33-4) diferencia, com toda pertinência, a criança concreta freudiana do registro do real. Como pode ser lido aqui, o que orienta a direção do registro do real não é a criança concreta descrita ou interpretada por Freud, mas aquilo que, na criança, intimou Freud à urgência de produção teórica e obstaculizou o acesso de Freud por via analítica.
7 Poderíamos supor que o caráter de desinteresse pessoal (que Freud já atribuíra ao seu estudo das paralisias em crianças) seria o mesmo que orientou sua afirmação posterior de que: <<A formação médica não é tão necessária para crianças de tenra idade. Ao concluir sua formação analítica, pode o psicanalista já se encontrar muito idoso para ainda ter paciência com elas>>? Ou seja, seria esse o incômodo de Freud?
8 A respeito deste tema, cf. Jacques Lacan (1966, pp. 459-491).