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On-line ISBN 85-86736-12-0

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Algumas conseqüências inesperadas do declínio da figura do professor tradicional

 

 

Dr. Estanislao Antelo

Dr. En Humanidades y Artes. Universidad Nacional de Rosario. Argentina. Pedagogo.

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende discutir os efeitos inesperados da desaparição da figura do professor tradicional. A desqualificação desta figura, ainda em pleno curso, em nome de uma suposta libertação, não parece Ter nos levado a liberdade almejada, mas ao contrário nos levou a novas formas de sujeição.

Palavras chave: professor tradicional, declínio, liberdade


 

 

A educação em si é em essência uma atividade conservadora. Um professor progressista é um conservador que esconde o lado retrógrado de sua atividade. Não passaria pela cabeça de um verdadeiro educador propor, como acaba de fazer o novo ministro de Cultura na Alemanha, a introdução da música pop no ensino escolar. Essa loucura pretensamente progressista oculta um núcleo vazio ou reacionário. Em resumo, teria que ser conservador com as riquezas adquiridas. Não se pode pertencer a uma civilização que se despreza. A civilização não consiste apenas em saber fazer, mas em saber apreciar a riqueza. E ser de esquerda equivale a combater a pobreza em todos seus âmbitos.

Peter Sloterdijk

 

Introdução

Em primeiro lugar quero fazer referência a um par de questões sobre o nome deste colóquio. Na realidade quero introduzir umas poucas dúvidas sobre o estado no qual se encontram os adultos e seus saberes em meu país.

Como sugere o romancista francês Michel Houellebecq, creio que um adulto é ou se parece bastante a um adolescente diminuído. Neste sentido a juventude ou a adolescência não é uma etapa a mais da vida. É o mais próximo à própria vida ou é a única etapa na qual é possível falar de vida no sentido estrito do termo. Para além do exagero do romancista, a verdade é que os jovens estão vivos e os adultos, muitas vezes, contemplam com nostalgia ou inveja semelhante vivacidade.

Sei que há hoje neste colóquio numerosos psicanalistas. Uns vinte anos atrás quando estudava certas curiosidades na universidade aprendi um conceito diferente: inveja do pênis. Na Argentina (vocês me dirão se no Brasil também) existe, a meu ver, outra forma desta inveja. Inveja do pênis do jovem.

Então é preciso dizer que quando se trata de falar dos adultos e de seus saberes convém de cara despojar-se desse estilo conservador, de direita ou de esquerda, que em nome da maior proximidade da morte iminente condena todas as formas da vida associadas à juventude e à infância. Não estou dizendo que é preciso dar a razão às crianças e jovens que, como também sabemos, costumam fazer um uso limitado da mesma. Estou dizendo, ou melhor, constatando, que os adultos em muitas ocasiões não sabem o que fazer com essa dose de vida. E a partir desta ignorância imposta terminam por fazer seguir uma política adulta que descreve como excessivos os jovens e excessiva a vida que exalam. Excessivos também o suficiente como para matá-los. Excessivos para encerrá-los ou excessivamente pobres para o consumo. Excessivamente "Pop", inclusive, para alguns.

Não sei se as notícias chegaram ao Brasil com a mesma pressa com a qual se difundem nas telas locais de jornais e televisores, mas agora mesmo, no meu país, se está debatendo a possibilidade de retornar a certo tipo de serviço militar obrigatório para jovens pobres ou diretamente encerrá-los em containers, contentores.

O que acontece é extremamente curioso, ao menos para mim: nunca houve tantos saberes adultos sobre jovens e crianças. Nunca na história do país houve tantos especialistas e ao mesmo tempo, ao que parece, nunca os adultos souberam menos o que fazer. Enquanto os ministérios e departamentos que se ocupam dos jovens transbordam de técnicos altamente capacitados e competentes, ninguém parece mais saber o que fazer. O único saber original que está ganhando força junto ao enclausuramento é o extermínio (Dussel: 2002).

Talvez seja tempo de perguntar o seguinte: Qual foi esse tempo no qual os adultos souberam o que fazer com os jovens? Refiro-me, está claro, a esse tipo de saber profissional que diz portar aquele que a um não-adulto se dirige. Porque ainda que seja verdade que esse tipo de saber profissional não pára de crescer e tornar-se mais sofisticado, tudo parece indicar que sua eficácia, sua capacidade de conectar-se a um fazer, titubeia.

Como em um tipo de paradoxo, parece que quanto mais contemplamos o crescimento desse saber profissional sobre como educar os que não são adultos, a sociedade não sabe mais como, para que e em nome de que educá-los. Os jovens e crianças aprendem rápido deste nosso desconcerto. Porque é preciso dizê-lo de uma vez: o desconcerto não é novo, mas é nosso, digo, dos adultos.

Uma frase que os educadores que trabalham nas instituições escolares utilizam e a partir da qual desdobramos uma série de trabalhos em meu país, mostra com clareza a magnitude do que está acontecendo: ninguém me preparou para isto. Enquanto isso, as crianças e jovens parecem estar bem preparados para habitar sua condição de crianças ou jovens. Como se o aumento das especialidades convivesse com o desconcerto adulto e um saber fazer dos não- adultos, indiferente.

*.*

Passo agora então ao que o título antecipava. As conseqüências inesperadas de um personagem em retirada: o professor tradicional. Todos temos um professor tradicional na cabeça. Não é preciso aprofundar-se muito em suas características. O que não todos temos na cabeça é a necessidade de estudar as conseqüências inesperadas de sua ausência. Na realidade, vivemos ainda festejando a desaparição desse malvado e tradicional professor sem examinar com calma os ganhos e perdas aos quais nos vemos confrontados.

Mas vejamos como funciona esta questão do declínio desse saber suposto e desse personagem: o professor tradicional. Vejamos em que se apoiava a ficção de que estávamos sim, em algum momento de nossa pedagógica vida, preparados para isto.

Como sabemos, a crítica pedagógica parece não poder viver se não for com sua satânica pedagogia tradicional por perto. Com estilos diversos, os manuais pedagógicos situam, logo no início, um obstáculo no caminho. Obstáculo que será um alvo preferido de desqualificações, ataques e juízos que são lançados ao ar com regozijo. As variáveis que são postas na mesa são as seguintes: internato, clausura, separação do mundo exterior, isolamento, vigilância constante, rigor, disciplina, regras e regulamentos, memorização, castigos, austeridade, desprezo pelo atual. No que se refere ao ensino, a Antigüidade é a referência única e maiúscula. Roma. Toda a matéria prima de nossa civilização ocidental veio de Roma. Pode-se, por tanto, prever que nossa pedagogia, os princípios fundamentais de nosso ensino vieram da mesma fonte, posto que o ensino não é mais que o resumo da cultura intelectual do adulto (Durkheim, 1990:46). Sua língua primordial: o latim. Seu método, o discurso e o exercício infinito. Seu estilo, a retórica. A operatória é simples e familiar. A época está desonrada e o único remédio é um transporte a outros países e a outros tempos para entrar em contato com os atletas exemplares, grandes homens, da Antigüidade. O distanciar-se no tempo trata mais de um princípio lógico que de uma modalidade caprichosa. Refiro-me ao princípio em virtude do qual o meio escolar deve ser, em grande medida, alheio ao século, ao tempo, às idéias que reinam nele e que apaixonam a seus homens (...) era uma espécie de axioma que uma civilização só adquire valor educativo com a condição de distanciar-se um pouco no tempo e de tomar, até certo ponto, um caráter arcaico. O presente estava sob suspeita; o educador devia esforçar-se em desviar os olhares das crianças de si; admitia-se implicitamente que a realidade presente é mais feia, mais medíocre, de um trato pior... (ibid:309). Outros tempos, outros mundos, outros homens. Preservar-se da pura atualidade1. Renunciar, predicar, ensinar e converter em um tempo que nunca é o de hoje. Estrangeiros em sua própria pátria (Snyders, 1974:18).

Um professor tradicional é neste sentido, um antigo, um velho. E o velho não tem em nossos tempos muita reputação.

No entanto, o tradicional precisa de um pensamento que vá mais além da ingratidão que parece provocar. Em primeiro lugar, é indispensável eliminar desta expressão (a pedagogia tradicional) todo seu sentido pejorativo, depreciativo, esse sentido que se tornou tão habitual entre nós depois da leitura dos teóricos dos "métodos novos" (...) talvez nos veremos obrigados a considerar que há valores nela que não podemos tratar pura e simplesmente com desprezo (Snyders, ibid: 53).

Para Giddens, a tradição2 gira ao redor dos seguintes elementos: rituais, solidariedades, repetições, durações, persistências, conservações, mutações, memórias, guardiões, intérpretes, rotinas. Mas a tradição encontra sua potência maior, como o destacou por outro lado Richard Sennet, em proporcionar algo assim como uma segurança ontológica3. Segurança proporcionada pelo trabalho do que se repete.

Richard Sennett, situado no centro desta questão, proporciona um exemplo que pode interromper tanto desprezo pelo que se repete: a rotina faz, ajuda a tecer, uma vida. O professor que insiste para que um aluno memorize cinqüenta versos de um poema, o que quer é ver a poesia armazenada no cérebro de seu aluno, como dado sempre disponível e utilizável para julgar outros poemas (...) A rotina pode degradar, mas também pode proteger; pode decompor o trabalho, mas também compor uma vida (...) Imaginar uma vida de impulsos momentâneos, de ações a curto prazo, desprovida de rotinas sustentáveis, uma vida sem hábitos, é, no fundo, imaginar uma existência sem sentido (Sennet, 1999:34). Este algo que persiste, requer um pensamento sobre a duração e a conservação. Giddens oferece uma pista: a tradição, tal como eu a concebo, está ligada à memória. Memória que requer do ritual (enquanto este enreda a tradição com a prática e lhe confere uma autonomia temporal da qual podem carecer tarefas mais mundanas), dos guardiões4 (anciões, curandeiros, feiticeiros ou funcionários religiosos, têm a importância que têm no que diz respeito à tradição, porque acredita-se que são os agentes, os mediadores essenciais, de seus poderes causais. São traficantes do mistério, mas suas secretas habilidades provêm mais de sua vinculação com o poder causal da tradição, que de seu manejo de algum corpo de conhecimento secreto ou esotérico) e de uma verdade a ser custodiada. Esta verdade, que Giddens denomina formulária não é de livre acesso, requer intérpretes e guardiões específicos. Esta verdade não é do tipo que seja possível impugnar, mas é de obrigatória obediência. A verdade formulária é uma atribuição de eficácia causal ao ritual; os critérios de verdade se aplicam aos eventos causados, não ao conteúdo proposicional dos enunciados.

Velhos, antigos, repetição, conservação e memorização.

Os atos escolares, próprios da pedagogia tradicional, pertencem a esta marca. Toda tentativa de explicar racionalmente as motivações do hasteamento inclemente, incompreensivelmente matinal da bandeira, ou o tédio solene e poderoso das festas patróticas com suas palestras sarmentinas, não menos incompreensíveis e entediantes, ou de filas, sinais e distâncias, etc., choca com a veemência desta crença particular do habitante de uma tradição, e convém por via das dúvidas recordar que todos o somos. Neste sentido deve ser lido nosso juízo acerca do caráter inútil do que se ensina: inútil buscar nele um conteúdo proposicional onicompreensivo. A tradição, poderíamos dizer, tem mais relevância quando não é compreendida como tal (Giddens, ibid: 16). Neste sentido questionar o caráter normativo ou moral da tradição é questionar sua possibilidade. Porque não se trata apenas de um quadro do que se faz, mas de um must. A tradição indica o que se deve fazer, e o que se deve fazer foi para certa modernidade pedagógica, ir à escola e trabalhar. Como um clube, oferece carteirinha. Como a astuta publicidade dos cartões de crédito, na qual pertencer tem seus privilégios.

Poderíamos então dizer que um professor, um de nossos professores estava preparado para isto, sempre que entendamos por isto o que a pedagogia costuma chamar de tradicional.

*.*

Para resumir em umas poucas linhas, parece que vivemos tempos nos quais nos despojamos dessa coisa chamada tradição. Libertamo-nos dos laços com o passado, do cansaço das hierarquias e das autoridades fixas, das proibições e das disciplinas rígidas. Assistimos à ininterrupta ampliação do campo do possível. As decisões, nossas decisões e não as tomadas por tribunais exteriores, parecem recobrir todo o campo da experiência. Vemos também, com doses variadas de nostalgia, a retirada dos guardiões, custódios, que cedem seu lugar a especialistas, "personal trainners" da própria vida.

Nós, os pedagogos, presenciamos a desaparição do tradicional mandarim anacrônico professor tradicional, que todos amamos e detestamos e à desintegração dessa instituição, única em abrigá-lo, cujo nome, por enquanto, continua sendo Escola.

Então?

Se a pedagogia, como reflexão sistemática sobre a educação tem ainda alguma chance, deveria buscá-la entre os restos de um terreno que se desintegra. Mas da novidade não se desprendem os cursos de intervenção necessários. Como pedagogos devemos fazer uma análise das conseqüências inesperadas da dissolução das estabilidades passadas. É que uma vez que supostamente deixamos para trás tradições, mandatos e proibições, não encontramos em sua pureza, a liberdade prometida, mas pelo contrário novas e mais eficazes formas de sujeição.

Vou referir-me de maneira sucinta a algumas destas conseqüências inesperadas

Como sabemos o vínculo ou a relação chamada social era como o coração do tipo de sociedades nas quais crescemos e fomos à escola. Vínculos conflituosos, mas vínculos ao fim, entre explorados e exploradores, dominantes e dominados. Como se sabe, um conflito implica mais que um. E a sociedade na qual crescemos requeria, para expandir-se, de relações. Estas relações para alguns, não eram boas relações, mas mais exatamente relações perigosas, mas relações ao fim. Muitos de nossos avós detestavam seus patrões, mas tinham alguma coisa, pelo menos, com e contra os patrões de turno. Uma relação de dependência e liberação, ou de amor e ódio, ou de desejar fugir, sair, escapar do cansaço desses patrões, chefes, pais, professores e senhores. Muitas de nossas mães suportavam o patriarca machista e tirano - também de turno- mas tinham algo contra e com esses tiranos. Muitos de nós odiávamos até o cansaço a nossos sádicos professores, mas algo tínhamos com e contra eles. Richard Sennett mostrou-o com clareza nesse lindo livro cujo último capítulo se chama sem reparos: Nós, um pronome perigoso.

Um dos signos da época aponta que essa segurança ontológica que proporcionava a autoritária, rotineira e enciclopedicamente maligna pedagogia tradicional -contra a qual todos aprendemos a pensar a educação- não tem lugar. Tudo parece indicar, como marca Slavoj Zizek, que já não temos a ordem pública da hierarquia, a repressão e a regulação severa, subvertida por atos secretos de transgressões libertadoras (Zizek: 2001; 366).

O que em geral se omite é que aquilo que se desintegra (aquilo contra o que muitos de nós lutamos para que se desintegre) foi ao mesmo tempo a estrutura que engendrou o sujeito crítico "autônomo", capaz de enfrentar a ordem social predominante sobre a base de suas convicções éticas (Zizek: 2001; 365) Para dizê-lo de maneira mais simples fomos a este tipo de escolas que acabo de descrever e podemos contá-lo. Em outro lugar apresentei este paradoxo: a escola anacrônica que ainda podemos recordar com doses variadas de amor, nostalgia e ressentimento, ensinou-nos o elementar desejo de sair e lutar. Crescer. (Antelo: 2003)

Se algo se modificou nestes tempos é que ninguém, nenhum adulto visível, disponível, tem essa chave que dava acesso ao mundo, a chave, a da Mandala. Ninguém manipula os fios5 e ninguém parece indicar-nos o caminho. Isto costuma ocorrer uma vez que já não dispomos de tribunais exteriores a quem confiar nossa inércia crônica na hora de tomar decisões. Já não estamos submetidos a coações exaustivas. Como aponta Ehrenberg (2000) a modernidade democrática - e isto constitui sua grandeza – converteu-nos progressivamente em homens sem guia: fomos postos na situação de ter que julgar por nós mesmos, e de construir nossos próprios referenciais. Convertemo-nos em indivíduos puros, no sentido no qual nenhuma lei moral, nenhuma tradição vem indicar-nos a partir do exterior o que devemos ser e como devemos conduzir-nos6.

O certo é que, ao que parece, vastos espaços de nossas vidas são agora produto direto de nossas decisões e escolhas. Vastos espaços de nossas vidas foram colonizados pela compulsão a decidir. Pode-se - de fato muitos o fazem - chamar esta manobra de politização de nossos comportamentos. Um problema simples se desdobra diante de nós. Se o conflito (seja psíquico ou político) regulava as relações sociais nas quais crescemos, o declínio do conflito, mais que politizar, despolitiza e o homem contemporâneo, escravo de si mesmo, padece de uma estranha dupla enfermidade: doente de autonomia. Doente de responsabilidade. Também foi Richard Sennett que nos advertiu sobre os paradoxos da autoridade e da autonomia. O nome de um dos capítulos de seu maravilhoso livro chamado "A Autoridade", é por si mesmo ilustrativo. A autonomia: uma autoridade sem amor (Senett: 1982).

Na verdade, o que acontece é que não parecem estar garantidas as coordenadas básicas que nos permitiam entender o que ficou em pé do que há pouco tempo atrás chamávamos uma relação humana. Ou, para ser mais fiel, é a idéia mesma do humano o que está em questão. Por um lado, não há, não parece haver mais, patrões, chefes, pais, autoridades fixas e tradicionais. Há muita gente solta, vários expulsos e numerosos deserdados. A paisagem da terra vulnera nossa capacidade descritiva. Mas, além disso, também se tornou complicado localizar alguma forma de relação humana que esteja determinada de antemão, pelas relações econômicas, pelo sangue, pelo que seja. Como se o funcionamento social pudesse prescindir desses vínculos. O paradoxo é o de uma sociedade de redes na qual ninguém quer enredar-se, ou, como dizem os jovens, sem histórias, sem "rolos".

Outra vez, Michel Houellebecq, tem sua própria versão dos fatos: De qualquer forma, atualmente as pessoas tornam a ver-se em poucas ocasiões, mesmo quando a relação começa com entusiasmo. Às vezes existem conversações inspiradoras sobre aspectos gerais da vida; às vezes também há abraço carnal. De fato, há trocas de números de telefone, mas em geral um lembra-se pouco do outro. E mesmo quando um se lembra e os dois voltam a ver-se, a desilusão e o desencanto substituem rapidamente o entusiasmo inicial (...) Se as relações humanas tornam-se progressivamente impossíveis, é por essa multiplicação dos graus de liberdade cujo profeta entusiasta era Jean-Ives Frehaut. Ele não teve, tenho certeza, nenhuma relação; seu estado de liberdade era extremo... Além disso, a maioria das pessoas admite vagamente que qualquer relação, em especial qualquer relação humana, se reduz a uma troca de informação... Não gosto deste mundo. Definitivamente, não gosto. A sociedade na qual vivo me aborrece (...) Falta de tudo a este mundo, salvo informação suplementar.

As relações tornam-se progressivamente impossíveis. E se ninguém parece estar no comando, se o que resta das instituições não consegue encarregar-se do destino dos homens, encontramo-nos na situação ideal de Dennis Hooper em Easy Rider (Sem destino). O destino, em nossas mãos, mas sem Harley Davidson. A vida é como a vivemos, ou, como cada um decide vivê-la.

Este caráter onipresente da escolha-decisão é um dos nomes do que se chama reflexividade. Ainda que muitos dos argumentos dos gestores pós-tradicionais sejam convincentes, nem todas as conclusões que fazem seguir de suas argumentações geram minha adesão. Basicamente, creio que lhes escapam algumas das conseqüências inesperadas dessas mesmas transformações que descrevem. Escapa aquilo que Slavoj Zizek decidiu chamar de o mal-estar na sociedade de risco na qual o que parece estar ameaçado realmente, não são apenas os marcos de referência confiáveis - a tradição ou o que seja - mas a instituição simbólica em si, no sentido muito mais importante do funcionamento da ordem simbólica: com a chegada da sociedade de risco, fica potencialmente solapada a dimensão performativa da confiança e do compromisso simbólicos (Zizek: 363)

Enquanto alguns fazem decorrer da desintegração da tradição um mundo não-feliz, mas sim, mais reflexivo, subestimam o papel da retirada da confiança cega, isto é, em um ponto, não refletida, na desintegração das tradições. Ou, para dizê-lo novamente em "Zizekês", omitem que a desintegração desse mundo tradicional é o resultado direto da reflexividade universalizada (Zizek: 2001; 363).

Quero dizer que enquanto para os estudiosos da sociedade de risco a reflexividade é a conseqüência necessária da desintegração desses marcos estáveis de referência, na minha maneira de entender, é a própria reflexividade que solapou esses marcos de referência estáveis, tornando confusa toda possibilidade de agarrar-se a qualquer marco. O homem à deriva de que fala Richard Sennett não é uma marionete. É um ser responsável por seu destino. Livre, racional e com capacidade de tomar decisões, assumir riscos e lutar contra incertezas, elaborar projetos, e empreender. Quase um autêntico profissional, no sentido em que caracterizam os pedagogos pós-tradicionais, ao novo professor.

A profissionalização que se oferece como substituta da figura do professor tradicional, é um manjar tentador. Com efeito, ninguém está disposto a recusar os benefícios (de vários tipos) supostos que a atualidade obsequia aos novos e eficientes profissionais da educação. De acordo.

O assunto é que não vejo como da profissionalização do ofício decorre a confiança e o compromisso. Não vejo como uma maior reflexividade possa contribuir em dotar de eficácia a uma máquina que sangra, a meu entender, por sua reflexividade manifesta em seu afã de incansável reformismo. Marcelo Carusso proporcionou a chave para analisar o estatuto da confiança, e a eficácia da palavra pedagógica, ao formular as seguintes questões: Não é constitutiva da cena do ensino a crença na transformação do sujeito? Não é constitutiva da obrigatoriedade escolar a crença na possibilidade de reprodução e de produção social através de instituições de transmissão do saber? Estas crenças foram constituídas historicamente, ao interior das redes de poder, foram produzidas como lógicas de dominação, de emancipação etc., mas não existem instituições sociais -nem educativas- que funcionem para além deste registro no qual autoridade e crença tornam-se fundamentais para o funcionamento da transmissão" (Carusso: 2001).

Se nós, os adultos, encontramos dificuldades na eficácia desses saberes com os quais nos dirigimos aos não-adultos, talvez seja o momento de examinar em detalhe o que obtivemos em troca da desaparição do professor tradicional

E para além de certas fantasias de auto-engendramento dos pedagogos partidários da profissionalização, para além do erro evidente de desenhar uma sociedade sem adultos e sem problemas de educação, ninguém quer, supondo que isto fosse possível, retornar a essa segurança previsível e amena das âncoras tradicionais. Portanto, não deveria nos alterar o fato que nas escolas se ensine uma ou outra música. Deveria nos alterar o fato de que ainda algo possa nos alterar já que essa é, a meu ver, nossa maior riqueza.

Não é voltar o verbo que pode abrir um caminho para aquele que se propõe dar conta do estado dos adultos e de seus saberes no terreno educativo. Talvez seja diferir e talvez crer. E que, em todo caso, na arte de crer, alterar e diferir, proporciona vigor à desproporcionada promessa educativa aparentada sempre com a ilusão necessária de que em troca da distribuição mais ou menos sistemática de algum ocasional conhecimento, o que se obtém é a transformação do ser.

 

Referências Bibliográficas

ANTELO, Estanislao (2003). Tarea es lo que hay. En Enseñar Hoy: Una introducción a la educación en tiempos de crisis. Dussel, I: Finocchio, S (Comp.) Buenos Aires. F.C.E.

CARUSSO, M. (2001) Autoridad, gramática del cristianismo y escuela: breves reflexiones en torno a "Lo absoluto frágil" de Slavoj Zizek. En Cuaderno de Pedagogía Rosario Nº 9. Laborde: Rosario

DURKHEIM, Emile (1990) Historia de la educación y de las doctrinas pedagógicas. La evolución pedagógica en Francia. Madrid: La Piqueta.

DUSSEL, Inés (2003) La escuela y la crisis de las ilusiones. En Enseñar Hoy: Una introducción a la educación en tiempos de crisis. Dussel, I: Finocchio, S (Comp.) Buenos Aires. F.C.E.

EHRENBERG, Alain (2000) La fatiga de ser uno mismo. Depresión y sociedad. Bs. As: Nueva Visión.

GIDDENS, Anthony (1994) La vida en una sociedad post-tradicional. En Revista Agora N° 6/Verano de 1997. Bs.As.

GIDDENS, Anthony (2000) Un mundo desbocado. Los efectos de la globalización en nuestras vidas. Madrid: Taurus.

SENNETT, Richard (1999). A corrosao do caracter. Consequencias pessoais do trabalho no novo capitalismo. Record. Río de Janeiro.

SENNETT, Richard (1982) La autoridad. Madrid. Alianza.

SNYDERS, Georges (1974) Los siglos XVII y XVIII. En Historia de la pedagogía II. Debesse, M. y Mialaret, G. Barcelona: Oikos-Tau.

ZIZEK, Slavoj (2001) El sujeto espinoso. Bs.As. : Paidós.

 

 

1 e sobretudo, sente-se assombro e indignação diante de um ensino que busca isolar do mundo a criança, que não a põe em contato com os seres e a coisas atuais; acredita-se ou se quer fazer acreditar que se deve à torpeza dos educadores ou ao erro na confecção dos programas, quando de fato é a própria intenção desta educação manter o aluno fora dos riscos e das controvérsias do atual (Snyders:1974;35).

2 Tal como Giddens põe em relevo as raízes lingüísticas da palavra tradição são antigas. A palavra inglesa tem suas origens no termo latino tradere, que significava transmitir ou dar algo a alguém para que o guarde. Tradere era usada originariamente no contexto do Direito Romano, no que se referia às leis da herança. A propriedade que passava de uma geração a outra se dava na administração, o herdeiro tinha obrigação de protegê-la e conservá-la (Giddens, 2000:52).

3 Para Giddens a identidade é a criação de permanência no tempo, a articulação do passado com um futuro antecipado ((Giddens: 1994:;31 a tradição é um medium de identidade. Nós e os outros, eles e nós. Ou se é cristão ou pagão, do Boca ou do River (referência a times de futebol argentinos N.T.).

4 Os guardiões, bem diz Giddens em uma advertência de tremenda atualidade, podem parecer, mas não são os especialistas contemporâneos. As qualidades dos guardiões não são comunicáveis a estranhos. É o status e não a competência a característica primeira do guardião. A dissolvida palavra santa da professora deve ser lida neste registro.

5 Aqui o autor refere-se àquele que manipula os fios de uma marionete (N.T.)

6 Não encontrei até o momento uma argumentação mais sugestiva sobre as conseqüências inesperadas desta transformação que este texto repleto de idéias para compreender o descalabro escolar provocado, ao que parece, pela ausência de limites, modelos ou referenciais e os sempre bem dispostos chamados a restaurar hierarquias e autoridades que lhe sucedem. Trata-se de Ehrenberg, que diz que mais que à ausência de referenciais assistimos à sua multiplicação. EHRENBERG, Alain (2000) La fatiga de ser uno mismo. Depresión y sociedad. Bs. As: Nueva Visión.