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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

A infância e a educação: o futuro de uma ilusão

 

 

Marcia Neder Bacha

 

 


RESUMO

Neste trabalho discute-se a ilusão instalada modernamente de se ver um adulto potencial na criança, o que acarreta inevitavelmente um certo apagamento do infantil. Tomado como diabólico o que é infantil deve ceder a razão. Discute-se também a posição do educador imerso neste estado de coisas.

Palavras chave: infância; ilusão;educação


 

 

De fato, e que futuro!

As nossas teorias e práticas educacionais travam uma verdadeira batalha com o infantil, embora o façam de um modo bem disfarçado. Já a definição mesma da educação como adaptação do indivíduo, das pulsões, da criança, enfim, ao mundo social do adulto - definição partilhada por psicólogos e psicanalistas dos mais variados matizes -, institui essa guerra contra o infantil como o objetivo de qualquer formação.1

Nas origens da nossa civilização, esse disfarce é inteiramente inexistente. Regredindo ao mundo antigo nós vemos que a criança é um ser diabólico – mesmo que Jesus a declare inocente. Ou será por isso que ele deveria atestar essa inocência?

Para o maniqueísmo, que é a seita a que Santo Agostinho pertenceu antes de se tornar cristão, a procriação é coisa do diabo. Nas suas Confissões ele evoca a sua infância com vergonha e culpa, e questiona enfaticamente a suposta inocência das crianças.2

Esse mesmo coro vai ser entoado durante séculos pela civilização ocidental, até o início dos tempos modernos. O estribilho invariável desse coro será sempre o medo, a raiva, o ódio, a desconfiança que os adultos sentem em relação à criança que eles pensam um dia terem sido. Teólogos e pregadores multiplicarão imagens terríveis de Eva e seus filhos para advertir os homens do perigo que encarnam.

Que perigo seria esse?

Agostinho, Ambrósio, Tertuliano, como tantos outros padres da Igreja, vêem na criança a mãe. Eles têm aversão à maternidade e não se preocupam em ocultar a repulsa que ela evoca. A sombra temível da criadora paira sobre a criatura. Não surpreende que o infanticídio seja prática comum (exceto para os judeus, que foram acusados de não matar seus recém-nascidos). Tendo sido legalmente definido como assassinato no ano 374, continuou sendo praticado em segredo ou disfarçado como acidente até o final do século XVII.

Ainda neste século XVII, o chefe de um dos maiores movimentos pedagógicos refere-se ao infantil como "o estado mais vil e mais abjeto da natureza humana depois da morte". Um outro pedagogo, nas suas Regras da educação de crianças, argumenta que é necessário amar as crianças e vencer a "repugnância" que elas inspiram ao "homem racional" (Badinter, 1985).

Por essa época já é possível distinguir o disfarce no manifesto do discurso sobre o infantil, que nos distancia da Antigüidade. A "repugnância" que ele provoca será agora atribuída ao ser irracional da criança. Segundo Descartes, a criança é um ser vil porque vive numa intimidade promíscua com a imaginação e a sensibilidade, o que a condena ao erro. A razão fálica, se é que podemos empregar essa expressão, não tolera fantasias, como aprendemos com o conteúdo latente da leitura do mito de Édipo.

Desde então e cada vez mais a malignidade natural da criança da antiguidade pagã será soterrada por aquela outra imagem ideal, da criança inocente, pura, irracional e primitiva - belo retrato da natureza ainda não maculada pela cultura que será tão enaltecido por Rousseau no século XVIII. Em outros termos, ainda que recalcado, o ser diabólico sobreviverá ao reinado da criança moderna, cujo nascimento será celebrado com a publicação do Émile (1762, Rousseau). Lá como cá o infantil é um mal do qual todo homem deve ser curado, pois evoca a sedutora perversa, tanto faz se de modo explícito como em Santo Agostinho ou indireto, pela via da loucura e do irracional. O cordão umbilical não se desfez no inconsciente, onde continua a ligar uma mãe a seu filho.

Pois bem: a epistemologia criada por Gaston Bachelard propõe uma psicanálise dos conhecimentos objetivos. Ela convida-nos a psicanalisar os conhecimentos objetivos, psicanalisar as teorias, para distinguir os fantasmas que rondam os conceitos e divisar os mortos-vivos soterrados sob as construções da razão.

Por meio de uma psicanálise das teorias e práticas psi sobre a infância, pude avistar uma hostilidade ao infantil que permanece latente no mundo contemporâneo. E neste contexto situar a educação escolarizada que se expande a partir daquele século XVIII. Minha hipótese é que caberá à escola o expurgo, em cada um, do feminino e da criança que Ela carrega.

No inconsciente a criança evoca um fantasma originário ao mesmo tempo ameaçador e paradisíaco, que é o fantasma incestuoso. Mas fantasma incestuoso compreendido não como a união genital entre um filho e seu progenitor. O incesto que aqui se teme e se deseja é a volta numa união mortal a um ventre voraz e devorador como a Esfinge, cujo nome é "a Angustiante". E o Édipo em questão é mais do que mostra a difusão de sua imagem, segundo a qual a criança é assassina potencial do pai, jamais da mãe.

Essa interpretação do Édipo, embora aceita e interminavelmente repetida, denega a agressividade nas relações entre uma mãe e seu filho, encobrindo a destruição do feminino que se pode ler na tragédia. C. Stein diz que no uso que os psicanalistas fazem do mito, Édipo é cultuado como santo e celebrado como herói, enquanto Jocasta é hostilizada e a figura materna é feita objeto de desconfiança.

"Santo Édipo", contudo, fez a Esfinge lançar-se no despenhadeiro e ainda provocou a morte de Jocasta com sua insistência em prosseguir investigando suas origens, a despeito dos pedidos da mãe. Com a misoginia, definidora da cultura, a humanidade repete o crime do rei sábio, matricida.

Nicolas Abraham também ironiza a ingenuidade daquela versão mais cultuada, observando que é o ódio que move o herói. Ele diz: Se vocês acreditam na imagem "de um Édipo galante, cavalheiro protetor de sua dama, amante ciumento de sua dama, homúnculo libidinoso de sua dama, percam as ilusões! O que o anima é o ódio, é a agressão (...). Onde passa Édipo, não brota nada. Desde que o mundo é mundo, inutilmente, a humanidade luta contra o ódio de Édipo" (1995, p.316).

A quarentena escolar isola os portadores dessa doença infantil, contagiosa como a raiva e o cólera, enclausurando a criança num mundo próprio, afastado do mundo adulto. Sobre o recalque da criatura diabólica e suas pulsões demoníacas, a escolarização da infância institui a criança pura razão, dando futuro a essa ilusão da modernidade que poderíamos chamar de Édipo secundário, para o distinguir, com Claude Le Guen, do Édipo Originário.

Como o herói do conhecimento salvo pela potência do seu intelecto de ser devorado pelo canto enigmático da Esfinge, a criança escolarizada será também a criança pura razão. Como Édipo, que silencia sua sensibilidade-sensualidade, ela será levada a cruzar o limiar da razão pela destruição do feminino e do infantil. A razão fálica é a cura do mal contagioso.

A iniciação no logos se dá pela via de um combate violento para domesticar o irracional e enterrar a potência materna. Monique Schneider diz que é para encobrir a destruição da mãe que Freud faz dela um puro objeto de amor para o menino. Nicolas Abraham chama de "o ódio de Édipo" a paixão purificadora do logos ; é o ódio do teórico porque para ele toda resolução de enigmas só pode tomar a forma de uma destruição das potências originárias, de uma vitória sobre a Esfinge. Essa concepção higiênica quer eliminar da teoria todo o risco de pathos, toda irrupção da esfera do sensível materno. Édipo seria a encarnação de uma vontade separadora, de uma tendência à exterioridade e à agressão, sendo o pólo masculino da constituição bissexual, nos termos de Conrad Stein em "A castração como negação da feminilidade". Este pólo estaria em luta com o feminino, que encarna o desejo de fusão, a tendência à interioridade, manifestações de Eros.

O intelectual é considerado um herói porque destrói o apelo da infância derrotando o monstro das origens, voraz e maternal. Mas, segundo Monique Schneider, heróico mesmo ele seria se ao invés de calar o canto da Esfinge, tivesse a coragem de se deixar embalar, de se embrenhar pelo interior de suas cavidades sombrias.

O sistema racional meticulosamente planejado por Coménius, fundador da pedagogia, expandiu-se cada vez mais no tempo e no espaço: sua escola-relógio foi criadora o suficiente para dar futuro ao sujeito moderno, sujeito epistêmico, sujeito da ciência. Olhando o presente com os olhos no futuro, olhando a criança como se ela fosse um adulto, a escola-relógio soterra a criatura maligna derrotando a Angustiante.

Mas seu canto envolvente retorna sempre em qualquer formação, posto que a formação confronta, no inconsciente, uma criatura seduzida e a sedutora perversa. Esse novo livro de minha autoria que este Colóquio está lançando (A arte de formar. O feminino, o infantil e o epistemológico) trata dos percalços de uma formação, obrigada sempre a enfrentar a aparição desse fantasma originário figurado por uma Jocasta, uma Epicasta, uma Esfinge ou uma Circe, a feiticeira encantadora encontrada por Ulisses em sua Odisséia e especialista em metamorfosear homens em animais.

Apesar da "paixão germicida" escolástica, uma epistemologia psicanalítica mostra que o seu fantasma pode ser visto assombrando as teorizações sobre o infantil e as práticas da educação. Da luta que se trava no subsolo dessas construções racionais a educação emerge como a instituição de uma guerra contra o infantil.

 

Referências Bibliográficas

Abraham, N. (1995) "A Criança Maiúscula ou a Origem da Gênese" in A Casca e o Núcleo, N. Abraham e M. Torok, SP: Escuta

Agostinho (1980), Santo Confissões, SP: Abril Cultural, Os Pensadores.

Ariès, P. (1978) História Social da Criança e da Família, RJ: Zahar.

Badinter, E. (1985), Um amor conquistado. O mito do amor materno, RJ: Nova Fronteira

Bacha, Marcia S. C. Neder (1998) Psicanálise e Educação: Laços Refeitos, SP: Casa do Psicólogo, CG: Ed. UFMS

____________(2000) Édipo de Quarentena. Escolarização da Infância: Humanidade X (o ódio de) Édipo, Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, SP, 5, (8), 112- 133, SP.

____________ (2000)Um Édipo Tupiniquim? O inconsciente na cultura, Percurso. Revista de Psicanálise, SP, 13 (25).

____________ (2002) Um Édipo Invejoso? As tetas da sapiência, Percurso. Revista de Psicanálise, SP, 15 (28), 91-100.

____________ (2002) A Arte de Formar. O feminino, o infantil e o Epistemológico, Petrópolis: Vozes.

Bachelard, G. (1996) A Formação do Espírito Científico. Contribuição para uma Psicanálise do Conhecimento, RJ: Contraponto.

Coménio, J. A. (s/d), Didáctica Magna. Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

Homero Odisséia (1981) SP: Abril Cultural

Mezan, R. (1988) "A vingança da Esfinge", in A vingança da Esfinge. Ensaios de psicanálise, São Paulo, Brasiliense

_________(1998) Tempo de Muda. Ensaios de Psicanálise, SP: Companhia das Letras

Rousseau, J.-J. (1973) Emílio ou da Educação. SP: Difusão Européia do Livro.

Schneider, M. (1980) La parole et l’inceste, Paris: Aubier Montaigne.

____________(1993) Afeto e linguagem nos primeiros escritos de Freud, SP: Ed. Escuta

Stein, C. (1988) As Erínias de uma mãe. Ensaio sobre o ódio, SP: Escuta.

________(1997) A morte de Édipo, RJ, Revinter

 

 

1 Desenvolvi essa questão em Psicanálise e Educação. Laços Refeitos.

2 Cf., de minha autoria, Édipo de Quarentena. Escolarização da Infância: Humanidade X (o ódio de) Édipo.