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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

A escola e a palavra pública: apontamentos para uma reflexão em educação e psicanálise.

 

 

Maria Cecília Cortez Christiano de Souza

 

 


RESUMO

Este trabalho discute a importância da retomada do papel da palavra pública nos objetivos da escolarização. Possuidora de regras e dinâmica diferentes e irredutíveis a língua escrita, a palavra pública tem um papel decisivo nos jogos sociais de poder, tornando imprescindível a escola um resgate desta dimensão, modernamente preterida em prol da língua escrita.

Palavras chave: palavra pública; poder; escola


 

 

"É nessa dimensão que uma palavra se situa antes de tudo. A palavra é essencialmente o meio de ser reconhecido. Ela está lá antes de toda coisa que está por detrás. E, é por lá que ela é ambivalente, absolutamente insondável. O que ela diz, é verdade? É o que não diz, é verdade? É uma miragem. É essa miragem primeira que vos assegura que estais no território da palavra."

J. Lacan

 

O resgate da língua falada na escola, atualmente, constitui problema essencial da democracia e da escola pública brasileira. Naturalmente, não se trata apenas, nem principalmente, daquilo que a Escola Nova defendeu há cinqüenta anos atrás: hoje, como nunca, os alunos falam e conversam na escola, dentro e fora das aulas. Tratar -se de outro tipo de fala, desconhecida pelos alunos e professores - trata-se da fala em cena pública.

Na internet proliferam anúncios de cursos e treinamentos de executivos e profissionais liberais que prometem o domínio do falar em público. Como eles, muitos professores, profissionais da palavra, manifestam fobia de levantar a voz na cena pública. Associado usualmente à timidez ou a sintoma psíquico, esse medo tem história, função e mapeamento político e social claro: são os oprimidos os que não ousam abrir a boca e os que se deixam falar pelos outros.

Entretanto, as elites brasileiras aprenderam a arte da retórica durante séculos na escola e na universidade e, no berço, a desenvoltura verbal e a capacidade de articulação. Ao contrário, para quase toda a população, a escola, como hoje a televisão, foi instituição que disciplinou o silêncio e a alienação da palavra. Cem anos depois de se ter decretado na escola o desaparecimento do ensino da oratória, a questão do aprendizado da fala pública está novamente na ordem do dia.

Até bem pouco tempo, o qualificativo "retórico" tinha conotação pejorativa. Fernando de Azevedo, na década de trinta, denunciava o domínio da palavra pública como vício de elites ociosas, descomprometidas com o progresso; caracterizando-o como saber superado, inadequado à modernidade, típico do atraso de uma terra de bacharéis. Hoje, olhando à distância, compreendemos que a retórica constituía, na verdade, saber apropriado ao exercício do comando, da direção da sociedade; era adequada ao poder de convencimento, que apura a expressão poderosa e elabora juízos eruditos; saber pertinente ao domínio de um instrumento poderoso - a palavra – que afrontaria e inferiorizaria, segundo Fernando de Azevedo, o homem comum, o "ignorante", o "simples".

Como se sabe por meio da história da educação brasileira, as camadas populares resistiram quanto puderam à imposição do ensino técnico, prático e profissionalizante que lhe foi destinado pelas sucessivas reformas educacionais do século vinte. A aspiração das camadas populares pela escola que desenvolvia a eloqüência revelava uma intuição aguda de que esse tipo de saber, que nela se reproduzia e se certificava, era instrumento de acesso mundo privilegiado dos que exercem a influência. Por trás da aparência ornamental, era chave para assimilar e elucidar o mundo do poder. Por desejo de ascensão social ou por puro pressentimento, as camadas populares perceberam que só tendo acesso àquele conhecimento conseguiriam desvendar os seus mistérios. Barroso, (1999). A restauração da palavra falada na escola parece ter confirmado seu discernimento.

A atual preocupação pela cidadania ativa levou a fala pública a tornar-se um objetivo do ensino fundamental, preocupação dos Parâmetros Curriculares Nacionais: "Ensinar língua oral deve significar para a escola possibilitar acesso a usos da linguagem mais formalizados e convencionais, que exijam controle mais consciente e voluntário da enunciação, tendo em vista a importância que o domínio da palavra pública tem no exercício da cidadania". ·(PCN, 1997)

O restabelecimento da palavra falada pode ser analisado, num outro plano, como uma ressonância de uma segunda revolução ocorrida na lingüística, posterior ao linguistic turn da década de 70. Trata-se da reviravolta que obrigou à crítica da concepção que, desde Saussure, assegurava ser lingüística a ciência da linguagem falada - e a escrita, mera representação da oralidade. Dito de maneira breve: na perspectiva da lingüística clássica, a escrita era definida como um modo simplesmente diferenciado de comunicação lingüística. As distâncias que separavam a linguagem escrita da linguagem oral eram consideradas dentro de uma escala de continuidade, pois se pensava que ambas tratavam da mesma língua materna, do mesmo léxico, da mesma sintaxe. As diferenças de normas (os registros de enunciação eram mais exigentes na escrita do que na fala, por exemplo) eram tomadas como diferenças de grau e não de qualidade. A anterioridade e a universalidade da palavra sobre a escrita, além do mais, conduziu os lingüistas a pensar que trabalhavam prioritariamente sobre a fala, suposta como independente da escrita, enquanto que a escrita, sempre secundária, seria uma forma fixa, portanto empobrecida, da língua viva. Essa ilusão foi aumentada porque justamente o setor mais inovador da lingüística,fonologia, consistia na análise da linguagem sob essa dupla articulação dos sons elementares ou fonemas e as palavras, sempre usando o som como unidade elementar, como categoria apreensível do oral.

Estas evidências, porém, apareciam como evidências apenas nas sociedades escritas; tão bem nelas foram assimiladas as práticas do escrito que não se apercebeu até que ponto que toda a concepção de língua era modelada pela escrita. Porém, como Vygotsky e Goody demonstraram, a escrita não introduz simplesmente um segundo código de comunicação que duplica o primeiro, tendo a comodidade de ser durável. Na realidade, ela estabelece uma modalidade nova e irreversível de pensamento, a razão gráfica, como diz Jack Goody, irredutível à lógica da oralidade. Fazer contas, listar, olhar uma tabela na dupla dimensão do espaço gráfico, são gestos mentais que não tem equivalentes possíveis na cadeia falada, são instrumentos que modificam de forma indelével a relação do sujeito com os objetos evocados e que vão, progressivamente, modificar de forma crucial o que se sabia acerca da língua. Tomar consciência dessa razão gráfica significou tomar distância também do que se conhecia da fala. A fala se fazia conhecer através dos instrumentos da escrita - os fonemas, as palavras, são conceitos da ciência da escrita e não da oralidade.

O que nos interessa demonstrar aqui, é o fato paradoxal de autoconsciência da lingüística como escrita, fez dirigir um novo olhar sobre a língua falada, à irredutibilidade da oralidade à lógica da escrita. E no limite, descobriu-se o espaço intransponível existente entre a língua falada e a escrita. Trata-se hoje de um consenso o fato apontado por Jack Goody, de que não se poderá jamais traduzir completamente a fala para a escrita, porque certos usos e modos da fala, ligados às ocorrências performáticas de enunciados em situação, não são reiteráveis, isto é, são irredutíveis às práticas discursivas da língua escrita.

Ora, o ensino fundamental público durante muito tempo ignorou esse espaço da fala. O que é mais interessante chamar a atenção aqui, uma longa e conhecida polêmica foi desencadeada pelo dito da escola ser espaço de fala de língua inexistente, ou de uma língua dominante. Hoje se sabe que, para o bem ou para o mal, a fala escolar mantém relação com a fala política: a escola inscreve nos alunos o poder e a submissão à palavra pública.

Nessa discussão, qual seria o estatuto da palavra pública numa sociedade eminentemente atravessada pela escrita, como a nossa? Desde Walter Ong (1982) se distingue a oralidade primária da oralidade secundária, respectivamente uma oralidade caracterizando o uso da palavra numa sociedade que desconhece a escrita, da oralidade decorrente das transformações do uso da palavra a partir do momento em que ela foi alvo da captura gráfica. Hoje estamos numa sociedade profundamente marcada pela escrita, e que faz então a palavra falada funcionar no registro de uma oralidade secundária.

Como seria então o uso da palavra falada no quadro de uma tradição oral primária? Podemos supor, usando por analogia o estudo de JURDANT (1998) que, nas comunidades orais primárias, a palavra falada constituída o laço social por excelência. A tal ponto de torná-la torna impossível de ser objetivada – a linguagem não é vista como distinta da realidade, ela é a realidade. Assim, palavra não estaria aí a serviço apenas do pensamento singular da qual ela constituiria a expressão subjetiva. Ela seria, ao contrário, convidada a ser impessoal, isto é, submetida a toda uma série de dispositivos, de códigos, de ritos e de exigências que teriam por objetivo regrar tanto o conteúdo quanto os contextos sociais no seio das quais ela é invocada a fazer sentido.

Uma dessas exigências é temporal: a palavra falada está sempre no presente, na medida em que ela é indissociável do ato mesmo de falar, aqui e agora. Essa exigência acarreta evidentemente uma dependência da palavra em relação ao contexto de sua enunciação. Ela conduz também à impossibilidade do sujeito falante subtrair-se à clivagem que resulta daquilo que nele se designa ao mesmo tempo como falante da palavra, instância de enunciação reconhecida como tal no enunciado, distinguida graças, sobretudo, ao pronome pessoal, de um lado, e como "falado" por ela, de outro lado. "Falado pela palavra" significa ser objetivado num enunciado cujo sentido depende daquilo que é ouvido e compreendido. É o ouvido, a orelha do interlocutor que, com todos os sistemas de decodificação, prolongando a sensibilidade até as extremidades mais íntimas das disposições cognitivas e sócio-culturais inconscientes, enfim, é o Outro que define lingüisticamente alguém como sujeito do enunciado. Essa orelha - que, aliás, é tanto aquela do ouvinte quanto a do locutor - participa tanto ou mais do que a boca do locutor na elaboração do seu próprio discurso.

A adoção de um sistema de escrita destinado a oferecer uma representação visual da palavra modificou profundamente as características de seu uso nos quadros da oralidade primária. As modificações que a escrita acarretou apresentam singularidades importantes no caso da escrita que funciona mediante unidades fonéticas – como é o caso do alfabeto. Essas unidades fonéticas são aquelas que, na palavra, determinam a articulação dos enunciados lingüísticos. Daí decorre que o alfabeto, constituído por uma atomização fonético-literal da língua, conforma uma representação visual da palavra falante antes do que uma representação visual da palavra entendida, tanto no nível do som (no caso das escritas silábicas), quanto no nível do sentido (no caso das escritas ideográficas).

Essa propriedade do alfabeto de representar a palavra falante mais do que a palavra falada (e, portanto escutada e compreendida) teve conseqüências importantes. A palavra escutada vale pela maneira pela qual aquele que ouve e entende confere pertinência ao seu conteúdo independentemente do locutor. A palavra falante, ao contrário, reenvia ao ato de palavra e ao sujeito que lhe é suporte. O sentido da palavra será avaliado principalmente sobre a referência do locutor. É isso que Platão nos diz claramente na famosa passagem do Fedro, da qual decorre a noção de cadeia de significantes:

"Era, meu caro, uma tradição no santuário de Zeus em Dodona, que de uma corrente saíram as primeiras revelações divinatórias. Assim então, para as pessoas desse tempo, para eles que não eram sábios a vossa maneira, aos jovens, isso era suficiente, dada sua ingenuidade, escutar a linguagem de uma cadeia, de uma corrente, ou de uma pedra, desde que ela fosse verídica. Mas para ti, o que sem dúvida importa, sobretudo, é saber quem é aquele que fala e qual é o seu país : isso faz que não te baste, com efeito, examinar se está bem como isso é, ou de uma outra maneira." (275, b - c).

Platão evoca aqui o tempo onde a palavra se tornava objeto de julgamento em nome do conteúdo que ela seria encarregada de evocar, por contraste com a época em que o conteúdo não é suficiente, por si mesmo, para assegurar o julgamento: é preciso ainda que alguém, o sujeito falante, possa responder por ele. Platão exemplifica emblematicamente nesse texto a maneira pela qual a escrita nos faz passar de uma oralidade primária uma oralidade secundária.

No quadro tradicional de uma oralidade primária, a palavra é o que permite aos homens (ilusoriamente ou não) compartilhar o sentido, em nome do qual os seres humanos tecem laços entre si. A passagem a uma oralidade secundária na Grécia que, do século VII ao IV A.C., se alfabetizou progressivamente, transformou esse uso da palavra de maneira irreversível : de impessoal que ela era, a palavra tornou-se pessoal, associada à defesa dos interesses de cada um, exposta aos cálculos da retórica sofística tão fustigada por Platão. A escrita alfabética, enquanto sistema de representação visual da palavra, se afirmou como um instrumento particularmente eficaz para passar de uma oralidade a outra.

Imaginemos agora que esse uso da palavra poderia ter perdido nessa passagem o uso particular dessa mesma fala e que essa se coloca por tarefa reencontrá-lo. Tudo se passaria como se, à aparição de uma oralidade secundária – que pode ser desastrosa em termos dos laços sociais e da coesão sócio-cultural - se encontrasse associada com a procura do que se poderia chamar de uma "fala pública", definindo um uso da fala centrado sobre o conteúdo do dito mais do que sobre a legitimidade do falante, colocando o acento sobre a dimensão impessoal da mensagem, mais do que sobre as possibilidades de expressão subjetiva, fazendo intervir exigências análogas àquelas que, no o quadro da oralidade primária, determinaria uma nova forma de clivagem do sujeito-falante, ao mesmo tempo falante da palavra, mas também falado por ela. Resumindo, um uso da fala cujas regras se especificassem com vistas a liberar de um condicionamento que a escrita alfabética teria contribuído para colocar em questão. Esse seria, hipoteticamente, o estatuto da palavra pública.

Voltando ao início, temos consciência hoje de que a capacidade de tomar a palavra é exigência democrática essencial. Todavia o ensino da língua falada na escola tornou-se parente pobre do ensino do Português. Uma criança de oito anos não tem, salvo exceção, problemas de comunicação nas situações da vida cotidiana. Ao contrário, ela nem sempre sabe (como é o caso das crianças das classes populares) colocar suas competências lingüísticas a serviço das atividades escolares e, por extensão, da fala pública. Assim, necessita aprender a dominar a palavra nas situações em que a linguagem não serve somente para agir ou para manifestar um desejo, mas para expor opinião, para explicar, para argumentar e convencer.

Se falar é elemento chave para a atividade política, a prática democrática não é, porém, suficiente para formar um cidadão: é preciso que a educação para a cidadania seja também educação da palavra pública. A socialização, esse "viver junto com os outros" implica em linguagem, viver com os outros pressupõe, antes de tudo, falar e ouvir os outros. A fala pública é exigente: reflete o grau de domínio das paixões, a adequação ao contexto, a capacidade dirigir-se a todos, de se levar em conta a presença do outro, de escutar segundo regras próprias da oralidade. Supõe assim o respeito pelas normas linguageiras do grupo extenso, diversas de outras (das falas da rua, da família, do grupo de amigos, etc.). O respeito pelo outro passa pela exigência de mudança de códigos e pelo controle da entoação. A idéia de praticar uma democracia escolar na preparação à cidadania civil esbarra, assim, com a falta de domínio da fala e da escuta pública por parte de professores e alunos. Nesse sentido, a dificuldade experimentada por escolas sindicais e de formação de lideranças populares é reveladora.

A voz é sopro, espírito, ar, alento, é pneuma, símbolo de vida e de coragem. Porque seu timbre é único, é uma espécie de caligrafia aérea de cada um. No domínio público, ela é questão, voto, declaração e rumor. A palavra "professor", como o termo "profissional" , vem da raiz latina "professare", que significa dizer algo publicamente em alto e bom som. Falar em público é poder, como bem o sabiam os políticos, os clérigos e os líderes messiânicos. Porém, os professores, que sabem da ansiedade que acompanha o início da aula, conhecem, quase todos, o pânico que antecede o falar em público. Vencer o medo e autorizar-se ao uso da palavra na cena pública é problema sobre o qual a psicanálise tem muito a dizer; é também questão social e problema da escola. Sugere suportar o mal estar de estar no domínio da palavra e saber sustentar o discurso, aprender a escutar, mas também afrontar a palavra alheia e principalmente, a tenacidade de afirmar o direito de falar e de ser ouvido perante pessoas em posição superior na hierarquia social.

Pressupõe reconhecer e desatar as armadilhas do poder, velhas artimanhas que os grupos dominantes desenvolveram com rara perfeição no Brasil – a capacidade da fala ser o espetáculo de redução do outro ao silêncio. Enfrentar a sedução da palavra douta, as reticências que fazem supor um saber, a mordacidade, o subestimar da inteligência, a deslegitimação do locutor, o hábito de não chamá-lo pelo nome ou nomeá-lo erradamente, etc. Consiste em aprender a denunciar as astúcias que distorcem a palavra, proibir o uso deslocado correções e de informações secundárias, resistir à adulação, à cooptação, ao isolamento, etc. Enfim, as formas tradicionais de exercício do poder:, que cala ou transforma a fala alheia mera ecolalia.

Mas também se torna necessário retomar antigos ensinamentos dos oradores clássicos, que Cícero definia como homines boni dicendi periti; a retórica, velha reserva de saber das elites. Ter, assim, o raciocínio estimulado diante de um interlocutor ou antagonista. Usar de antíteses, aliterações e alternâncias, de ditos capazes de ser memoráveis. Repetir e ser redundante; na fala o pensamento precisa de continuidade e, ao contrário da escrita, a redundância é necessária. A escrita estabiliza no texto numa continuidade externa à mente: se algo atrai a atenção para fora do material que se está lendo, o contexto pode ser retomado por uma olhadela geral no texto. No discurso oral é diferente: o desempenho oral se esvaece no momento em que o ouvinte ou o locutor se desliga. A repetição e a redundância asseguram que ambos estejam seguindo a linha do discurso; tornam-se necessárias nas condições de uma grande audiência, não só porque aí muita coisa distrai, mas porque pode haver problemas de compreensão e de acústica. A redundância ajuda a diminuir as hesitações do orador. A pausa é eficaz no discurso oral, a hesitação ao contrário, leva o discurso oral à falência. Apesar disso, nenhum professor experiente lê uma aula – todos conhecem as dissonâncias que são consecutivas a essa passagem de registro: a audiência dorme. Porque o discurso oral é participativo e possui um pathos inerente ao dizer em situação: é essencialmente agônico e dialógico.

No entanto, porque a escola é um lugar de formação intelectual e de instrução, necessita de uma linguagem mais abstrata do que aquela usada na vida cotidiana, a linguagem tem na escola uso menos utilitário e mais complexo. Isso não implica no uso de uma língua erudita, o português corrente pode servir de padrão - mas lembrando que a fala pública é uma palavra regrada de forma a garantir o diálogo e o conflito regulado pela argumentação, a colocação da palavra em redes discursivas convergentes ou divergentes, a sucessão consentida das falas. Tomar a palavra entre os pares ou entre desiguais que, nesse contexto, se reconhecem e se admitem, é desenvolver a audácia da palavra. Autorizar -se e ter um lugar supõe o dever de apostar na palavra, num mundo em que a retórica dos meios de comunicação de massas silenciou a todos.

O medo e o risco existem porque a palavra torna-se, na cena pública, em sua ressonância máxima, o terreno do reconhecimento e da revelação do sujeito e do mundo constituídos de palavras, império do mal-entendido e não da comunicação, solo escorregadio sobre o qual, apesar de tudo, é preciso mover-se, como mostra a citação em epígrafe. Trata-se do retorno ao logos socrático, da verdade intra-subjetiva, do discurso que interpela e produz sujeitos. Esse saber paradoxalmente nos leva a levantar a voz em cena, a interrogar, a distinguir o menos do mais verossímil, o argumento consistente do sofisma. Sobretudo a reconhecer quando a eloqüência se alia a poesia, ao se colocar em cena os recursos da linguagem compartilhada pela comunidade humana, cuja força se faz conhecer na plenitude quando manifesta a verdade e o talento.

Descobrir o poder e o dever da palavra – primeira e maior descoberta da psicanálise, a primeira lição da escola. Suportar o mal-estar e falar em público gera a tomada de distância em relação aos discursos dos outros e, assim, a possibilidade da construção do próprio discurso. Ocasiona a tomada de distância em relação ao próprio discurso, para construir a vigilância e a dúvida permanente, que servirão de garantia à continuidade do pensamento crítico. Tal é a tarefa da escola pública, política e psicanaliticamente esclarecida.

 

Referências Bibliográficas

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