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ISBN 85-86736-12-0 versión on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Oct. 2002

 

Quem tem moral com os adolescentes?

 

(Duas hipóteses sobre a crise na educação no século XXI)1

 

 

Maria Rita Kehl

 

 


RESUMO

Este texto discute a crise na educação atual a partir de duas hipóteses levantadas acerca do laço social contemporâneo. A primeira diz sobre a identificação dos jovens com o que é marginal, uma vez que a estética e a ética advinda daí parece reparar o lugar da autoridade moral deixado vago pelos adultos. E a Segunda fala sobre a "teenagização", fenômeno que também indica a demissão voluntária dos adulto do exercício do lugar de autoridade

Palavras chave: adolescência; autoridade; ética


 

 

1. "Problemas com a escola eu tenho mil, mil fitas/ é inacreditável, mas seu filho me imita./ No meio de vocês ele é o mais esperto/ ginga e fala gíria – gíria não, dialeto! (....) Esse não é mais seu, tomei, cê nem viu/ entrei pelo seu rádio, fiuuu...subiu!"

No tom provocativo de sempre e com grande talento de poeta, Mano Brown lançou seu desafio àqueles que ele chama de "senhores de engenho" no último CD dos Racionais, Vida Lôca, de 2002: pelas ondas livres do rádio, o rapper negro da periferia "rouba" a identidade do filho da burguesia branca. Alguma coisa mudou na atitude de Brown e seus manos depois de Sobrevivendo no inferno, onde eles demarcavam o território do rap excluindo os "filhinhos de papai" que se faziam passar por malandros escutando os Racionais MC’s no rádio do carro. Em 2002, os músicos mais populares do hip hop paulista entenderam que a potência de seu "rithm and poetry" ultrapassa barreira de classe e de raça. Ninguém consegue impedir que os jovens do Jardim América se identifiquem com o discurso produzido pelos moradores do Jardim Ângela.

Alguns pais se preocupam – não sei se deveriam. Cada vez mais os adolescentes adotam as roupas, a gíria ( "gíria não, dialeto!"), a música, a estética da favela. Uma amiga me conta que os amigos do filho tomaram os personagens do filme Cidade de Deus como ídolos. O espantoso é que os garotos não têm idade para assistir ao filme; identificaram-se com a representação da representação: o carisma dos personagens é transmitido pelos clips de divulgação na TV, ou em conversas com amigos mais velhos. Outro conhecido, morador do Pacaembu, diz que o filho de 15 anos superou uma crise de insegurança e ansiedade quando começou a freqüentar o setor mais barra pesada da quadra dos Gaviões da Fiel, tentando confundir-se com os torcedores da periferia. Um colega de minha filha fez amizade com os garotos da favela vizinha à sua casa e sai todas as noites para grafitar muros e fumar com eles.

Pode ser uma estratégia de proteção. Para um adolescente em idade de começar a sair sozinho pelas ruas – felizmente, nem todos se conformam com a vidinha claustrofóbica de shopping center, motorista e DVD – é mais seguro ser confundido com um "mano" do que com um "playboy". Alguns fazem pose de bandidos: "É melhor ser amigo dos caras do que passar pelo otário que eles vão assaltar". Uma das polarizações que nossa sociedade violenta e competitiva criou não é entre ricos e pobres, brancos e negros: é entre espertos e otários. Claro que para o garoto de classe média, posar de "esperto" não garante muita coisa: os "enquadres" da polícia podem oferecer tanto perigo quanto os eventuais encontros com um assaltante.

Mas não é só de proteção que se trata. Os adolescentes não estão tentando enganar os bandidos: estão se identificando, de fato, não necessariamente com os criminosos mas com os marginalizados, os meninos e meninas da periferia e das favelas. Identificam-se com a cultura hip hop: rap, skate, grafite, "bombeta e moleton". Há um aspecto político nesta atitude, é claro. Cresce entre os adolescentes uma recusa dos padrões consumistas predominantes em sua classe social e uma busca de "autenticidade", de valores que façam mais sentido no mundo injusto em que vivem. Verdade que é uma recusa ingênua, pois também passa pelo consumo: trata-se de comprar outras roupas, outros CDs, freqüentar outras casas noturnas. Mas como toda estética comporta uma ética, a escolha do modelo da periferia faz alguma diferença. É como se só fosse possível encontrar alternativas para a falta de sentido da vida pautada pelo consumo identificando-se com aqueles que não têm recursos para consumir.

Vejo também um movimento de exogamia, de saída do círculo protegido da família para o vasto mundo – e o mundo fora da família, hoje, tem sido insistentemente apresentado à criança e ao jovem como o mundo do perigo. Só que não é possível viver indefinidamente protegidos do mundo. Vamos a ele, então. Sejamos perigosos.

Nada disso é muito grave. É preferível, para a formação moral de um adolescente, que ele veja o mundo como uma selva a desbravar do que como uma vitrine de butique. O que é preocupante, a meu ver, não é a identificação dos meninos da elite com a estética dos excluídos, mas a identificação com a violência. O preocupante é que a curiosidade e a ousadia em romper com o circuito estreito da vida burguesa desemboquem na identificação com a estética da criminalidade. Que não é exatamente a linguagem dos criminosos – esta, só conhecemos de fato quando estamos na posição de vítimas. O "estilo" da vida bandida que os adolescentes tentam imitar é a linguagem elaborada e estetizada pelo cinema, pelo rap, pela televisão.

Ocorre que os rappers, assim como os personagens de filmes como O Invasor e Cidade de Deus, vêm ocupando um lugar de autoridade moral junto aos adolescentes justamente porque os adultos estão deixando vago este lugar. As letras dos raps gravados pelos Racionais MC’s, que conheço melhor, sustentam claramente uma posição ética, de crítica ao fascínio dos meninos da periferia pelos padrões de consumo que a elite ostenta como se fossem os valores mais importantes da vida. A relação entre os valores da sociedade de consumo e a delinquência fica claramente demonstrada nas letras de Mano Brown. Assim, há uma escolha ética entre os adolescentes que preferem identificar-se com os poetas e os marginais da periferia do que com os adultos da elite irresponsável que também povoam o noticiário policial.

Em junho desse ano (2003), por exemplo, três adolescentes morreram pisoteados em um tumulto ocorrido em um show de rock em um clube de Curitiba. Os jornais noticiaram que a festa havia sido organizada sem comunicado à Polícia Militar, para garantir a segurança dos participantes. O promotor do show – um adulto, suponho – acusado da negligência na organização do evento que atraiu 30 mil jovens da cidade, tomou uma providência muito comum no Brasil: fugiu.

Os jovens estão acostumados com notícias assim mas não deixam de se indignar. Os donos da companhia de celulose Cataguases, custaram a ser encontrados pela polícia depois do grave acidente ecológico provocado pela indústria, no Sul de Minas. O deputado Sérgio Naya – quem ainda se lembra? – não foi encontrado quando o edifício Palace I, de responsabilidade de sua construtora, desabou matando cinco moradores. Em alguns países, onde a vergonha é o sentimento que prevalece na relação entre o público e o privado, políticos renunciam, empresários se demitem ou tentam suicídio quando responsabilizados por falhas escandalosas em assuntos de sua competência. No Brasil, eles se escondem e esperam a maré baixar. Alguns acabam se elegendo para novos cargos públicos.

Os pais das famílias de classe média, preocupados com a dificuldade em educar (ou controlar?) seus filhos adolescentes, temem em primeiro lugar as más influências dos "maloqueiros" do bairro – mas não percebem que os piores exemplos de irresponsabilidade e falta de educação provém da própria elite nacional, acostumada a conviver com uma série de práticas ilegais, de maior ou menor gravidade. Uma parte da classe dirigente brasileira considera que a lei só serve para enquadrar os outros. A lei é para os manés. Os espertos e os privilegiados sabem como se colocar acima, ou à margem dela. "Quem tem trinta contos de réis no Brasil não vai para a cadeia", dizia Lampião.

Os adolescentes ricos convivem com essa criminalidade soft dentro, ou perto, de suas próprias casas. É o pai que oferece caixinha ao guarda para escapar a uma multa por excesso de velocidade, ou vai à escola pedir a cabeça do professor que reprovou, por razões justas, seu filho. Os pais que se apavoram quando um filho começa a fazer amizade com os favelados da vizinhança são os mesmos que contratam e demitem empregados sem pagar direitos trabalhistas e oferecem suborno aos fiscais da receita que descobrem as irregularidades de suas empresas.

São mães que se consideram no direito de estacionar em fila dupla na porta da escola atrapalhando o trânsito, como se a rua fosse sua propriedade privada. Ou jogam latas de refrigerante e embalagens de comida pela janela do carro como se a cidade, onde caminham os "outros", fosse sua lata de lixo. Esses pais e mães estão ensinando a seus filhos que o dinheiro compra até o que não tem preço: a vergonha, a educação, a lei. "Se eu pago, eu posso’’, diz o pai de família burguês aos seus rebentos, sem imaginar que é por esse caminho que sua autoridade vai se desmoralizando até o ponto dele perder o respeito dos filhos. De um modo ou de outro, os adolescentes lhes respondem: se você quer que eu te obedeça, me pague.

2. Some-se a isso o fenômeno de "teenagização" que vem prevalecendo na cultura dos países industrializados do ocidente, a partir dos anos 1960. O adolescente, enfant gaté da publicidade, ocupa hoje o lugar do ideal para todas as gerações. Todos querem sentir-se adolescentes, vestir-se como adolescentes, agir como adolescentes. Isso sgnifica que a vaga de ''adulto'', na nossa cultura, está desocupada. Ninguém quer estar ''do lado de lá'', o lado careta, do conflito de gerações, de modo que o tal conflito, bem ou mal, se dissipou. Mães e pais dançam rock, funk e reggae como seus filhos, fazem comentários cúmplices sobre sexo e drogas, frequentemente posicionam-se do lado da transgressão nos conflitos com a escola e com as instituições.

O adulto que se espelha em ideais teen sente-se desconfortável ante a responsabilidade de tirar suas conclusões sobre a vida e passá-las a seus descendentes; mais desconfortável ainda em sustentar a diferença de lugar, ante o filho ou o aluno adolescente, a partir da qual a dose necessária de autoridade justa possa se exercer. O adulto teen deixa o adolescente livre, tão livre quanto ele mesmo gostaria de ser.

Esta liberdade cobra seu preço em desamparo: os adolescentes parecem viver num mundo cujas regras são feitas por eles e para eles, já que os próprios pais e educadores estão comprometidos com uma leveza e uma ''nonchalance'' jovem. Não que os pais ''de antigamente'' soubessem como os filhos deveriam enfrentar a vida, mas pensavam que sabiam, e isso era suficiente para delinear um horizonte, constituir um código de referência - ainda que fosse para ser desobedecido.

Quando os pais de hoje dizem: ''Sei lá, cara, faz o que você estiver a fim'', a rede de proteção imaginária constituída pelo o que o Outro sabe se desfaz, e a própria experiência perde significação. E, como nenhum lugar de produção de discurso fica vazio muito tempo sem que algum aventureiro lance mão, atenção! o Estado autoritário, puro e simples, pode vir fazer as vezes dos adultos que se pretendem teen. Neste caso, em vez da elaboração da experiência, teremos ''razões de Estado'' (ou pior, as razões de mercado ou as do FMI) ditando o que fazer de nossas vidas.

A desvalorização da experiência esvazia o sentido da vida. Não falo da experiência como argumento de autoridade - ''eu sei porque vivi''. Sobretudo numa cultura plástica e veloz como a contemporânea, pouco podemos ensinar aos outros partindo da nossa experiência. No máximo, ensina-se que a alteridade existe. Mas a experiência, assim como a memória, produz consistência subjetiva. Eu sou o que vivi. Descartado o passado, em nome de uma eterna juventude, produz-se um vazio difícil de suportar.

Parece contraditório supor que uma cultura teen possa ser depressiva, sobretudo quando se aposta no império das sensações - adrenalina, orgasmo, cocaína - para agitar a moçada. Mas no meio de tanta agitação, o DSM-IV, relatório da Organização Mundial de Saúde sobre os problemas de saúde mental, aponta a depressão como a forma de mal estar que vem tendo um crescimento epidêmico no ocidente. Depressão e delinqüência (com seu componente colateral inevitável: a drogadição) são as formas de mal estar que denunciam a falência do laço social hoje, como a histeria no final do século XIX denunciava a condição insuportável das mulheres na era vitoriana.

Se a histeria era o protesto das mulheres contra a ordem burguesa falocêntrica, a depressão e a drogadição atuais são a expressão da posição impossível dos adolescentes e jovens na sociedade regida pelos imperativos do gozo, onde todos são teenagers e ninguém se dispõe a sustentar as condições de renúncia necessárias para a transmissão da lei. São os bandidos do cinema e os músicos da periferia que, na posição de quem não tem nada a perder, acenam para os adolescentes com uma vontade ética com a qual muitas vezes seus pais já não querem se comprometer.

 

 

1 - As idéias que compõem este artigo são extraídas de um ensaio publicado no caderno MAIS! Da Folha de São Paulo em 20/09/1998 e de duas colunas publicadas na revista Época nas semanas de 5 de maio e 9 de junho de 2003.