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ISBN 85-86736-12-0 versão on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Out. 2002

 

Tratar e educar essas crianças pouco normais

 

Treating and educating these almost-normal children

 

 

M. Cristina M. Kupfer

Professora associada do Instituto de Psicologia da USP, diretora da Pré-escola terapêutica Lugar de Vida, psicanalista

 

 


RESUMO

Para examinar a pergunta sobre por que e como tratamento e educação se separaram e se opuseram, o artigo em questão remonta às origens históricas das práticas de tratamento e de educação modernas, já que é na modernidade que elas se separam. No texto, Educação está sendo tomada em seu sentido de educação familiar, mas não são deixadas de lado as conseqüências, para a educação escolar, das idéias desenvolvidas. Conclui-se que hoje o que está em jogo é educar tratando ou tratar educando, tanto faz, já que cada um desses termos perde em importância para dar lugar a práticas cuja principal meta é a de permitir o surgimento do sujeito na criança.

Palavras-chave: psicanálise – educação – psicose infantil – capacitação de professores


ABSTRACTS

The present article aims to ask for the reasons why the mental treatment and the education of children took different ways. In the article, we take Education as the family education, but the consequences of our ideas for the school education are also considered. Today, we have to treat through education or to educate through the treatment, but, in both, the aim of our practice is to let the subjectivity come.

Key-words: psychoanalysis – education – infantile psychosis – teacher’s learning


 

 

Tratar e educar são práticas muito diferentes, e mesmo diametralmente opostas: eis o que se afirma entre os profissionais da saúde e da educação, aqueles que são hoje encarregados de garantir às crianças um futuro bem adaptado e bem produtivo.

Mas nem sempre foi assim. Por que e quando, então, tratamento e educação se separaram e se opuseram?

Para examinar essa pergunta, será preciso remontar às origens históricas das práticas de tratamento e de educação modernas, já que é na modernidade que elas se separam.

Neste texto, Educação está sendo tomada em seu sentido de educação familiar, mas não serão deixadas de lado as conseqüências, para a educação escolar, das idéias aqui desenvolvidas.

 

Tratar e educar a partir do século XVIII

Com o fortalecimento da burguesia, na modernidade, assistiu-se a uma série de transformações na configuração da família. Aos poucos, a educação dita familiar receberá a intromissão de uma figura tipicamente moderna – a figura do preceptor. Em Émile, livro publicado por Rousseau em 1762, esse novo personagem é delineado com nitidez. O preceptor de Émile – que não tem pais – o educa sabiamente, Émile cresce e, chegada a hora de, por sua vez, tornar-se pai, corre para seu preceptor, dizendo:

"Meu mestre, felicita teu filho: ele espera ter logo a honra de ser pai. Oh! quantas preocupações impor-se-ão ao nosso zelo, e como precisaremos de ti! Deus não queira que eu te deixe também educar o filho, depois de ter educado o pai. (...) mas continua tu a ser o mestre dos jovens mestres. Aconselha-nos, governa-nos, seremos dóceis: enquanto eu viver, precisarei de ti"(Rousseau, 1999, p.680).

Emile confessa ao preceptor o seu desamparo para educar o filho recém-nascido, embora houvesse recebido uma educação cujo alvo era a autonomia!

O preceptor, sorridente, reocupa seu lugar agora indispensável junto à nascente família nuclear moderna, composta de pai, mãe, filho e...preceptor.

Esse deslizamento sutil de responsabilidades do pai para o preceptor não escapa a Alain Grosrichard (1983), que vê se perfilar por trás do preceptor toda a horda de "cuidadores" que se encarregarão da criança burguesa a partir dali. Educadores, psicólogos, psicanalistas, fonoaudiólogos, psicólogos escolares. terapeutas ocupacionais, educadores especializados, fisioterapeutas, acompanhantes terapêuticos... O preceptor de Émile é a figura a partir da qual se desdobram hoje todos esses especialistas.

É ainda nesse movimento de substituição do pai pelo(s) preceptor(es) que se podem localizar também os inícios daquilo que muitos psicanalistas, já a partir de Freud, chamarão de Declínio do Pai na Modernidade. Jean-Jacques Rassial (2000) faz notar que "a partir dos anos vinte [do século XX], Freud se inquietava com o declínio da função paterna(...). Após a guerra, Lacan nomeava os mesmos fenômenos, evocando um declínio dos nomes do pai" (p. 9). Esse declínio atinge a figura mítica e unificada do Pai em seus diferentes registros, ou seja, os do pai simbólico, imaginário e real. "Este pai que decaiu", continua Rassial, "é primeiro e essencialmente o pai simbólico, o pai já morto da horda" (p. 10). O declínio mencionado se traduz em uma desqualificação simbólica do pai, cujos efeitos imaginários se fazem notar hoje na grande dificuldade que os pais modernos têm em sustentar sua autoridade diante de seus filhos nos miúdos meandros da vida cotidiana.

Grosrichard (1983) detém-se nos efeitos dessa desautorização em statu nascendi, ainda no século XVIII, a partir das cartas que um príncipe europeu escreve a Rousseau. Ele havia acabado de ler Émile, recém publicado, e lhe pede que o eduque para poder educar sua filhinha, Sofia.

Ao pedir que o eduque, o príncipe inaugura o gesto que acompanhará o pai moderno: o de ir buscar conselho no especialista, que sabe melhor que ele como educar seu filho. É preciso educar o educador, eis o novo lema que irá ser seguido pelos preceptores e também pelos pais, que acreditam ser necessária a sua própria reeducação ("Sêde o mestre dos jovens mestres", pede Émile), já que o novo mundo, a nova ordem político-social em gestação exigirão um novo "Homem", uma nova sensibilidade, uma nova Educação.

Rousseau e Grosrichard nos permitem ver, então, de um só golpe, o declínio do Pai, a substituição de sua função educativa pela figura do preceptor, a multiplicação dos especialistas a partir desse preceptor e finalmente o leitmotiv que se desenrolará por toda a modernidade em vários momentos: o de que é preciso educar o educador.

Essas idéias repercutiram em outros cantos da Terra, inclusive no Brasil. Se acompanharmos a história do movimento higienista que predominou durante a segunda metade do século XIX no Brasil, não será difícil relacionar as idéias nele contidas com aquelas que já se encontravam em Rousseau.

Em "Ordem médica e norma familiar", de Jurandir Freire Costa, encontra-se uma interessante leitura das raízes do movimento higienista. Segundo Freire Costa, tais raízes estariam na aliança, implícita porém eficaz, firmada entre os higienistas e o Estado, para enfraquecer o poder do Pai colonial, absoluto dentro da família colonial. Se em suas mãos estavam colocados os rumos de vida e de morte de todos ao seu redor, fazendo dele esse absoluto legislador, sua autoridade passaria a chocar-se com aquela pretendida pelo Estado burguês nascente. A implantação desse Estado exigia portanto o declínio da autoridade do Pai, o que foi produzido com o concurso dos médicos higienistas.

 

O higienismo

O que diziam, ou melhor, vociferavam esses médicos em suas teses e livros escritos naquele período? Que a família moderna era a grande responsável pela escandalosa mortalidade infantil que atingia nosso país. Pais e mães eram, resumindo, incapazes de cuidar de seus filhos. Era necessário então que esses pais se colocassem nas mãos daqueles que conheciam suficientemente bem os princípios de higiene, de assepsia, de prevenção de doenças, se quisessem manter vivos seus filhos. Era preciso introduzir em suas vidas a figura do médico, que iria dali em diante prescrever o melhor modo de alimentar e de cuidar das crianças. É agora o médico que sabe, melhor que as mães, quando devem dar o peito, ou mesmo se devem ou não fazê-lo.

O médico higienista faz mais do que prescrever condutas higiênicas. Ele é também um educador. E quando o assunto é saúde mental, chega a afirmar que a família é a grande causadora dos distúrbios mentais: a família é nefasta, ou funesta, para usar o termo da época. Freire Costa cita uma tese de 1855, na qual seu autor, o médico higienista, Joaquim José de Oliveira Mafra, afirma o seguinte: "Os pais que, por complacências e amores mal entendidos, contribuíram no primeiro período da vida para a ruína do temperamento e constituição de seus filhos, continuam desgraçadamente, em nosso país, a exercer sua funesta influência sobre eles, no interior dos estabelecimentos a que foram confiados"1 (Freire Costa, 1983, p. 171).

Essa idéia de que os pais exercem uma "funesta influência" fundamenta então a recomendação de que a educação dos jovens da sociedade deve ser feita em colégios internos, para fugir da docilidade, da permissividade e portanto da nocividade, tanto física como mental, dos lares burgueses.

Os higienistas não esmorecem, porém, da tentativa de reformar os pais. "Pela pedagogia higiênica, procurava-se atingir os adultos. O interesse pelas crianças era um passo na criação do adulto adequado à ordem médica" (Freire Costa, op.cit., p. 175).

Quem está surgindo diante de nossos olhos? O velho preceptor de Émile, vestindo agora um jaleco branco, e munido das mesmas intenções: desqualificar o pai, e educar o educador. Mas agora o preceptor educa e trata.

Veja-se, por exemplo, o caso da masturbação. Para esses médicos, a masturbação era uma prática que podia tornar-se patológica e ser responsável por grandes perturbações mentais. Para evitar que os jovens chegassem a esse grau de degeneração, eram necessárias práticas educativas severas, um disciplinamento sexual acompanhado de extrema vigilância nos colégios internos, de modo a evitar a instalação do "vício" e suas conseqüências. A nosologia psicopatológica impõe-se e se cria a partir de uma moralidade educativa.

Os tratamentos mentais de crianças entram em cena quando se supõe que a educação falhou. A psicopatologia infantil é, antes de mais nada, um discurso ideológico, ditado por interesses políticos, sobre como deveria ter sido – e não foi – a educação familiar da criança. Se hoje temos um alienado improdutivo, isto se deve à masturbação não coibida pelos pais e à qual o pobre alienado se entregou quando criança!

Não é à toa que Itard, médico que buscou arrancar da idiotia o jovem Victor de Aveyron, era um médico-educador: a psiquiatria infantil, que nasceu no início do século XIX com o ato de Itard, nasceu educativa. Tampouco é casual, diga-se apenas de passagem, a preocupação de Itard com a intensa atividade masturbatória de Victor, já que seus colegas a viam como uma atividade nefasta para a saúde mental!

Assim, o primeiro tratamento de transtornos que hoje chamamos de psíquicos, dirigido a uma criança, não era senão uma reeducação. O tratamento da criança com problemas de desenvolvimento sempre foi, desde o início, uma tentativa de refazer o percurso educativo ditado por uma visão social e política desse ato educativo.

O percurso histórico que acaba de ser desenhado deixa claro que o conjunto dos tratamentos psíquicos de crianças no século XIX e no início do século XX não é uma derivação da clínica psiquiátrica dos adultos, mas uma derivação de preceitos educativos. Embora as classificações sigam de perto a dos adultos – psicose/psicose infantil; esquizofrenia/esquizofrenia infantil, etc –, os determinantes dos primeiros tratamentos estão em íntima conexão com uma ação ainda educativa, ou reeducativa, sobre a criança tratada.

A proliferação das especialidades seguiu, em geral, essa mesma norma. E talvez essa tivesse sido até hoje a nota predominante em todos os tratamentos, não fosse a entrada em cena da psicanálise. Ou seja, talvez se possa afirmar que, com o advento da psicanálise, os tratamentos de crianças deixaram de ser a especialização de uma educação ideologicamente marcada.

 

A entrada da psicanálise

A criança de Freud é uma criança que goza, é um perverso polimorfo, e escapa ao disciplinamento do corpo. A criança deseja.

Em tempos coloniais a criança se encontrava "no limbo, em estado larvar, unida ao adulto pela questão da propriedade e da religião", como observa Freire Costa. Quando o adulto passa a considerar a criança como o ponto de partida das construções físicas e emocionais que predominarão na vida adulta, a criança ganha um lugar, aparece como personagem. Mais do que isso, recebe o máximo de "presentificação" na pena de Freud. Essa criatura antes apagada passa ao exagero de ocupar a frente da cena, torna-se "His Majesty the Baby": é o alimento narcísico dos pais, é o próprio narcisismo dos pais. Presentifica-se, mas traz no mesmo ato o retorno do recalcado da infância do adulto, e por isso parece que sabe sem saber sobre a verdade desse adulto.

Essa criança possui um resto de ineducável, de incoercível. É preciso, diz o psicanalista, escutar esse ineducável, já que não é possível discipliná-lo à força.

 

As práticas de tratamento e de educação hoje

Caso se queira prosseguir com o modo histórico e clássico de entender as relações entre educar e tratar, poder-se-á manter o tratamento como uma especialização (sempre ideológica) do educar. É assim que algumas correntes da psicopedagogia tendem a encarar sua ação: a criança é um "paciente" com "distúrbios de aprendizagem", e o tratamento, bastante calcado na visão médica clássica, será o de reconduzir a criança aos bons trilhos da aprendizagem escolar. Assim também agirão algumas correntes da fonoaudiologia e da terapia ocupacional, para quem seu trabalho terá uma orientação basicamente reeducativa.

Caso se queira subverter essa tradição, o tratamento poderá enveredar pelos caminhos da psicanálise, nos quais a direção poderá ser, então, a de escutar o ineducável, o incoercível. O tratamento psicanalítico de crianças não busca o reordenamento, o disciplinamento. Só empresta ouvidos ao desejo que procura a todo custo manifestar-se, ou ao gozo que ignora se sua modalidade de expressão está ou não socializada naquela cultura.

O tratamento de outros especialistas também poderá abandonar o ranço reeducativo e procurar, cada um a partir de sua abordagem de trabalho, as produções que puderem fazer sentido para o sujeito, e em especial para o sujeito do desejo que, embora inaccessível para o especialista, determina e causa em última análise as produções da criança.

 

O tratamento na clínica dos Distúrbios Globais de Desenvolvimento

Se o tratamento de crianças autistas e psicóticas quiser seguir a tradição histórica aqui traçada, poderá dedicar-se aos tratamentos como no método TEACHH, que segue muito de perto essa tradição. Ao preocupar-se, antes de mais nada, com a adaptação da criança autista ao mundo social, sem se preocupar em fazer ali emergir um sujeito do desejo – ainda que as possibilidades de ele advir sejam extremamente difíceis –, esse método procura refazer o percurso educativo unicamente em sua dimensão de prática de adestramento.

Adotando-se, porém, uma perspectiva crítica dessa abordagem, tratar dessas crianças implicará uma reconstrução do percurso da constituição do sujeito, o que se diferencia radicalmente da educação moral, e se aproxima bastante daquilo que há de educativo em toda construção da subjetividade.

 

Educar o educador

Rousseau foi o primeiro, em nosso percurso, a afirmar a necessidade de educar o educador. Em seguida, são os médicos higienistas que declaram a família "nefasta". Alguns psicólogos hoje fazem coro a eles, e desqualificam, abertamente ou não, os pais das crianças que atendem. As revistas de divulgação não cansam de publicar receituários para os bons pais, que se vêem cada dia mais perdidos acerca dos limites, do que fazer quando... e quando... e por quê.

Os professores são os herdeiros dos pais, já dizia Freud. Herdam, portanto, sua desqualificação. Assim também eles deveriam ser educados, de acordo com essa tradição, e é isso mesmo que acontece. Em obediência ao discurso oficial, ao qual, naturalmente, muitos profissionais não aderem, os professores precisam ser educados pelos orientadores educacionais, pelos psicólogos escolares, e por toda a horda de especialistas da infância, horda da qual os professores estão excluídos. São incapazes, e precisam ser capacitados. Eis aí um modo possível de entender o furor das capacitações, que não buscam senão educar o educador.

As capacitações se multiplicam em mais e mais capacitações. Os professores não cansam de repetir que precisam, para poder ensinar-lhes, saber mais sobre as crianças, precisam conhecer seus distúrbios, suas características e qualidades psicológicas, o modo como se desenvolvem etc. etc. Quanto mais vão às capacitações, mais parecem precisar delas. A capacitação cava mais fundo o abismo da desqualificação, como uma roda que gira em falso na lama.

A origem da ineficácia desse movimento pode estar no modo como a desqualificação foi "perpetrada" contra o Pai. Para desautorizá-lo, foi preciso levá-lo a perder algo que ele antes possuía, sem sabê-lo. O Pai possuía um saber inconsciente sobre a transmissão a ser feita. Esse saber o "informava" sobre a incerteza do humano, sobre o seu limite, sobre a morte, sobre o que ele devia transmitir. Agora esse saber parece perdido, e um pai não sabe mais o que deve transmitir. Esse pai substitui a incerteza que é estrutural na posição de todo pai mortal por uma certeza luzidia que os filhos rapidamente percebem não existir, razão pela qual a depressão infantil hoje começa mais cedo.

Também o professor parece ter perdido esse saber. Por que e o que transmite? Uma capacitação que não rode em falso precisaria começar por aí: pela recuperação do saber do professor a respeito de seu ato.

Se fizermos tudo isso – escutar o ineducável, tratar de modo a recuperar o sentido das produções das crianças, tratar reconstruindo o percurso do sujeito, capacitar buscando recuperar o saber inconsciente perdido, ouvir pais fazendo também essa recuperação –, como classificar essas ações? Estaremos tratando ou educando? Pode-se escolher a resposta: trata-se de educar tratando ou de tratar educando, tanto faz, já que cada um desses termos perde em importância para dar lugar a práticas cuja principal meta é a de permitir o surgimento do sujeito na criança.

 

Referências Bibliográficas

FREIRE COSTA, J. (1983). Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro, Graal, 2ª edição.

GROSRICHARD, A. (1983). Le prince saisi par la philosophie. Ornicar? Bulletin périodique du Champ Freudien. Paris, Lyse n. 26-27, p. 133-149.

RASSIAL, J.-J. (2000). Declínio do Pai ou falha do professor. Anais do II Colóquio do Lugar de Vida/LEPSI. São Paulo, Pré-escola terapêutica Lugar de Vida, do IPUSP, p. 9-14.

ROUSSEAU, J. J. (1999). Emílio, ou Da Educação. São Paulo, Martins Fontes, trad. Roberto Leal Ferreira,

 

 

1 O título dessa tese não pode deixar de ser aqui registrado: Esboço de uma higiene de colégio, aplicável aos nossos: regras principais, tendentes à conservação da saúde, e ao desenvolvimento das forças físicas e intelectuais, segundo os quais se devem reger os nossos colégios.