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ISBN 85-86736-12-0 versão on-line

An. 4 Col. LEPSI IP/FE-USP Out. 2002

 

Inclusão escolar: pensando a escuta analítica no trabalho com professores

 

 

Marise Bartolozzi Bastos

Psicanalista, membro da equipe do Grupo Ponte da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida/IPUSP - marisebastos@uol.com.br

 

 

Na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, entendemos que um dos eixos do trabalho terapêutico com crianças psicóticas e autistas passa pela via da escolarização, em um trabalho mais amplo que intitulamos educação terapêutica1. Deste modo, como pensar a inclusão dessas crianças na escola regular e como estabelecer com os educadores uma parceria para esse árduo trabalho?

Questões como essas têm sido alvo de constante reflexão no trabalho realizado pelo Grupo Ponte, que tem por objetivo propiciar a inclusão e fazer o acompanhamento da escolarização das crianças em tratamento na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida quando elas já têm condições de ingresso na escola regular.

Ao longo de nosso trabalho de acompanhamento e suporte às escolas percebemos a importância do papel desempenhado pelos professores nas novas perspectivas de tratamento dessa criança que se abrem a partir de sua entrada na escola.

Uma das atividades do Grupo Ponte é oferecer aos educadores que recebem as crianças que freqüentam a Lugar de Vida, assessoria para o desenvolvimento de seu trabalho com essas crianças, o que inclui, além de visitas periódicas às escolas, a possibilidade de participação nas reuniões mensais da equipe destinadas a esses profissionais.

Num primeiro momento, os professores vêm a essas reuniões com a expectativa de que receberão algum tipo de "treinamento" que possa auxiliá-los na tarefa de trabalhar com esses alunos "diferentes", que suas escolas estão sendo obrigadas a receber, em nome de uma nova proposta de educação inclusiva, que, embora conste dos documentos oficiais, não tem sido acompanhada de ações que a tornem uma realidade efetiva.

Nosso trabalho com esses professores, que, muitas vezes, foram titulares de classes especiais e, portanto, bastante familiarizados com esses alunos ditos "difíceis", foi revelando que a oferta desse espaço de interlocução tem como efeito mobilizar no educador o desejo de discutir a realidade escolar e de pôr em questão sua prática pedagógica.

Notamos que aqui também, como em uma análise, a oferta cria uma demanda, pois o professor passa a contar com esse espaço de troca e discussão em que os relatos de suas experiências, e as dificuldades enfrentadas em sala de aula, podem ser ouvidos e compartilhados com outros colegas, de modo que se produza um novo olhar e novos questionamentos sobre o seu fazer frente a seus alunos.

Vemos ainda que é porque não obtém respostas fechadas sobre como deve proceder e se conduzir em sua tarefa pedagógica que o professor se vê lançado a criar seu próprio fazer educativo pautado na singularidade de seu aluno, não negando sua condição de sujeito.

Se para o tratamento da criança psicótica a psicanálise precisa pedir algo à educação, parece-nos um compromisso ético importante poder acompanhar as vicissitudes desse pedido tanto no que diz respeito à criança, quanto no que diz respeito aos professores.

As reuniões mensais do grupo Ponte são abertas e contam com a participação dos membros da equipe e de um número de educadores que oscila em torno de vinte a cada encontro.

A dinâmica dessas reuniões é bastante informal e todos podem ter acesso à palavra, após a rodada de apresentação inicial de cada participante. Encerrada a apresentação é dada a palavra aos professores que trabalham com as crianças da Lugar de Vida para que falem sobre suas dificuldades e inquietações diante dessa criança.

Nos relatos que os professores fazem de seu trabalho é comum manifestarem-se surpresos em relação às mudanças que observam em seus alunos e que não avaliam ser um efeito do trabalho que estão desenvolvendo com a criança.

Vemos aqui a importância de o professor poder resgatar e se apropriar do trabalho que desenvolve com essa criança, através do relato que é convidado a fazer diante do grupo de professores. É assim que, não por acaso, pedimos que os professores contem sobre seu trabalho com a criança desde o seu ingresso na escola, pois ao retomar o relato sobre o já vivido, o professor passa a se dar conta do caminho trilhado e pode ressignificar para si mesmo o percurso de seu fazer pedagógico.

Na Lugar de Vida entendemos o trabalho institucional como uma rede de linguagem, na qual podemos localizar diferentes níveis de estruturas discursivas: o das crianças, o dos pais, o da equipe e o dos professores.

A circulação discursiva entre os professores, os profissionais da equipe, as crianças e seus pais pode ser analisada nas reuniões semanais da equipe do Grupo Ponte quando temos a oportunidade, com a discussão do acompanhamento de cada criança, de observar e analisar os deslocamentos produzidos tanto nos professores quanto nas crianças.

Poderíamos dizer que a fala dos professores que trabalham com nossas crianças, ao ser tomada como um discurso, que dirigido ao outro produz laço social, favorece a manutenção da transferência com o trabalho institucional como um todo, propiciando deslocamentos do discurso pedagógico tradicional e auxiliando que os professores possam se apropriar de outras posições discursivas.

Se os professores buscam as reuniões do Grupo Ponte com a expectativa de que receberão ali alguma ‘receita’ de como devem trabalhar com esses alunos ‘diferentes’, mesmo sendo esta uma demanda imaginária, nosso trabalho de escuta certamente oferece outra coisa. Ao invés de respostas que obturem e fechem as interrogações, acenamos ao professor com a possibilidade de que fale de sua experiência e faça interlocução com seus pares e desse modo possibilitamos uma circulação discursiva que tira o professor do lugar de queixa e impotência e o põe a se interrogar sobre a sua prática pedagógica.

Partindo de tais observações e escutando os relatos dos professores sobre suas dificuldades com essas crianças em sala de aula, percebemos a importância de um trabalho de escuta desses educadores que se mostravam ávidos em poder falar não só dessa criança dita ‘diferente’ mas de seu trabalho com todas as outras crianças difíceis.

Desenvolvemos, assim, um trabalho com os professores composto pela escuta psicanalítica e por intervenções específicas, com o objetivo não só de localizar a posição do aluno na estrutura discursiva da escola, como também para promover deslocamentos nas posições subjetivas dos professores em relação à problemática de seus alunos.

Sabemos que a escuta psicanalítica na clínica convencional é aquela que se propõe a escutar o sujeito do inconsciente, sujeito singular, e supõe a travessia de um fantasma como direção de cura no tratamento padrão.

E o que nos autoriza a denominar o trabalho desenvolvido no Grupo Ponte de escuta psicanalítica se estamos absolutamente distantes daquilo que os psicanalistas chamam de tratamento padrão?

Foi a partir dos efeitos produzidos por essa forma de conduzir as reuniões de professores no Grupo Ponte que pensamos ser importante buscar na teoria psicanalítica os parâmetros necessários para a sustentação teórica de nossas articulações no trabalho com os professores.

Nossa hipótese é de que nossa prática de trabalho deveria figurar em um outro campo que propomos chamar de clínica psicanalítica ampliada.

Sabemos que este é um terreno bastante delicado no meio psicanalítico, pois existem grupos de psicanalistas mais ortodoxos que não reconhecem nas práticas institucionais e de grupo formas legítimas de exercício da psicanálise. Por outro lado, há aqueles que defendem e teorizam novas propostas de práticas psicanalíticas institucionais e afirmam que o campo da clínica psicanalítica pode sim ser ampliado.

Sobre essa polêmica, Kupfer (2000) defende a hipótese de que as práticas institucionais "representam uma forma de ampliação do campo freudiano originalmente construído para abarcar o trabalho com as neuroses" e lembra ainda que "a clínica psicanalítica de crianças também não se confunde com o tratamento-padrão, já que ela inclui, por exemplo, escuta de pais" (p.13).

E como encontrar operadores na teoria psicanalítica que permitam trabalhar com essa clínica ampliada?

Temos pensado ser possível tomar o grupo de professores como uma estrutura discursiva e, a partir daí, utilizar como ferramenta teórica para nossas articulações a teoria lacaniana dos quatro discursos.

Nosso trabalho toma como um importante ponto de referência teórica as contribuições feitas por Oliveira (1999) que discute e teoriza a escuta psicanalítica dos pais no tratamento institucional de crianças psicóticas afirmando que "se o grupo é suposto como estrutura discursiva, o que está em jogo é a relação de fala e não a relação das pessoas. Essa suposição permite trabalhar com os grupos numa referência à linguagem, ao simbólico, à lei e portanto à castração e à separação" (p.160).

Esses princípios teóricos já têm norteado a prática analítica no Lugar de Vida onde fazemos o atendimento da criança e dos pais.

Portanto, já é claro para os profissionais que trabalham na instituição que a instalação de um dispositivo de escuta para o discurso dos pais se faz necessária desde a demanda inicial de cura dirigida por eles à instituição e deve ser mantida durante todo o tratamento institucional da criança.

Se entendermos a direção do tratamento dessa criança enquanto educação terapêutica, visando seu possível ingresso na escola regular, teremos que pensar a partir desse ponto que devemos incluir o professor em nosso trabalho institucional.

Lacan (1969) em seu Seminário 17 formula a teoria dos quatro discursos marcando a existência de um discurso sem palavras, discurso enquanto uma estrutura que permeia todo laço social.

O discurso é, portanto, um instrumento de linguagem que instaura um certo número de relações estáveis estabelecendo, assim, modalidades de relação social que Lacan formulará em termos de quatro discursos: o discurso do mestre, o discurso universitário, o discurso da histérica e o discurso analítico.

Dito de outro modo, os laços sociais se estabelecem a partir do discurso, pois sempre que tomamos a palavra, ocupamos um determinado lugar e colocamos o outro em determinada posição, disso decorre uma determinada produção que terá a ver com uma determinada verdade.

O trabalho com professores no Grupo Ponte foi nos mostrando que se temos professores e alunos enlaçados numa estrutura discursiva, a escuta desses professores fornecerá elementos para que se situe a posição do aluno na estrutura discursiva da escola.

Cabe lembrar que o professor que participa de nossas reuniões muitas vezes, ao tomar a palavra, demonstra sua inquietação de não estar ali falando apenas em nome próprio e preocupa-se em marcar sua posição de integrante de uma estrutura escolar que dita normas e funcionamentos diante dos quais ele, muitas vezes, se sente impotente e incapaz de operar mudanças.

Nosso objetivo em trabalhar com o grupo de professores não é no sentido de oferecer uma psicoterapia de grupo e se trabalhamos com um dispositivo grupal é pelo fato de acreditarmos que a troca de experiências, e a interlocução entre pares, possibilita que os professores se interroguem a respeito das diferentes significações atribuídas aos sintomas dessas crianças, além de poderem refletir sobre o mal estar que reina no campo da educação.

Vemos, portanto, a importância deste trabalho com os professores não só no sentido da acolhida de suas experiências - sustentação imaginária – como na direção oposta, de produzir ‘furos’ no imaginário, trabalhando com as idealizações que imperam no campo educativo para dar lugar ao simbólico, a um fazer que seja da ordem de um possível.

Nossa experiência de trabalho com os professores mostra que, promover a explicitação dessas produções discursivas têm como efeito aquilo que Lacan (1958) chama de confrontação, marcando o que distingue, radicalmente, essa intervenção de uma interpretação.

Em seu texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder"(1958), Lacan discute o lugar da interpretação na direção do tratamento e marca a diferença entre aquilo que é da ordem de uma interpretação (que aponta para o fantasma, para o sujeito do desejo) e aquilo que é da ordem de uma confrontação do sujeito com seu próprio dizer, "uma formulação articulada para levar o sujeito a ter uma visão (insight) de uma de suas condutas (...) possa receber um nome totalmente diferente, como confrontação, por exemplo, nem que seja a do sujeito com seu próprio dizer, sem merecer o de interpretação, simplesmente por ser um dizer esclarecedor."(p.598).

Esse "dizer esclarecedor" possibilita que o professor se dê conta de sua implicação naquilo que, num primeiro momento, era visto como um problema exclusivo da criança, a respeito do qual ele só podia lamentar, queixando-se da falta de recursos e preparo dele e da escola.

O trabalho com o grupo de professores é uma estratégia que possibilita colocar em cena diferentes realidades educacionais - visto que os professores são oriundos de diferentes escolas - e diferentes alunos que, contudo, têm sintomas parecidos, ininteligíveis aos olhos dos profissionais da escola, mas que aos poucos vão sendo percebidos pelos professores como tendo diferentes significações.

São visíveis os efeitos desse trabalho de escuta dos professores nas reuniões do Grupo Ponte, pois como já dissemos não se trata de interpretação, nem tão pouco de explicações ou conselhos.

Vemos que essa escuta que implica o outro numa confrontação com seu próprio dizer contribui para que se instalem no lugar das certezas, perguntas e questões referentes às interpretações que os professores dão às atitudes ‘estranhas’ de seus alunos.

Os professores que trabalham com as crianças atendidas na Lugar de Vida têm a palavra assegurada em todas as reuniões abertas aos professores. A possibilidade de falarem sobre essa criança, tanto de suas dificuldades em tê-la na sala de aula como de suas conquistas em integrá-la na escola, favorece o vínculo com esse grupo de trabalho, bem como a circulação discursiva entre os professores, o que possibilita que eles acompanhem o trabalho desenvolvido pelos colegas e, por conseguinte todo tipo de obstáculos enfrentados.

Essa dinâmica de nossas reuniões possibilita ao grupo de professores fazer um giro nas suas produções discursivas, produzindo algo diferente. Uma vez que não encontram respostas fechadas de como devem conduzir sua tarefa educativa, os professores se vêem lançados a criar seu próprio fazer pedagógico considerando o singular inevitável que o desafia em cada aluno.

O que colocamos em ação, a partir de nossa escuta analítica dessas produções discursivas trazidas pelos professores, é a possibilidade de que nossas intervenções atuem na dinâmica que precipita a báscula de um discurso para outro.

Entendemos que com a formalização da teoria lacaniana dos quatro discursos fica legitimada a escuta analítica no grupo enquanto escuta de uma produção discursiva e não como escuta dirigida ao fantasma, ao sujeito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Lacan, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1998.

Lacan, J. (1969/70). O Seminário – livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor, 1992.

Kupfer, M.C.M. (2000). Psicanálise e instituições. Correio da APPOA. 83 (IX).

Oliveira, L.G.M. (1999) A escuta psicanalítica dos pais no tratamento da criança psicótica. Tese de Mestrado, IPUSP, São Paulo, SP.

 

 

NOTA

1 Educação terapêutica é um conjunto de práticas interdisciplinares de tratamento, com ênfase especial nas práticas educacionais, visando à retomada do desenvolvimento global ou à retomada da estruturação psíquica interrompida pela eclosão da psicose infantil. Ver Kupfer, M.C.M.(2000). Educação para o Futuro. São Paulo, SP: Escuta.