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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
On-line ISBN 978-85-60944-06-4
An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
Linguagem-criança e instituições
Maria Francisca Lier-DeVitto
LAEL e DERDIC - PUCSP
RESUMO
Neste trabalho, proponho-me a apresentar uma releitura da assunção cristalizada de que "linguagem é instituição social". Parto do Curso de Lingüística Geral (CLG), precisamente do momento em que, ao definir o primeiro objeto da lingüística, Saussure diz, de fato, ser ele "uma instituição social" (1916:17). Tal afirmação é confrontada com tecido argumentativo do próprio Curso e embalada, também, por comentários de autores que empreenderam, no final do século XX, um "retorno a Saussure". Saussure cria um "objeto teórico" que, como tal, não pertence nem à natureza, nem à cultura, i.e., cria uma "ordem própria" a que será atribuída, mais tarde, por Lacan, força de determinação da subjetividade. Saussure produz um desvio que permitirá refletir sobre a criança em seu percurso de falante: se humano, o ser terá que se haver com a linguagem e trilhar nela e, por força dessa relação, caminhos menos (ou mais) tortuosos como sujeito e como falante.
ABSTRACT
This paper discusses the well-known unquestioned assumption that language is a social institution. It is true that Saussure, in defining the object of linguistics, stated that it should be conceived of as "a social institution" (1916: 17). It is argued and discussed here that such a statement is disputable - it can be reinterpreted taking into account the very argumentative tissue of the author's Cours de Linguistique Générale. Indeed, Saussure's object of linguistics is strictly theoretical and, as such, it is neither natural, nor social/cultural, in epistemological terms. This paper stresses that la langue is a single order in itself and that it was "this theoretical novelty" that paved the way for Lacan to enunciate, later on, that language determines subjectivity. That being the case, one could say that Saussure has opened the possibility to approach the question of the child's relation to language, of her/his constitution as a subject speaker (be it admitted as successful or not).
O título que dei a este trabalho aproxima linguagem e criança e deixa instituições em posição final. Meu objetivo é trazer a discussão para mais perto do campo da Lingüística e da Aquisição e das Patologias da Linguagem - espaços teóricos com os quais tenho me envolvido nos últimos anos. Partirei, contudo, de uma questão que lança para uma esfera teórica a relação linguagem e instituição: "seria a linguagem uma "instituição social"?. Essa interrogação interessa porque atribui-se a Saussure tal correlação, raramente questionada seja no campo dos estudos lingüísticas seja em outras áreas das ditas ciências humanas: é moeda corrente e, como tal, gasta. Pretendo explorar essa cristalização questionável e equivocada.
Para dar andamento a esta discussão, vou a Saussure, num dos pontos mais obscuros e polêmicos do Curso de Lingüística Geral (CLG), que tomo como "obra" do autor -, assumindo, com J-C Milner (2002), que essa autoria foi construída retroativamente. Não entrarei, neste artigo, no debate sobre edição e autoria, que tem oposto leitores contemporâneos de Saussure, que são bastante conhecidos (Milner, 2002, Harris, R.1987; Normand, C. 2000, Bouquet, S. 2000; Silveira, E.M., 2003 e outros). Eles participam do que se tem designado como "retorno a Saussure", iniciado no final do século XX1. Tendo a concordar com Harris (1987) sobre o valor da edição - segundo ele, o impacto que o livro, escrito por alunos (a partir, basicamente, de anotações do terceiro curso ministrado por Saussure, em Genebra), é inegável. Foi, de fato, este texto, o Curso de Lingüística Geral, que afetou, de forma radical e paradoxal, o pensamento, nas ciências humanas, no século XX e, isso, muito antes da publicação de alguns dos manuscritos de Saussure (Godel, R. 1957; Engler, R. 1967, 1974; Bouquet. S & Engler, R. 2002). Na verdade, deve-se admitir que a procura de manuscritos foi motivada pelo CLG.
Para Harris (1987), o autor da novidade introduzida no CLG não foi anulado ou recoberto porque os leitores puderam reconhecer, na ordenação sintagmática complexa e problemática da edição, algo que a ultrapassava, i.e., puderam reconhecer uma autoria (aliás, resultado que os editores esperaram e pretenderam). Uma advertência àqueles que se aproximação do CLG pode ser importante: trata-se de uma obra que demanda uma leitura não-linear e que exige, portanto, dedicação e interpretação criteriosa. O Curso é perpassado por falhas de transcrição e de tradução, por confusão de datas e imprecisão na notação de termos fundamentais como uma língua, a língua e linguagem. É texto muitas vezes lacunar e truncado, com vaguezas e argumentações obscuras. De fato, a edição apresenta um "pensamento tortuoso" (Milner, J-C. 2002) que exige uma leitura alemã (como diz Cláudia Lemos).
Feitos esses comentários gerais, passemos a Saussure do CLG que, ao definir o primeiro objeto teórico da lingüística – la langue – afirma, no exato momento de uma primeira definição, ser ele "uma instituição social":
"a língua [la langue] é produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos" (1916: 17).
Desta citação, podemos retirar que a língua é produto social de uma faculdade da linguagem. Dito de outro modo, há nessa definição uma relação de causa e efeito que não foi sempre respeitada e que é responsável pela cristalização de uma interpretação redutora, corrente e vigente, de que a língua é um "acontecimento social" e que pode, por isso, ser explicada por meio de um raciocínio sociológico. O problema de uma tal interpretação é que ela não só anula a "faculdade da linguagem" (inverte a relação causa-efeito), como também e principalmente apaga a novidade de "la coupure sassurienne": a de que a linguagem só pode ser explicada a partir de seu modo próprio de funcionamento, de suas leis de referência interna. Corre-se o risco, se o toque no CLG for ingênuo e desavisado, de não se ultrapassar a simplificadora "leitura filológica", que atravessou o século XX (de Lemos, Lier-DeVitto et alli 2004). Uma das conseqüências mais notáveis dessa leitura corresponde ao estabelecimento de uma relação ingênua entre la langue e "social". Esse estado de coisas produziu a diluição daquilo que deu nascimento à Lingüística científica: a autonomia de seu "objeto posto" (Rodrigues, N. 1975), entendido como "força perene e universal" (Saussure, 1916: 13) e que, portanto, não pode ser "social", uma esfera que, por definição, está do lado da variedade ou diversidade (Koyré, A. 1973).
No jogo entre "faculdade da linguagem" e "língua como produto social", presente na citação acima, apresenta-se a dicotomia natureza vs. cultura a que, na verdade, Saussure não dedica muita atenção ou importância. De um lado, ele reconhece que linguagem e homem definem-se mutuamente, contudo, ele se recusa a assentar a Lingüística na fileira das ciências naturais ou biológicas. Este ponto é importante porque, entre outros motivos, traz uma questão de ciência, do ideal de ciência em Saussure. Podemos entender que, ao dizer que la langue é "produto social" de uma "faculdade de linguagem", o autor tome claramente o partido da ciências humanas, embora o ideal de ciência que persegue impede que la langue (e a Lingüística) fique bem acomodada no ambiente das "humanas"2. Resumidamente e com Milner (1987; 2002): aquilo que Saussure não queria era que o objeto da Lingüística - la langue – fosse individual, inato - uma determinação da natureza3. Aparentemente por essa razão, ele invoca "o social" (o lado direito da oposição natureza-cultura) como um instrumento para afastar uma possível relação entre la langue e atributo da espécie. Acompanho Milner (2002), para quem "social", na obra de Saussure, tem força de oposição a "natural", a "inato", sendo estritamente esse seu valor (de oposição e não de definição). Segundo tal interpretação, a língua não seria uma instituição social stricto sensu.
Retomando mais uma vez e brevemente a citação acima, lemos que la langue é "produto ... social", mas não podemos deixar de ler com cuidado o quê sucede essa afirmação: a língua é "um conjunto de convenções adotadas pelo corpo social" (ênfases minhas). Não seria o caso de, frente a tal enunciado, perguntar se la langue, enquanto "produto" seria um produto criado por falantes ou um produto imposto aos falantes? É bem difundida a solução saussuriana de afastamento da questão da origem como uma não-questão científica – o quê logicamente oblitera ou anula a oposição natureza-cultura. Admitamos, então, que os termos "social" - e outros a ele relacionados e que estão presentes no CLG - acabaram favorecendo a interpretação repassada e repisada de que a língua, para Saussure, seria determinada (por) ou redutível a um fenômeno social/cultural.
Mas, como disse, o CLG exige leitura aplicada. Em se tratando de um autor que é referido como "pai da lingüística", advogo que a linha de reflexão que avanço neste artigo é mais apropriada porque ela não minimiza a complexidade do CLG, nem apaga novidades: o sentido fundamental do pensamento de Saussure sobre a autonomia do "objeto-língua". Em favor desta interpretação e seguindo, ainda, a ordenação sintagmática desta obra, vemos Saussure afirmar que "natural ao homem" é "a faculdade de construir língua, vale dizer, um sistema de signos ..." (1916: 18). Trata-se, acrescenta ele, de uma "faculdade lingüística ..." (e não social), cuja natureza é a de ser "uma força" (1916: 13) - "uma faculdade de associação ... que desempenha o principal papel na organização da língua enquanto sistema" (1916:18). Penso que, frente a tais proposições, é importante não comprimir Saussure na oposição natureza-cultura. Relevante, ao meu ver, é que a faculdade da linguagem, segundo ele, é sem substância já que é um movimento (dirigido ou instruído para fazer associações)4. Esse delineamento saussureano anuncia, portanto, já na página 18, do CLG, que a linguagem é a esfera do simbólico ... uma "forma" ou "relações" de pura diferença:
"... que se nomeie língua a esse núcleo que, em cada uma das línguas, suporta sua unicidade e sua distinção; ela não poderá representar-se do lado da substância, indefinidamente sobrecarregada de acidentes diversos, mas somente como uma forma, invariante através de suas atualizações, visto que é definida em termos de relações" (Milner, 1978: 12)5 .
Gostaria de destacar três pontos referentes à argumentação que procurei conduzir até aqui:
(1) a faculdade da linguagem é lingüística (e não social),
(2) aquilo que a caracteriza é ser um movimento ("relações", portanto de afastamento da substância) e que
(3) "natural ao homem" é uma possibilidade: a de falar uma língua.
Não deveria ser com surpresa, então, que no último parágrafo da mesma página 18, acima referida, leia-se o seguinte: "... a faculdade [da linguagem] – natural ou não - ... não se exerce sem ajuda de um instrumento fornecido pela coletividade". Parece, de fato, interessar unicamente a Saussure que o homem seja ser-falante sem, com isso, essa condição seja atrelada à sua natureza (ou à cultura). Nisso, Saussure fica bem próximo de Lacan: o falante é parlêtre, sujeito feito de linguagem, um ser que "não deixa de ser afetado pelo fato de que fala" (1978: 61). Podemos, assim, concordar com Paul Henry (1992) e dizer que Saussure "dá a chave" (Lier-DeVitto & Fonseca, 2001) para se pensar a subjetividade como desvinculada da determinação orgânica (embora seja preciso ser Homem para falar). Gostaria de enfatizar que Saussure "não se dedica" nessa discussão filosófica sobre a origem e esse seu "natural ou não" mostra isso.
Saussure cria um objeto – "objeto teórico" - que, como tal, não pertence nem à natureza, nem à cultura: é uma "ordem própria": esse é o nó da questão. Aliás, ele diz o seguinte: "... introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação" (1916: 17). O que fazer com essa "ordem natural introduzida"? Como situá-la em relação ao homem? Esse é o problema com que se debate Saussure. Certo é que la langue não é função do indivíduo e nem da sociedade, mesmo porque ela não é uma instituição social ... "semelhante às outras" (op. cit., 17, 88, 90). Essa negação responde à questão enunciada de início: "a língua é uma instituição social?". Se fosse, ela não seria, mesmo, uma instituição social como qualquer outra e essa diferença (radical) não poderia ser assumida como irrelevante, uma vez isola a língua numa condição/situação tal que praticamente deixa sem sentido a afirmação de que "a língua é uma instituição social". Os argumentos de Saussure bastam e são convincentes – entendo que sejam efetivamente impeditivos da assunção de que a língua (ou a linguagem) tenha determinação social. Convém lembrar que Saussure afirma que a língua é "uma carta forçada"(op. cit. 85), querendo dizer, com isso, que nem indivíduo, nem a sociedade detém controle sobre a linguagem.
Uma língua (e por conseqüência a língua)6, diz Saussure, é uma herança imposta. Entende-se, portanto, que "a sociedade", os falantes de uma comunidade, sejam aqueles que "adotam" ou "sejam depositários" dessa herança. Assim, "coletividade" adquire, no CLG, a expressão que lhe conferirá o sentido mais apropriado de "massa falante" – a ela é imposta a herança lingüística. Saussure insiste em afirmar que a língua "não pode ser equiparada a um contrato [social] puro e simples" porque a "lei admitida [adotada] é algo que se suporta" (sem consentimento ou ponderação por parte dos falantes): ela " não pode ser mudada ... por um ato de vontade ou conveniência" (op. cit., 85). Note-se a substituição de "convenção" por "lei" neste momento do CLG. A sociedade (que passa de "coletividade" a "massa falante") não pode decidir ou deliberar sobre o quê suporta inconscientemente: "a reflexão não intervém na prática de um idioma" (op. cit. 86). Isso configura o desligamento da linguagem – ela não é comparável às instituições sociais, não pertence à mesma classe que elas. Língua/linguagem são cartas forçadas, independentes da vontade ou atenção consciente dos falantes. Podemos concluir, enfim, que:
(1) a língua não é uma instituição, no sentido de ser produto de uma vontade social, de um contrato refletido.
(2) a língua é instituição social, no sentido de que só há língua se houver falantes.
Nesse segundo sentido, língua e massa falante entram em relação de mútua determinação, sendo impossível produzir uma hierarquia entre elas: essa relação é lógica e não seqüencial. Tocamos mais uma novidade que Saussure introduz, referente aqui à polaridade natureza-cultura. Se admitirmos que a língua é uma instituição, se entendermos que é uma herança imposta, dizemos que um funcionamento (que comanda os falantes e uma língua) impõe-se à "massa falante". Essa é a ordem própria da língua de que os homens não escapam – ordem que é, como vimos, "perene e universal" (Saussure, 1916: 13). Procuro enfatizo fundamentos da ciência da linguagem, inaugurada por Saussure: há leis - operações perenes, universais ... que não são naturais nem sociais, mas lingüísticas. Essa é a herança de Saussure e ela impede que se reduza la langue a social (a instituição, a coletividade, a convenção, etc.).
Mantendo-me ao lado desse assento teórico, volto-me para a relação criança-linguagem: para o mistério da aquisição da linguagem, levando em conta o insucesso, ou seja, as ditas patologias da linguagem. Encaminharei minha discussão partido da afirmação de Saussure de que a língua "é uma carta forçada ... uma herança que se registra passivamente" (1916: 85). Deve-se admitir, então, que a língua impõe-se à criança e que, sem esforço cognitivo, ela se torna falante. Isso nos afasta de propostas comportamentalistas e construtivistas. De fato, com Saussure, a língua é recebida "passivamente", como vimos – a criança atinge a condição de falante sem o concurso de operações cognitivas ou "reflexivas" (palavras do autor). O sujeito (implicado, embora não teorizado por Saussure) não é, portanto, o epistêmico, que se apropria ou toma posse de uma língua (a materna) por meio de recursos perceptuais/cognitivos, como postulam as Psicologias. Vislumbra-se, com Saussure, portanto, a possibilidade de uma direção outra. Ele produz um desvio, no que concerne ao sujeito da razão/do conhecimento, e será em Lacan (depois de Freud), que encontraremos a expressão adequada: o caminho da criança corresponde ao de uma "captura" - no caso da Aquisição da Linguagem, pode-se dizer que ela é "capturada pela linguagem" (De Lemos, 1992, 2002 e outros).
Cláudia Lemos, no encontro com a fala da criança recusou, desde o início de seu trabalho, a possibilidade de atribuir a ela percepção categorial ou capacidades analíticas para segmentar o fluxo sonoro da fala (recusou que estivessem em causa, no processo de aquisição da linguagem, operações ou habilidades indutivas). Com base em suas intuições e interpretações da fala da criança e, a partir do re-encontro com Saussure, motivado pela Psicanálise, a autora pôde avançar uma teorização original impulsionada pela noção de "captura". A singularidade da proposta pode ser reconhecida pela recusa veemente de que o processo de aquisição é "desenvolvimento". Cláudia Lemos (1998; 2002 e no prelo) propõe uma interpretação estrutural em ocorrem 3 grandes transformações, empiricamente atestadas pelos pesquisadores do campo7), quais sejam:
(1) a fala da criança não apresenta erros – há extração sem análise, dizem os estudiosos; o segundo,
(2) a fala da criança é perpassada por erros de diferentes tipos – processos cognitivos reorganizacionais entrariam em operação e
(3) início de reformulações, correções e auto-correções - índices de operações metacognitivas.
Esses três momentos, desenhados numa curva em U para caracterizar um percurso de desenvolvimento, qual seja: a criança, de início, "acerta"; depois "erra muito e resiste à correção" e, finalmente, "acerta" ou transforma-se em falante.
Cabe assinalar que Cláudia Lemos não contesta esses achados empíricos mas os reinterpreta em termos posições da criança numa estrutura e suspende, assim, a idéia de desenvolvimento: na primeira posição, dominaria o polo do outro. Ela dirá, então, que os primeiros "acertos" seriam reflexos da alienação da criança à fala do outro. Na segunda posição, dominaria o polo da língua: aparece o que se concebe como "fala da criança" – uma fala distante e diferente daquela do falante adulto. A interpretação oferecida é de que a língua entra em operação nos fragmentos antes incorporados pela criança. Nessa segunda posição, a criança não teria escuta nem para a própria fala, nem para a do outro (os erros falam em favor dessa hipótese). Na terceira posição, a criança reformula seus enunciados e corrige os de outras pessoas. Cláudia Lemos não vê aí a emergência de capacidades metacognitivas/metalingüísticas, mas o momento da cisão da criança em falante/ouvinte, i.e., divisão entre instâncias não coincidentes: "uma instância que fala e outra que escuta" (op. cit. 2002). Vê-se, assim, que a criança que emerge em seu trabalho não é um sujeito-em-controle-da-linguagem, mas um sujeito cindido e, em suas palavras um corpo pulsional (não natural, mas interpretado pelo outro, pela língua, pelo falante como outro de si.
Em Os monólogos da criança: delírios da língua (Lier-DeVitto, 1998), concentrei-me na segunda posição, nesse tempo estrutural em que operações simbólicas põem em movimento a fala da criança, fala que se desenvolve com prejuízo de coerência, mas não de coesão: um texto se desenha sobre fragmentos-ecos de cenas vividas. Pode-se dizer que a língua (eixos metafórico e metonímico) opera sobre restos imaginários de extensões variadas. Vejamos, a título de exemplo:
1 Maybe when my go -- come
2 Maybe my go in Daddy’s (blue) big car
3 Maybe when Carl come (again)
4 Then go to back home
5 Go peaboby
6 Carl sleeping
7 Not right now – the baby coming
8 my house
9 Aaaaaaaaaaaaand Emmy, Emmy ((everything)) (???) coming
10 After my nap
11 Not right now – cause the baby coming now
Chamo a atenção para o primeiro enunciado que introduz os ‘fragmentos/palavras’ (maybe when my ... go/come) que serão repetidos nesse segmento monológico. Fragmentos/partes que invocam metonimicamente segmentos de textos e cadeias que freqüentaram e que se sucedem nesse monólogo. Esses fragmentos podem ser vistos como âncoras coesivas e disparadoras porque insistem, fragmentos que condensam e convocam seqüências que alinhavam a textualidade. Vale dizer que a coesão textual é comandada por um paralelismo estrutural, governado pela reiteração de go/come – são eles que costuram o monólogo ao serem ressignificados a cada instância de seu aparecimento. Podemos dizer que estamos frente a ‘operações pré-meutafóricas’ (Lier-DeVitto, 1998, 2003) porque ocorrem ‘em presença’ e não in absentia (característica das operações associativas, segundo Saussure). Tais operações metaforicamente metonímicas presentificam séries de enunciados com go/come (Lier-De Vitto 1998) em que um enunciado parece não ler o outro propriamente. Neste monólogo, as articulações entre enunciados não obedecem a restrições de natureza sintática. Nota-se, contudo, que carregam um texto porque são restos textuais – ecos de cenas vividas. Assim, mesmo com perda de coerência, a fala da criança não rompe os limites de uma região discursiva e dialógica - sua fala é invadida pelo outro e movimentada pelo jogo "perene e universal" da língua.
Como disse, as repetições dão coesão ao texto e deixam ver a predominância do eixo metafórico, que comanda a contenção (abertura e fechamento) da proliferação metonímica. Ou seja, o processo metafórico rege as oposições que se estabelecem entre go - come, entre go - go in - go to; entre os advérbios not right now - after my nap - now e entre back home - my house - jogo esse que, ao mesmo tempo em que alinhava a textualização, perturba o sentido. Note-se que as oposições metafóricas produzem seqüências que, em sua articulação, são contraditórias. Pode-se indagar, por exemplo: 'Quem vem?' – 'Emmy', 'the baby', ou 'Carl'?. Do mesmo modo: 'Quem vai?'. Ou, ainda: 'Quem vem/vai' ... vem/vai 'now', 'not right now' ou 'afetr my nap'?. É, de fato, essa inconclusividade que deixa o sentido à deriva e o texto em ponto final.
Se lembrarmos, aqui, da criança na terceira posição, podemos dizer que monólogos são assim porque, "do ponto de vista da língua, não há restrições suficientes ao seu movimento e, do ponto de vista do sujeito, não há escuta que o barre’ (Lier-De Vitto 1998, 2003). Disso decorre que "erros" ocorrem: a criança que fala é falada pela língua – é ela que tece relações metafórica e metonímica entre fragmentos de fala, sem que a criança se surpreenda e, como não há ainda divisão do sujeito entre aquele que fala e que escuta, ‘não há retroação (Lacan 1957), nem retroarticulação (Milner 1989)’, como assinalou de Lemos (1998 e no prelo). Dito de outro modo, não há restrição imaginária ao jogo simbólico. Vejamos como é o monólogo de Camilla:
Num fala no meu nome
Num fala no teu nome
Num fala midanoni
Num fala mianomi
Num fa’a midanomi
Num fala no .......nomi
Monólogos como este levaram pesquisadores a dizer que a criança começa como poeta ou, então, a ver neles uma criança praticando para aprender, realizando exercícios estruturais para fixar regras gramaticais8: um sujeito propriamente psicológico com distância perceptual/cognitiva em relação à linguagem. Pois bem, ficar ao lado de Saussure significa tomar uma posição diametralmente oposta – significa recusar que a criança possa realizar atividades metalingüísticas, já que a língua/linguagem é carta forçada. Nesta perspectiva e frente aos monólogos, podemos-se dizer que a materialidade fônica revolver-se sobre si mesma, criando um tempo relacional (lógico), que suspende a direção metonímica do sentido. Equivalências sonoras montam/desmontam articulações significantes (no meu nome, no teu nome, midanoni, mianomi, midanomi) – montagens que não são aleatórias, mas restringidas pela substância fônica. Essa mobilidade promove o distanciamento, a não-coincidência entre a fala da criança e a do adulto e traz à luz o inédito da fala de criança (Lier-De Vitto 1998) ... efeito típico da ‘segunda posição’, conforme propôs de Lemos. Mas, se no monólogo de Camilla vemos o sentido entrar em deriva, há volta para trás, um sinal de escuta? ... anúncio de ‘terceira posição’ -, de que o movimento interno de significantes que começa a afetar a criança?
Estabeleceu-se, no encontro com os monólogos, de forma definitiva, meu gosto por falas estranhas, pelos mistérios da tensão constitutiva língua-criança-fala. Meu ingresso numa instituição - a DERDIC - colocou-me frente aos fracassos desse processo, idealizado na área de Aquisição da Linguagem. Esses fracassos - índices de uma captura problemática da criança, levaram-me a refletir sobre a falas sintomáticas9 . Elas interrogam as três posições que não rendem quando se procura elucidar a posição, sempre complexa e singular, de crianças com falas sintomáticas. Nessas falas desarranjadas, que "não passam a outra coisa" (Lier-DeVitto & Arantes, 1998) as 3 posições ficam embaralhadas numa lógica impossível de ser hierarquizada e difícil de ser apreendida (Lier-DeVitto, 2001) Essas falas dizem de uma escuta muito particular da criança para a fala dos representante da língua constituída (Arantes, 2001; Andrade, 2003).
Os desarranjos são intuitiva e imediatamente reconhecíveis como "diferentes" dos de falas de crianças que caminham na direção esperada. As segmentações, aglutinações e encadeamentos são estranhos, surpreendentes, causam perplexidade, como podemos ver abaix:.
(Fonoaudióloga e menina de 5 anos)
T. A Mariana foi na sua festa? Você brincou ?
Cr. Binquei.
T. Com quem?
Cr. Com // icô ca minhari //
não tinha ninguém na minha festa![um pouco depois]
Cr. Ranhê cachorru //
Ele //
T. Como é que é? Quem arranhou o seu cachorro?
Cr.. É// ranquei cachurrá // bivita // endê // a Maria.
Frente a essas ocorrências, o outro-falante é afetado de um modo inequívoco: o efeito dessas falas é de "patologia". Como disse Fonseca (1995), ele é colocado numa posição "patológica" porque sua escuta entra em sofrimento frente a essas falas em sofrimento (Fonseca, 1995). A criança fala, mas escuta (ou não) a diferença sintomática de sua fala, mas não reformula, não pode corrigir. Sua fala a expõe "em falta" para o outro. De todo modo, a língua se movimenta nessas falas inesperadas, que podem ser até "corretas" do ponto de vista gramatical, mas que permanecem estranhas:
(Fonoaudióloga e menina de 9 anos)
T. O seu pai veio com você?
Cr. Veio
T. Vocês vieram de ônibus?
Cr. Não
T. O seu pai trouxe você de carro?
Cr. É ... ele está trabalhando.
T. Trabalhando?! O que o seu pai faz?
Cr. Ele faz de propósito
Como se vê, essas falas sintomáticas não restem a ser reduzidas seja a uma empiria (a espaço de aplicação de instrumentais descritivos, como faz um lingüista), seja a sinal observável de problema orgânico, emocional, ambiental ou cognitivo-social (Lier-DeVitto, 2005). Entendo que, para dar um tratamento teórico adequado ao sintoma na fala, língua e subjetividade devam ser consideradas e articuladas. Pelo lado da língua e de suas conseqüências na fala, pode-se apreender o modo de composição e de circulação singulares de elementos significantes (como procurei mostrar nas análises dos monólogos). Essa singularidade tangível pelas operação da língua na fala de um falante, por sua vez, remete a um modo singular de relação do sujeito com a fala: (1) ao modo como ele "escuta" a fala do outro e a própria fala e (2) ao modo pelo qual o que ele diz é restringido por processos internos da linguagem.
Poderíamos dizer, então, que o "sintoma na fala" é uma assistematicidade regulada por leis, tanto quanto as falas ditas normais. Trata-se de uma assistematicidade manifesta, não dissimulada. As falas sintomáticas mantêm a criança na posição de objeto (ela não pode mudar, reformular, corrigir) e é por conseqüência de uma relação sintomática criança-língua-fala que ela – a criança – chega a instituições sociais: escolares, clínicas ou outras (como a DERDIC, ou como a Escola da Vida). A questão é que o humano não escapa à linguagem e, portanto, a criança terá que se haver com uma língua e a língua para se tornar sujeito e falante ... de algum modo, de uma forma menos (ou mais) tortuosa.
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1 Sobre o CLG e sobre seus manuscritos.
2 Tendo-se em vista que a tarefa do lingüista é buscar as forças em jogo, de modo perene e universal (1916: 13), só se pode identificar o ideal de ciência saussureano como sendo "galileano". Também as muitas tentativas de oferecer uma "matematização" para a lingüística ou de mostrar definições por meio de "grafos" falam em favor dessa hipótese. A complicação está em que, Saussure quer o universal-matematizável, mas sugere que ele não seja o universal-biológico. Na verdade, Saussure acaba dissolvendo a dicotomia natureza- cultura (ou universal-diverso).
3 Sabemos ter sido esta a opção de Chomsky (um ponto fundamental de distinção entre o programa científico de Saussure e o seu).
4 Relações solidárias que serão, depois, em outro capítulo do CLG, definidas como "sintagmática" (in praesentia) e "associativa" (in absentia).
5 Relações, acrescenta o autor, como as sintagmática e paradigmática ou representadas sob a forma de regras de natureza diversa. Interessa, para ele, enfatizar que invariantes são "relações".
6 Convém não esquecer que "é ouvindo os outros que aprendemos a língua materna" e que "a língua ... é algo comum a todos independente da vontade dos depositários" (Saussure, 1916: 27). Ou seja, a língua vem da fala.
7 "Admitidos" sim, mas não suficientemente teorizados.
8 Weir, ao associar um "fato de língua" a uma prática e, conseqüentemente à aprendizagem, acaba por se afastar dos "fatos de discurso". Ela perde o movimento da língua de que as substituições são efeitos que põem em andamento os monólogos.
9 Gostaria de fazer referência, aqui, ao Projeto Integrado Aquisição e patologias da linguagem (CNPq 522002, 97/8), que teve vigência de 6 anos e que transformou-se no Grupo de Pesquisa Aquisição, patologias e clínica de linguagem, cadastrado no CNPq, de que participa um número significativo de pesquisadores. .