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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
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An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
A infância, a escola e os adultos
Leandro de Lajonquière
Professor Titular da Faculdade de Educação da USP
RESUMO
A diferença no interior da psicanálise entre os termos infância e infantil possibilita indagar a tese histórico e sociológica sobre o desaparecimento do sentimento moderno de infância.
ABSTRACT
The difference in psychoanalysis between terms like infancy and infant permits to question the historical and sociological thesis about the disappearance of the modern feeling of infancy.
Uma mãe troca as fraldas e alimenta o bebê, porém a satisfação dessas necessidades não é condição suficiente para inocular os germes da produção subjetiva. A questão é que ela lhe fala em voz alta e baixa. Nesse rítmico falar, a mãe conta histórias de todo tipo e inventa diálogos (se) fazendo perguntas que ela mesma (se) responde. Assim, toma como metáfora o desencontro no real com esse pequeno ser no mundo e, sem saber, faz ex/istir sentidos não previamente dados "na" criança.
A fala materna injeta metaforicamente as ditas capacidades intelectuais que as psicologias afirmam serem dadas no organismo do bebê. Em outras palavras, a mãe denega o caráter assimétrico da relação e faz do pequeno ser um sujeito tomado tanto na vontade de comunicar quanto na inteligência da compreensão.
Por que uma mãe se lança em semelhante empresa?
Porque ela não sabe o que a criança precisa na sua concreta e parca existência. Se tivesse certeza não lhe falaria aos olhos. Ela fala por duas razões: tanto para se tranqüilizar pelo fato de não saber - como aquele que cantarola no escuro -, quanto para colocar palavras na boca de "seu filho" na esperança de que assim ele possa lhe contar do estranho mistério que o anima, de sua condição de estrangeiro recém chegado. Onde, o mistério - a estrangeirice - que anima o bebê é precisamente o enigma da diferença entre a Mulher e uma mãe1.
A criança dessa mãe aterriza nos seus braços como se fosse um estrangeiro. À diferença do selvagem ou do primitivo - cujos mistérios o civilizado teima em apagar -, o estrangeiro é suposto ter coisas de Outro mundo para nos contar. Uma mãe espera que o bebê aprenda sua língua para vir a saber sobre esse Outro mundo e, assim, ficar menos estranhos e mais familiares. Entretanto, se essa mãe considerasse a criança um selvagem ou um primitivo, então, não falaria com ela2. O primitivo e o selvagem são, ao contrário, supostos não possuidores da mesma inteligência e da mesma vontade do suposto civilizado psicologicamente maduro.
Quando uma criança chega ao mundo, já faz um tempo que o adulto o habita. A chegada implica uma reordenação do mundo posto que a cria sapiens, não sendo um adulto em miniatura, instala uma diferença que, feita tensão temporal, moverá o devir adulto. Todo adulto quando se endereça a uma "criança", lhe demanda deixar atrás essa sua condição estrangeira de infans. Mas, o adulto sabe da impossibilidade do pequeno sujeito de responder à altura de sua demanda.
O adulto demanda à criança, enquanto dá tempo ao tempo, apostando no desdobramento da diferença posta na origem. A disposição metafórica do adulto produz um tempo a ser doado como tempo de espera ao pequeno sujeito.
Já à criança, tomada nesse dispositivo temporal, sempre lhe escapa o "ponto de vista" do adulto, o desejo que anima a demanda educativa. Por essa razão, ela passa a supor inconscientemente ao adulto um saber fazer com a vida. Mais ainda, a criança, passa a desejar saber esse saber suposto aos grandes e, dessa forma, às vezes de brincadeira, outras vezes não tanto, faz questão, uma e outra vez, de entrar num mundo sempre velho ou, se preferirmos, no mundo dos velhos.
No entanto, quando por fim chega sua vez, a "criança" de outrora agora já convertida em "adulto", defronta-se com o fato de que "o ponto de vista suposto aos grandes" na aurora de sua vida não é tão sabido assim e, portanto, que o tempo era tão só para ser gasto. Em outras palavras, o saber do qual o pequeno sujeito pensava que era privado revela ser, de fato, o saber não sabido da castração.
A introdução da "criança" numa história em curso instaura uma tensão no campo do discurso entre o lado de lá – aquele do infans - e este outro de cá – aquele do adulto. Onde ambos os termos, infans e adulto, não são pontos de uma linha genético evolutiva rumo a uma razão mais ou menos iluminada, conforme postulado pelas clássicas psicologias do desenvolvimento - herdeiras paradoxais do ideário iluminista - mas, posições no discurso com relação ao desejo – à palavra Outra3 .
Ser "adulto" é, paradoxalmente, "não Ser". É estarmos sujeitos à falta-a-ser; trata-se apenas de uma posição enunciativa no campo da palavra e da linguagem. "Está adulto" aquele sujeito a não poder se furtar de tentar a impossibilidade de se falar em nome próprio – isto é, no nome im/próprio do desejo que o habita e faz falta. Para tanto, o sujeito deve recalcar a criança que (se) foi para outros. Assim, o nosso adulto deve ser considerado entre aspas pois está mais para um ser grande que para um adulto de verdade verdadeira.
O "adulto" não sabe dessa criança que (se) foi. Não só, porque ela está já recalcada, mas porque, como lhe escapou o ponto de vista dos adultos no tempo da infância, não sabe sobre seu ser para Outro. O "adulto" passa a ter sua infância no momento em que ele a perde de fato.
Uma infância só existe como perdida, recalcada e, assim, ela não cessa de não se escrever/inscrever, em suma, de insistir em "nós". No entanto, como ela insiste enquanto diferença temporal – mistério - nos torna estranhos ao presente ou, se preferirmos, torna-nos estrangeiros a nos mesmos.
Para que um "adulto" advenha no lugar da cria sapiens de outrora é necessário que um ser grande tome como metáfora o inevitável desencontro no real com esse pequeno ser no mundo. Esse giro de posição discursiva é a própria condição de possibilidade de que venha a ex/istir - existir fora de si - um tempo de infância.
Quando o infans deixa de ser tal, pois agora é um "adulto" , a infância passa a existir como perdida e, assim torna-se presença de uma ausência no mundo adulto. A infância passa a existir como perdida, mas não toda ela. O que resta do encontro de uma criança com o "adulto" – com um desejo em causa que não seja anônimo, diria Lacan - , em parte, inscreve-se psiquicamente como desejo sexual e infantil, ou em outras palavras, como aquilo que passa a fazer falta num mundo adulto. No entanto, uma outra parte desse mesmo des/encontro precipita sob a forma de gozo ou do infantil. Em suma, a infância é um dos nomes da própria estrangeirice de um mundo tomado na série dos devires temporais.
Quando um ser grande se depara com uma criança, olha-se nela como se fosse um espelho. Olha olho no olho e, assim, pretende que do fundo desse olhar lhe retorne a sua própria imagem às avessas, ou seja, espera ver-se não sujeito à castração, espera voltar no tempo para assim fruir à exaustão do que restou da infância perdida – o infantil. Justamente, o "adulto" investe narcisicamente a criança na tentativa – sempre vã - de esgotar esse infantil que não cessa de não retornar para, assim, finalmente, vir a saber tudo sobre a "sua" infância. O "adulto" espera, em vão, vir a saber tudo de si através da criança-espelho. Dessa forma, a criança se faz credora de um saber sobre si que o "adulto", denegando o fato de tê-lo previamente creditado, espera que lhe seja revelado por ela.
O saber não sabido depositado na conta da criança faz dela um estrangeiro de quem queremos apre(e)nder suas histórias de um "Outro mundo". Porém, isso é impossível, pois pretendemos que nos revele essa estrangeirice que habita em nós. D'isso só podemos "nos falar" a "nós mesmos" à medida que as crianças - permanecendo sempre um pouco singulares - nos retornam o fato de sermos sempre estrangeiros a nós mesmos. No entanto, o mal-entendido não aborta o diálogo; pelo contrário, o alimenta ao tempo que faz acontecer uma educação.
Educar é transmitir marcas simbólicas que possibilitem ao pequeno sujeito usufruir um lugar no campo da palavra e da linguagem a partir do qual seja possível se lançar às empresas impossíveis do desejo. O desdobramento de uma educação, de uma filiação simbólica humanizante, pressupõe na origem que o "adulto" receba a criança como se fosse um estrangeiro.
Por outro lado, tanto o selvagem quanto o primitivo não tem nenhuma história para contar. Pouco importa se ele é bom ou mau; nunca é credor do direito à palavra. As coisas que faz não fazem incógnita em nós, não fazem desencontro, não nos colocam perante um mistério sobre o qual desejaríamos saber por que é de fato o nosso: trata-se necessariamente de bizarrias para nada familiarizáveis. Queremos só conhecê-lo, ora para adorá-lo em silêncio e com conhecimento de causa, caso seja um bom selvagem, ora para melhor vencê-lo e assim poder ignorá-lo de vez, caso ele seja um primitivo mau.
A educação do selvagem e do primitivo são a priori um fato de difícil acontecimento. Ambas duas são uma contradição em seus termos. Só pode advir uma educação para um sujeito se por ventura no des/encontro com uma criança, os "adultos" nos permitimos deparar-nos com o retorno de nossa (im)própria estranheza.
A maioria das crianças conseguem paradoxalmente usufruir de uma educação, na proporção da estrangeirice infantil que ainda guardem para si à despeito de ter-se tornado familiares. Esse processo de filiação humanizante desdobra-se movido a desejo - à falta de proporção entre o adulto e a criança. O pequeno sujeito atravessa vicissitudes - assim como Ulisses no regresso à sua Ítaca familiar – mas acaba chegando do outro lado ... para, assim, continuar a navegar, embora em outras condições no campo da palavra e da linguagem.
Uma educação acaba sendo de fato possível a despeito de sua própria impossibilidade que também aninha-se nos sonhos adultos dos seres grandes. Todos nós - crianças de outrora – pegamos no tranco de nossa travessia na medida em que invertemos a demanda educativa, garimpando, cada um, um lugar para-si nos sonhos de outros.
No entanto, às vezes, uma educação pode não avançar no seu desdobrar, entrando num impasse. A criança passa a experimentar dificuldades para poder continuar a sua travessia na invenção de uma filiação simbólica. Não por acaso, nesse mesmo momento, deixa de travessar/travessear como uma criança "com nome e sobrenome" e passa a circular com uma etiqueta pendurada onde se notam todas as "suas" necessidades mais ou menos especiais. Assim, corre o risco de entrar até numa espécie de pane psíquica, ficando à deriva sem muito rumo, poética ou graça.
Escapa à ciência psi o conhecimento a priori do momento preciso em que se aborta uma educação. Escapa também a ela, a porcentagem exata de como supostas variáveis acabaram combinando-se entre si. Entretanto, a psicanálise nos alerta de como uma educação pode vir a se tornar um fato de difícil acontecimento. O quid em pauta é a impossibilidade de o adulto desdobrar o desencontro no real com uma criança ou, se preferirmos, a impossibilidade de A Educação.
O "adulto" – às vezes - não pode não botar defeitos na criança. Ela não é tomada como um espelho onde o "adulto" possa se lançar à empresa impossível de ver-se a "si mesmo" – a criança é um espelho fora de foco. O "adulto" passa a gastar o tempo em tentar apagar essa marca que a seus olhos torna deficiente – carente - o espelho-criança na sua capacidade ou potência de reflexão. Quanto mais o "adulto" fica obnubilado por essa marca e pelos procedimentos necessários para apagá-la, mais não consegue ver-se no espelho que sua mão esfrega sem rumo.
Em suma, sendo impossível ao "adulto" suspeitar de/do "si mesmo" – de seu suposto caráter adulto - , priva-se de experimentar estrangeirices inquietantes para, assim, gozar com selvagens pesadelos e carências de todo tipo.
Às vezes, essa marca está entalada na cria sapiens, como por exemplo, a surdez, a cegueira, a paralisia cerebral, o curto-circuito neuronal, ou simplesmente o sexo. Ela em si não tem sentido – é insignificante. Mas o assunto é que ela não faz sentido para o "adulto" ou, ao contrário, faz muito sentido. A marca só retira potência, ela é déficit o carência de alguma outra Coisa.
No entanto, em outras oportunidades, o "adulto" nem precisa encontrar uma dessas marcas no organismo para botar algum defeito: às vezes, o que torna carente uma criança é a condição de classe de seus pais. Já, outras vezes, basta a presença fatual de uma criança no mundo para que o adulto bote defeitos nela.
Assim, esses seres pequenos ficam à mercê da falta de oportunidades de advirem diferentes de como são excepcionalmente supostos nas suas "deficiências". Onde essa exceção, o é com relação ao laço entre o familiar e o estrangeiro.
***
A demanda adulta que se preze tal precipita um dispositivo arbitrário que entranha o tempo de espera de uma recompensa sempre a ser sonhada – o saber sobre o desejo ou ser sempre um pouco mais adulto. Assim, o engajamento do candidato a adulto é movido a desejo. Já se o "prêmio" pelo esforço fosse de um outro estofo como, por exemplo, qualquer figuração terrena e material da "felicidade", a pose do prêmio seria o não-desejar. Nesse caso, a legalidade da demanda sofre um desgarro. A promessa fálica e o tempo psíquico da espera se dissipam quando o dispositivo discursivo, que tenta bordejar a diferença no real do devir temporal, revela ser não-metafórico.
No entanto, à medida que a demanda dos "adultos" de hoje visa à montagem de um cotidiano de "relações adequadas", coloca-se a vida junto às crianças no registro da complementaridade. Assim, faz com que os "adultos" apareçam aos olhos infantis como indivíduos movidos por necessidades claras e distintas. Quando os "adultos" deixam de se mover na vida como embaixadores animados por um espírito sempre estrangeiro - sempre Outro – aparecem ao olhar dos pequenos como seres não movidos a desejo.
As estrangeirices advém aos adultos4 do fato de ter uma infância perdida, mas não toda. Assim, quando elas advém de um memorar passado, carregam as marcas da excentricidade do tempo e, portanto, abrem a possibilidade para a criança de vislumbrar um horizonte para além do estado presente ou futuro dos mercados, do império gozoso da moda, do desenvolvimento "como um todo" das potencialidades e essas outras realidades que os adultos costumam cada vez mais invocar.
Os "adultos" de hoje pretendem que a infância não (lhes) faça estanha falta no mundo e, dessa espécie de não lugar numa genealogia, pretendem conseguir a façanha de que as crianças sejam simplesmente "crianças" e, por cima, felizes. Dessa forma, perdida a diferença movida a desejo entre os adultos e a criança, ambos passam a se confrontar, cada um esgrimindo justificativas, umas mais explicáveis que as outras, até que as ciências do comportamento ou a ritalina façam ponto de basta racional.
O desarranjo ou desproporção no plano das práticas contemporâneas dificulta o trabalho de metáfora sobre o real produzido pela própria chegada de uma criança a um mundo sempre velho. Assim, esse suplemento fica à mercê de retornar no real e, portanto, já não mais de forma invertida como toda mensagem recalcada.
Todos os dias, especialistas aconselham ajustarmos a vida com as crianças aos "novos tempos". Orientam-nos como fazer para estarmos certos de algo e arranjarmos ousadia para falar disso a uma criança. No entanto, essas iniciativas impossibilitam que se opere um desdobramento fértil da diferença entre as gerações que se pretende ilusoriamente driblar. E a razão é simples: as iniciativas (psico)pedagógicas – a diferença daquela mãe do início de nosso argumento - consideram o caráter estrangeiro alojado na falta de proporção entre uma criança e um adulto como se fosse um nível de desenvolvimento intelectual e comunicativo.
A infância, embora sólida como a humanidade que soubemos conseguir, bem pode desmanchar-se no ar. Para que isso venha a acontecer, o próprio funcionamento discursivo que faz das crias sapiens candidatos à gente grande deveria explodir pelos ares. Seria o caso limite de um mundo de clones. De um mundo onde a possibilidade de viver memórias ou sermos incomodados por reminiscências - ao dizer de Freud - estaria extirpada de vez.
Parece-nos um pouco difícil, mas enquanto o pior não chega, o dispositivo instituinte de infâncias experimenta, hoje, um desarranjo que implica na impossibilidade de se reciclar o resto de produção da mesmíssima infância. Onde, o grau de colapso desse funcionamento bem pode entranhar para uma criança a diferença entre o mal-estar inerente ao tempo da infância e o sofrimento psíquico próprio de quem perde toda referência simbólica na sua travessia de um lado ao outro no velho mundo da palavra e da linguagem.
1 Uma mulher lançada a ser Mulher, depara-se com um homem. Como prova do mal-entendido desse encontro, aparece um bebê que reinstala a diferença irredutível entre a Mulher e uma mãe. Isto é, o pequeno sujeito - produto do mal-entendido sexual - causa o desejo. Uma mãe ultrapassa a encruzilhada de dar o fruto desse des/encontro ao homem, cujo desejo viril ela consente causar, enquanto participa da Mulher. Assim, uma mulher metaforiza um pai, ou seja, experimenta a produção de uma inversão condensada e deslocada da posição contrária e histérica de se demandar ao pai a doação de um objeto impossível – um saber sobre a falta de proporção entre os sexos, um filho restaurador do narcisismo maculado pela privação. Onde essa singular inversão, desloca a essa mulher do destino preconizado pelo Pai da Psicanálise.
2 As ilusões (psico)pedagógicas levam os adultos a "falar da criança" e suas necessidades educativas mais ou menos especiais. Outra coisa é o "falar com ela" dessa mãe à qual nos referimos no argumento.
3 Enunciação testemunha da castração no Outro.
4 Não confundir com as estereotipias bizarras própria da loucura.