5A intervenção psicanalítica nas psicoses não decididas na infânciaReich, prevention, and childhood education author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Autismo: uma estrutura decidida? Uma contribuição dos estudos sobre bebês para a clínica do autismo

 

 

Maria Cristina M. Kupfer

Psicanalista - IPUSP

 

 


RESUMO

Neste texto desenvolve-se a questão do que pode haver de decidido na estrutura autista.
A distinção já localizável em Freud entre um eu-real e um eu-prazer poderia trazer um caminho possível de resposta. Articulando autores no interior da psicanálise que se dedicaram a pensar o autismo com autores que observaram a evolução dos esquemas corporais em crianças desde momentos bem precoces de seu desenvolvimento, procurou-se, na confrontação com uma prática clínica, trabalhar o que se passa neste momento de estruturação.
A noção de um esquema corporal independente e a de um devir viscoso parecem indicar o que estaria decidido na estruturação autista.


ABSTRACT

In this text it is developed the question about what can be decided in the autistic structure. The distinction already seen in Freud between a reality-ego and a pleasure-ego could bring an answer as a possible way. Articulating authors in the field of psychoanalysis that dedicated themselves to think about autism with authors that observed the evolution of corporal scheme in children from the very precocious moments of their development was considered in the confrontation with a clinical practice, to work on what happens in this structuring moment. The idea of an independent corporal scheme and the idea of "an about to be being" viscously seem to indicate what would be decided in the autistic structure.


 

 

Vou retomar aqui uma questão com a qual venho trabalhando e que foi a base de minha apresentação no Congresso sobre bebês de Curitiba, em 2001. Essa questão, em torno do eu do autista, me ajudará a desembocar nessa provocação que fiz para essa mesa de debates: o que há de decidido no autismo, contrariamente a esse não-decidido da psicose infantil? Ou então, haveria um destino na infância que se estruturaria de forma mais definitiva, mais fechada? Se houver, do que depende? Depende do momento em que o diálogo do infans com o Outro Primordial sofre uma interrupção? É claro que esse tipo de pergunta tem conseqüências sérias para pensar a clínica e a escolarização de crianças autistas. É claro que tem também conseqüências para pensar os diagnósticos, particularmente o diagnóstico diferencial psicose/autismo. Mas mesmo que a resposta seja afirmativa – a estrutura está decidida muito cedo – isso não significará de modo algum desistir do tratamento; poderá servir para abordá-lo melhor.

Então, vou retomar meu percurso anterior, o estudo do eu do autista, para em seguida tomar um outro rumo, o dos estudos sobre imagem corporal nos autistas, já que o eu e a imagem corporal são duas noções solidárias. Para realizar essa investigação, consultei alguns autores psicanalistas, mas também outros autores que estudaram imagem corporal. Acredito ser por esse caminho que podemos entender um pouco mais a respeito daquilo que se passa com um bebê nos primeiros meses, para não dizer nos primeiros dias, e assim abordar o que eu estou chamando de decidido da estrutura.

Vejamos em primeiro lugar a questão do eu. Se uma criança dita autista não pode ser considerada, estritamente falando, como um sujeito da linguagem, como um sujeito-efeito do significante, há, de outro lado, um eu, que preside aos seus movimentos no mundo dos objetos e mesmo no mundo dos outros, ainda que seja para evitá-los. Como conceber a sua instalação, se sabemos que o estádio do espelho, base para essa instalação, não se construiu convenientemente, como afirma Laznik (1989)? Como é que uma criança anda, pensa, se há danos sérios na construção de sua imagem corporal, pelo menos na imagem corporal que entendemos ser construída por meio do olhar do outro, por meio das significações que lhe são imputadas pelo Outro?

Observamos, na clínica, que essas crianças apresentam um desenvolvimento psicomotor de modo independente, uma inteligência em funcionamento, uma coordenação motora que se pode ver.

Quem é esse eu? Pode-se acompanhar uma resposta possível a essa questão nos textos de Laznik (1989), a partir da noção de eu-real e do sistema eu-real – eu-prazer.

Esta é uma noção que Lacan tomou de Freud e trabalhou de outro ângulo. No texto de Freud, A pulsão e seus destinos (1973), encontramos essa afirmação de que existe um eu que se encontra originariamente no princípio da vida anímica. O mundo exterior não oferece para ele interesse algum. Neste primeiro tempo, o sujeito coincide com o que é prazeroso, e o mundo exterior com o que é indiferente. Freud o chama de eu-real. É só num segundo tempo que se diferencia um eu-prazer, para o qual o sujeito coincide com o que é prazeroso e o mundo exterior com o que é desprazeroso.

Lacan (1959-60) lê a formulação de Freud a seu modo, em primeiro lugar dizendo que esse eu-real não está pulsionalizado nem é auto-erótico. Concebe-o de fato como o Sistema Nervoso Central, na medida em que funciona não como um sistema de relações, mas como um sistema destinado a assegurar uma certa homeostase das tensões internas.

Se o eu-real é Sistema Nervoso, pode-se então formular a seguinte hipótese: seria esse real correspondente a aquilo que alguns autores chamam de imagem corporal primitiva, ou de esquema corporal? Seria o eu real, ou esquema corporal, a estrutura que permite ao autista andar, desviar com habilidade dos objetos, etc..? É possível afirmar que o autista se vale bem desse esquema corporal, que é de fato um esquema real, ao qual não foi enodada essa imagem narcísica, imaginária, ofertada como dom pelo agente materno?

A partir dessa hipótese, minha pesquisa tomou duas direções: uma foi a de verificar o estatuto do Outro no autismo, e a outra foi a de por a lupa nesse corpo-organismo, nesse esquema corporal, com a ajuda de Dolto e outros pesquisadores, como Meltzoff e Trevarthen.

Beebe e col. (2004) realizaram um estudo no qual as perspectivas de Meltzoff, Trevarthen e Stern são comparadas. Segundo eles, Meltzoff observou formas rudimentares de imitação em bebês 42 minutos após o seu nascimento. "Aos 42 minutos a criança observa um modelo. O modelo faz um gesto, como abrir a boca o por a língua para fora. Durante os dois minutos e meio seguintes, a criança faz gestos cada vez mais parecidos com os do modelo". O mecanismo que explica essa possibilidade de imitação em idade tão precoce é o da coincidência transmodal: a criança associa o que vê com o que sente proprioceptivamente em seu rosto. Detectando coincidências, a criança pode, desde o começo de sua vida, traduzir os estímulos ambientais em estados internos. Segundo Beebe e col (2004), Meltzoff acredita que esta capacidade produz na criança o primeiro sentimento de que "tu és como eu".

Assim, é possível afirmar que para Meltzoff parece existir, desde o início, um mecanismo inato que já permite uma primeira "noção de si", uma primeira imagem corporal, ainda que extremamente inicial. Nesse autor a noção de imagem corporal corresponderia mais precisamente à de esquema corporal, tal como é utilizada em psicanálise.

Já Trevarthen formula a hipótese de uma imagem neuronal capaz de detectar os tipos de afeto que o outro lhe transmite. Segundo ele, a imagem do corpo da criança dentro do cérebro é capaz de refletir a ação do corpo da pessoa que está diante dela. Essa representação cerebral do outro está ancorada em uma imagem motora.

Em relação ao lugar do Outro na constituição da imagem corporal, esses pesquisadores fazem observações interessantes, utilizando naturalmente um referencial teórico diferente do da psicanálise. Em seus estudos, a relação pais-bebê assume importância capital, e nisso coincidem com os psicanalistas. Para eles, os bebês apreciam as correspondências entre suas próprias ações e a de seus companheiros. Por isso, o reconhecimento dessas correspondências, afirmam Beebe e col, (2004) proporciona para eles "uma linguagem comum e momentos especiais de conexão. As correspondências têm sua própria significação emocional: todos os participantes desfrutam destes momentos".

Trevarthen também descreve tais interações, mencionando "sutis e rápidos deslizamentos e saltos de tom ou de volume da voz, sílabas pré-acentuadas, morfemas de sufixos, detalhes e ornamentos rítmicos, gestos manuais rápidos, velozes movimentos de cabeça, mudanças de olhar… que aparecem de maneira abundante em toda comunicação conversacional espontânea". Em outras palavras, esses "momentos especiais de conexão" entre o agente materno e o bebê não são outra coisa senão momentos de mamanhês!

Dolto

Os trabalhos de Françoise Dolto contribuem significativamente para a discussão em torno da existência de uma imagem corporal inicial no bebê. A noção de imagem inconsciente fornece uma pista crucial para essa discussão, e pode ser aproximada dessa primeira imagem ou esquema corporal concebida por Meltzoff e também por Trevarthen.

Antes de mais nada, é preciso situar a distinção que Dolto estabelece entre a noção de imagem corporal e a de esquema corporal. Esse último é, para ela, "a ferramenta, o corpo, ou melhor, o mediador organizado entre o sujeito e o mundo. O esquema corporal será o intérprete ativo ou passivo da imagem do corpo, nesse sentido em que ele permite a objetivação de uma intersubjetividade, de uma relação libidinal linguageira com os outros, e que, sem ele, sem o suporte que ele representa, permaneceria para sempre como fantasma não comunicável" (Dolto, 1984, p. 22).

Já a imagem corporal existe, para Dolto, desde a concepção, e a todo momento, sendo "memória inconsciente de todo o vivido relacional" (p. 23). Graças à imagem do corpo, cujo suporte é o esquema corporal, podemos entrar em comunicação com os outros.

Até aqui, os pesquisadores consultados pronunciaram-se a respeito do modo como entendem que se devam esperar o surgimento e o desenvolvimento da imagem corporal em bebês. Mas é Dolto (1984) que virá trazer considerações sobre o que pode ser a psicopatologia ou os problemas que podem ocorrer nesse estabelecimento.

É possível, segundo ela, "assistir à aparente perda de reconhecimento das vozes familiares do entorno da criança; esta se torna não apenas muda, mas psicogênicamente não ouvinte. Ela não ouve mais as vozes humanas, as palavras, mas apenas os ruídos da vida. Ela anula o que dizemos, mas recebe as referências úteis para a sua sobrevivência riscando de sua atenção os humanos que a cercam" (p.216).

Dolto, nesses casos, pergunta pelo sujeito que deveria estar presente desde o início do nascimento. Mas seja qual for a razão, ele não assume, pela mediação de uma imagem corporal, um esquema corporal, que passa por isso a "viver sozinho, como um espécime anônimo da espécie". Há, segundo ela, uma separação entre sujeito e corpo, que ela chama de "desolidarização". O sujeito parece retirar o desejo de seu corpo e tende a descansar do trabalho de viver com esse corpo na realidade; "é como se ele se reduzisse a um ponto focal no qual os ritmos de sustentação vegetativos do corpo fossem bem mantidos, conservando a perenidade do sujeito momentaneamente em férias de libido" (p.216).

Férias de libido para Dolto, doença da libido para Soler (1990). "É a animação corporal que não vai adiante. Ou bem ele é um puro vivente, sem libido, no sentido do desejo, portanto inerte, ou ele se torna uma máquina significante, ele é maquinizado" (p. 21).

A hipótese que pode então ser avançada, a partir de Dolto, é que o autista é uma criança cujo esquema corporal funciona de certo modo de maneira autônoma, "des-solidária" do sujeito.

Quando, no entanto, o outro da pulsão, o outro que funciona com base no funcionamento libidinal do corpo, termina por se fazer presente para essa criança, acaba por impor-se, e a criança não pode mais ignorá-lo, deve-se perguntar o que ela pode fazer com isso, ou seja, como pode "entrar em relação" com ele, se sua libido está de férias? A clínica nos mostra que, nesse momento, a criança responde com aquilo que pode ser chamado de viscosidade. Por falta de enodamento libidinal entre o corpo e a linguagem, alguns autistas não sabem beijar seu semelhante; sabem apenas encostar seus lábios no rosto alheio. Colam-se em vez de beijar. O outro é fonte de sensações e não de percepções. Em minha experiência clínica, a tentativa de reconstrução da imagem corporal resultou, em alguns casos, no surgimento dessa viscosidade. Como se vê, aliás, no caso de Marcos, o italiano estudado por Laznik.

É a manutenção do esquema corporal independente, bem como o devir viscoso que surge quando o outro introduz a sua libido, que me dá a impressão do decidido da estrutura. Justamente por não estar marcado pelos desfiladeiros do Significante – e isso não significa que não tenha havido um dia um Outro da linguagem, só significa que ele, em sua inteireza, não está – o esquema corporal tem a fixidez do que não pode ser substituído, flexibilizado, colocado para deslocar-se. E quando o pulsional não se enlaça ao significante, degrada-se, não chega a tornar-se pulsão e encontra apenas o caminho da viscosidade, da aderência ao objeto, da doença da libido. Parece que quando o significante surge para o sujeito, é para ser puro código, para sempre descolado do corpo. É o menino de Oliver Sachs, são os meninos que nós tratamos, que crescem, vão à universidade, altos matemáticos, mas terão sempre dificuldades de relacionar-se com os outros. Aí está o que me parece o decidido da estrutura.

Algumas conseqüências dessas formulações

Em relação à intervenção precoce, observamos que os pediatras e neuropediatras já estão alertados para a necessidade de acompanhar a relação entre problemas orgânicos graves e atraso no desenvolvimento. Isso, vemos que já acontece; já sabem que têm que ver se a criança trabalha direitinho com os objetos, etc. Acontece que, justamente no caso dos autistas, o desenvolvimento pode estar muito bem e isso pode despistar os pediatras, porque será o esquema corporal e não a imagem corporal que estará se desenvolvendo. Sabe-se o quanto as crianças autistas são saudáveis. Então será necessário conversar com os pediatras, para que não se enganem, já que mesmo numa criança indo muito bem neste ponto do desenvolvimento, alguma coisa da ordem da não constituição do sujeito da linguagem pode estar ocorrendo.

Em relação à escolarização destas crianças, toda vez que lhes propomos escolarização, não estamos pensando em prover a ela condições de aprendizagem, no sentido de que possam se mover no mundo com esses conhecimentos. Estamos querendo que elas se beneficiem de outras coisas oferecidas pela escola: os laços sociais que ali se estabelecem, as possibilidades de oferta de outras posições. O terapêutico está nessa circulação e nessa relação com outros, está naquilo que vão obter nessa circulação por esses objetos de conhecimento.

A ênfase não está na produção de conhecimento, porque se a ênfase ficar na produção de conhecimentos, com crianças autistas, estaremos somente reforçando essa dimensão de inteligência pura, de trabalho com o puro código, onde não há mensagem, onde há algo que funciona de forma quase autônoma. Todos os métodos que vão nessa direção só estarão excluindo ainda mais o autista.

 

Referências bibliográficas:

BEEBE, B., SORTER, D., RUSTIN, J. KNOBLAUCH, S. (2004). Una comparación entre Meltzoff, Trevarthen y Stern. Revista internacional web de Psicoanálisis. Madrid, Aperturas psicoanalíticas, julho 2004, n. 17.

DOLTO, F. (1984) L’image inconsciente du corps. Paris, Seuil.

FREUD, S. (1973). Los instinctos y sus destinos. Obras Completas. Madrid, Biblioteca Nueva, v. 2, [1915].

LAZNIK-PENOT, M.C. (org.) (1989).O que a clínica do autismo pode ensinar aos psicanalistas. Salvador, Ágalma, 1989.

LACAN, J. (1959-60). L’éthique de la psychanalyse. Paris, Seuil, 1997.

SOLER, C. (1990). Hors discours : autisme et paranoïa. Les feuillets psychanalytiques du Courtil. Bruxelles, n. 2, p. 9-23.