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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A infância e a educação numa perspectiva histórica: o olhar de Monteiro Lobato

 

 

Alessandra Aparecida de Souza Gibello

Mestre em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências e Letras "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP/Araraquara

 

 

A presente comunicação foi elaborada a partir de reflexões pertinentes ao campo da educação e da literatura infantil que originaram a dissertação de mestrado Monteiro Lobato, "o sítio-mundo" e as identidades da criança letrada: memórias de leitura, na qual foi possível identificar e compreender o projeto político-pedagógico de Monteiro Lobato – formar as gerações futuras por meio da leitura, por meio de seus textos infantis – em consonância com as transformações sócio-político-educacionais que permearam o contexto histórico dos anos 30 e 40, buscando identificar, nessa medida, as "marcas" deixadas na primeira geração de leitores dos textos de Monteiro Lobato em sua infância.

Para isso, foi desenvolvida uma contextualização histórica acerca da constituição de um conceito moderno sobre a infância, bem como de literatura infantil, à medida em que esta surge a partir de um novo olhar que se apreende a respeito da criança e da infância. Abordamos ainda a construção dos valores, imagens e ideal de Nação que permearam a construção desse conceito no Brasil, bem como uma contextualização histórico-político-social do período em que Monteiro Lobato escreve, posto que buscávamos compreender também o momento histórico em que estes textos foram escritos e que poderiam ter, de alguma forma, influenciado as "lentes" de Monteiro Lobato.

O estudo foi desenvolvido mediante análise/leitura de alguns dos textos infantis de Monteiro Lobato, considerados pertinentes aos objetivos propostos e, a partir dessa análise, foi possível identificar – enquanto uma leitura – quais seriam as concepções de Monteiro Lobato a respeito da infância, criança, Brasil/Nação, sua idealização acerca do país e sua intencionalidade político-pedagógica.

Para encontrar as "marcas" deixadas por essas leituras, entrevistamos leitoras de Monteiro Lobato da primeira geração, a fim de apreender quais foram as influências e aspectos marcantes que permaneceram com elas ao longo dos anos a partir dessas leituras, ainda que se apresentem num nível de representação.

Para essa comunicação, abordaremos mais especificamente as concepções que se apresentam nos textos infantis de Monteiro Lobato acerca da criança e infância, embora abordemos paralelamente outras concepções postos que estas são interligadas e por vezes interdependentes.

 

A criança sob as lentes de Monteiro Lobato: um olhar para infância

Ao escrever histórias para crianças e, evidenciando-as como protagonistas de seu cenário narrativo, Monteiro Lobato apresenta-nos uma certa concepção – no âmbito do que Lucien Goldman (1972) chamaria de consciência possível – de criança e infância; concepção esta que, aliás, perpassa toda a sua obra, de modo a podermos perceber a evolução do sentimento de que a criança é a esperança do futuro da nação.

A infância no Sítio é muito feliz e sem grandes preocupações. As crianças são livres para viver as aventuras, para dialogar com os adultos, para darem opiniões. Nessa perspectiva, percebemos a criança – na lógica do Sítio do Picapau Amarelo – como um ser forte, muito diferente da idéia que usualmente se tem da fragilidade infantil. Os netos de Dona Benta - cada qual à sua maneira e proporção, pois há a distinção de gênero - possuem coragem e habilidades que lhes permitem viver intensamente as aventuras; ou seja, ser criança não significa ser inferior. Ao contrário, os textos de Lobato buscam sempre evidenciar as habilidades intrínsecas das crianças.

Por várias vezes os caçadores das terras vizinhas haviam organizado batidas a fim de dar cabo dela, sem nenhum resultado. A onça escapava sempre. Como, então, fora vítima dos netos de Dona Benta, simples crianças? Era espantoso, não havia dúvida. ... (LOBATO, Caçadas de Pedrinho, 1973, p. 16).

Para nós não há impossíveis – afirmou Pedrinho com orgulho. (LOBATO, Viagem ao Céu, 1995, p.34).

Além disso, são os personagens infantis - com a ajuda de Emília e Visconde que - resolvem os problemas:

Pedrinho refletiu por alguns instantes. Depois recomendou [a Emília]: _ Não diga nada a vovó, nem a tia Nastácia, pois são capazes de morrer de medo. Vou estudar o caso e organizar a defesa. Vá depressa ver Narizinho e Visconde. Diga-lhes que me esperem no pomar, debaixo da jabuticabeira grande. Aqui na varanda não podemos tratar disso. Vovó descobriria tudo. (LOBATO, Caçadas de Pedrinho, 1973, p. 19).

Destaca-se um elemento importante: a confiança que os personagens infantis apresentam para resolverem os conflitos, tranqüilizando os personagens adultos, que por sua vez, passam a confiar nas crianças para resolverem seus problemas.

_ "Não se aflija vovó – disse a menina. – Havemos de dar um jeito. A senhora bem sabe que sabemos dar jeito a tudo." (LOBATO, Memórias de Emília, 1994, p. 17).

Outro aspecto relevante, diz respeito ao poder e a liberdade que as crianças tem para executarem suas aventuras, pois vão a caçadas na mata, viagens a mundos distantes, vivendo muitos perigos e - embora Dona Benta demonstre preocupações - sempre são valorizadas as façanhas e o aprendizado com as aventuras.

_ Ora graças! – exclamou. _ Bom susto vocês me pregaram... Não quero mais isso, não. Quando forem para novas aventuras, não deixem de me avisar. (LOBATO, Memórias de Emília, p. 62).

A partir dessa idéia, podemos identificar algumas das concepções de Monteiro Lobato sobre a infância e as crianças. Em seus textos, Lobato amplia o universo de atuação das crianças, mostrando que elas precisam ser valorizadas em cada fase da vida e, embora ele próprio busque educar a juventude à guisa de preparar o futuro da nação, não retira dela a sua especificidade. Durante os conflitos das aventuras no universo da fantasia, a criança vai aprendendo a lidar com os problemas da realidade adulta. Assim, o autor atribui aos personagens infantis do Sítio uma liberdade que geralmente não é concedida à criança, além de uma valorização que se sobrepõe, inclusive às tradicionais "broncas" merecidas pelas travessuras. Desse modo, é vivendo o presente e suas vicissitudes, que Lobato acredita na possibilidade de fornecer à criança subsídios para se tornarem adultos conscientes.

Pelo exposto, Monteiro Lobato fornece todos os recursos necessários para que a criança venha a ser valorizada, utilizando para isso elementos mágicos, atribuindo-lhes um poder para transformar a realidade. Assim, são de Pedrinho e Narizinho a idéia de procurar petróleo no Sítio de Dona Benta, mas ao se depararem com a falta de recursos financeiros, que se torna um problema real, este é resolvido por meio de um elemento mágico oferecido às crianças para que a aventura tenha continuidade.

Pedrinho começou a pensar – e estaria até agora pensando se Emília não resolvesse o problema com a maior facilidade.
_ Ora a grande coisa! – disse ela. _ Nada mais simples. Aplica-se o "faz-de-conta e logo aparece tudo quanto precisamos – sondas, verrumas de perfurar, tubos de encanamentos, tatus perfuradores –e até petróleo! Você bem sabe que não há o que resista ao faz-de-conta. (LOBATO, O poço do Visconde, s/d, p.714).

Quando ocorre a necessidade de intervenções do maravilhoso, são as crianças que possuem esses objetos, pois Pedrinho recebe o pó de pirlimpimpim de Peninha e o guarda para outras aventuras como Viagem ao Céu, por exemplo; Narizinho tem a boneca Emília com o seu faz-de-conta, que consegue resolver situações difíceis, além disso, a própria menina também possui o faz-de-conta.

A infância é concebida como o período das grandes descobertas, tanto no que se refere a conhecimentos teóricos como a experiência, pois as grandes aventuras se iniciam a partir de um conhecimento oferecido às crianças, ora pelas explicações de Dona Benta, ora pelas aulas do Visconde, de modo que, por meio do contato com os saberes científicos e culturais, é despertada a curiosidade na criança, buscando nas aventuras as respostas para seus questionamentos. As aventuras surgem sempre das discussões ocorridas no grupo e tomam a proporção exata de definição da criança e da infância: a brincadeira. Postman (1999) postula essa idéia de que a diferenciação entre adultos e criança está na brincadeira e na relação da criança com o brinquedo. Evidenciamos isso, amplamente, nos textos de Monteiro Lobato, na medida em que a relação da criança com a brincadeira marca essencialmente a obra, pois os netos de Dona Benta estão sempre em busca de "reinações": brincadeiras que se tornam aventuras reais, com perigos. Entretanto, nunca se perde o caráter lúdico das aventuras assegurado sempre pelo retorno feliz, deixando em aberto a possibilidade de novas aventuras. Nesse sentido, podemos comparar as aventuras às brincadeiras de crianças, pois a caçada da onça - da forma como foi descrita - é concebida pelos personagens infantis e mágicos do Sítio como uma grande brincadeira.

Outro aspecto que merece destaque diz respeito à relação estabelecida entre as crianças e os brinquedos. Emília e Visconde tornam-se mágicos e auxiliares, quando não assumem o papel de protagonistas das aventuras junto às crianças.

Postman (1999), ao abordar o tema do surgimento da idéia de infância, ressalta a relação da criança com o brinquedo como uma característica essencial para a diferenciação entre crianças e adultos. Assim, a brincadeira e o brinquedo constituem elementos fundamentais para se pensar a criança enquanto um ser diferente do adulto. Em seus textos, Lobato marca significativamente essa interação, salientando a importância da construção dos brinquedos pelas crianças; pois Pedrinho constrói o Visconde e Emília – embora tenha sido feita por Tia Nastácia com retalhos de pano - sempre é consertada por Tia Nastácia e Narizinho, que além dos consertos habituais, costuram lhe novas roupinhas e procuram melhorar-lhe a aparência.

Podemos evidenciar a relação direta da criança com o brinquedo por ela construído para dar sentido ao contexto da brincadeira (no caso, de casar Emília com Rabicó). Essa relação reflete ainda um pouco da infância rural: as crianças constróem seus brinquedos a partir da imaginação e criatividade. Lobato estava resgatando sua própria infância, que, de certa maneira, correspondia à infância da época em que tais livros foram escritos.

Além disso, Monteiro Lobato proporciona outro tipo de relação da criança com o brinquedo ao torná-lo mágico, pois possibilita que ele se torne sujeito e não apenas objeto para o desenvolvimento da brincadeira. Assim, Lobato vai além, ao dar vida aos brinquedos, tornando "real" o sonho da maioria das crianças. Os brinquedos vão assumir um papel essencial na obra infantil de Monteiro Lobato na medida em que, muitas vezes, serão os principais responsáveis pelas aventuras, ou ainda serão os "porta-vozes" das críticas de Monteiro Lobato e mesmo da própria criança, ao assumir posturas que as crianças gostariam de ter mas não o fazem por sua própria condição de criança.

_ Tia Nastácia tem razão, Emília – observou Dona Benta. O ato que você praticou é dos mais feios e só perdôo você porque é uma bobinha que não distingue o bem do mal. Fosse algum dos meus netos e eu o castigaria. (LOBATO, Reinações de Narizinho, s/d, p.107).

Nesse aspecto, é importante ressaltar as virtudes das personagens infantis, pois Narizinho e Pedrinho são crianças educadas e que respeitam os mais velhos; não costumam ser repreendidas e, muitas vezes, são, inclusive, eles que ocasionalmente chamam a atenção ou zangam-se com outros personagens (principalmente os mágicos), quando esses infligem regras de conduta e da boa educação.

_ "Adeus, Alice! Adeus Peter Pan! Adeus Almirante! Não se esqueça da minha caixa de latas de leite condensado, nem da vaca prometida a Dona Benta..."
Narizinho danou.
_ "Esta sirigaita! Numa hora assim a gente comporta-se. É o momento solene. Que idéia não irá fazendo o Almirante de você, gulosa?" (LOBATO, Memórias de Emília 1994, p. 46).

Assim, percebemos como os personagens infantis têm muito presente em seus atos e concepções de civilidade e de boas maneiras, sendo estes os maiores repreensores dos personagens que fogem a essas regras, especialmente Emília e o Marquês de Rabicó, por sua prosaica gula.

Como já se pôde anteriormente observar, percebemos nos textos uma concepção de infância amplamente centrada na idéia da criança enquanto um ser em formação, de modo que a infância seria o período destinado às descobertas necessárias para essas aquisições e descobertas, a partir das quais se constituiria um sujeito crítico e reflexivo. Além disso, a criança, nessa concepção, não é apresentada como um adulto em miniatura, tampouco como sujeito passivo no seu processo de desenvolvimento. Ao contrário: as crianças são ativas, curiosas, são responsáveis por suas descobertas, fazem experiências dos conhecimentos adquiridos. E isso tudo é possível porque possuem um elemento essencial: a liberdade, traduzida pelo seu recurso mágico à imaginação. Embora as personagens infantis Narizinho e Pedrinho respeitem algumas regras, ambos não são presos a condutas moralistas que os poderiam impedir de viver as aventuras.

Outro elemento interessante diz respeito à relação das personagens infantis com o brincar e o brinquedo, pois são aspectos que basicamente caracterizam a infância e são amplamente valorizados, para o seu desenvolvimento, bem como tudo que se liga à imaginação, à criatividade e à importância da brincadeira para a formação de concepções e valores... Os netos de Dona Benta estão sempre se aventurando em busca de conhecimentos, regressando sempre com aprendizagens e experiências que os fazem crescer como crianças e como pessoas.

Assim, podemos concluir evidenciando dois aspectos importantes: a crítica de Monteiro Lobato a um dado modo civilizatório de ser adulto e o ideal que ele imaginava necessário, apresentando às crianças uma oportunidade para desenvolverem-se, pois cria um ideal de adulto que corresponde a um ideal de infância que o escritor supunha poder formar por meio de seus livros. Desse modo, o Sítio do Picapau Amarelo evidencia-se como cenário ideal para a construção dessa concepção de infância que, de uma certa maneira, reconstrói um ideal de adulto, de relações sociais e até mesmo de sociedade, criando o que poderíamos denominar de "sítio-mundo-Brasil".

 

Bibliografia

BOTO, C. O desencantamento da criança: entre a Renascença e o século das luzes. IN: FREITAS, M.C; KUHLMANN JR.(org). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002.

CAVALHEIRO, E. Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Companhia Editora Nacional, tomo 1, 1956.

________________ Monteiro Lobato: vida e obra. São Paulo: Companhia Editora Nacional, tomo 2, 1956.

GOLDMAN, L. Ciências Humanas e Filosofia. São Paulo: Difusão européia do livro, 1972.

LOBATO, J.B.M. Reinações de Narizinho. IN: ________ Sítio do Picapau Amarelo/obras Completas. São Paulo: Brasiliense.Vol.1, s/d.

______________ O poço do Visconde. IN: ________ Sítio do Picapau Amarelo/obras Completas. São Paulo: Brasiliense.Vol.2, s/d.

____________ Memórias de Emília. São Paulo: Brasiliense,42ªed., 1994.

____________ Histórias do Mundo para Crianças. São Paulo: Brasiliense , 38ª ed., 1994.

____________ Viagem ao Céu. São Paulo: Brasiliense,45ª ed.,1995.

POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

RUSSEF, I. A infância no Brasil pelos olhos de Monteiro Lobato. IN: FREITAS, M.C (org). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, p.247-p.266, 1997.