5As instituições de acolhimento, as crianças "abandonadas" e a psicanálise: uma "ciranda de pedra?"Trabalho docente: dispersão e moral do discurso pedagógico author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Projeto Companheiros de Linguagem: trilhas na direção de uma educação psicanaliticamente orientada

 

 

Ana Cláudia Navarro Lins

Psicanalista e Fonoaudióloga

 

 

A proposta do projeto "Companheiros de Linguagem", aplicado desde 1992, é realizada em instituições sem transferência definida com a Psicanálise. Escolas - públicas e privadas - de Educação Infantil e Ensino Fundamental do ensino regular no Paraná e em Santa Catarina. Faremos aqui um breve histórico.

O projeto teve seu início com alunos da rede pública. Em decorrência de graves problemas encontrados na aplicação da proposta de educação continuada que implica na não reprovação até a quarta série do ensino fundamental, iniciamos um trabalho piloto em algumas escolas. A resistência e o despreparo de algumas instituições de ensino e dos educadores na aplicação dessa proposta, geraram uma grande demanda de atendimento de alunos que não atingiam os níveis esperados para cada etapa. Os educadores passaram a organizar, veladamente, sub-grupos em suas turmas.

Os alunos com necessidades especiais eram encaminhados para a classe especial. Porém os sub-grupos, mesmo permanecendo na sala de aula, estavam à margem do processo escolar. No discurso dos educadores essa posição de exclusão aparecia como: "desses eu já desisti, não consigo ", "sou professora de terceira série, esses não podem acompanhar", "não é minha obrigação atendê-los", "se dedico tempo para eles, falta tempo para os meus", "como trabalhar com esses que não sabem ler ou escrever?"

Com a proposta de acolher esses alunos, escutá-los, reconhecê-los na posição de alunos, surge o primeiro momento de um trabalho que hoje tem o nome de Companheiros de Linguagem. Atendemos esses grupos como tradutores de suas possibilidades e limites garantindo sua expressão através de diferentes linguagens. Destaco que esse momento inaugural aconteceu na rede pública de educação regular com alunos sem nenhuma necessidade especial, a não ser a de terem que conquistar um lugar de aluno. A partir dos efeitos gerados, começamos a refletir sobre a ampliação do público alvo e partimos para outras realidades.

Notamos que na rede privada a demanda de atendimento se repetia, mas tratava-se de um outro público: crianças com necessidades educativas especiais. Crianças com problemas decorrentes de um sintoma clínico em uma área do desenvolvimento. Ou causadas por um significativo atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, deficiência física, sensorial ou mental, ou por distúrbios globais do desenvolvimento. Encontramos semelhanças no discurso da equipe e na posição estrangeira das crianças em questão. Mas com o agravante do aumento na dificuldade da equipe das escolas em ler nas produções desses alunos algo de familiar. Faziam "coisas sem sentido", impossíveis de nomear.

Algumas escolas apesar de manter em classe regular o aluno com problemas no desenvolvimento, coloca como condição que a família atenda os encaminhamentos clínicos para diversas áreas instrumentais, objetivando a adaptação do aluno ao sistema escolar. A clínica - quando corretamente indicada - participa do processo de crescimento da criança. Mas é um longo processo que não traz receitas para lidar com as questões que aparecem na escola.

A presença em sala de aula, está longe de ter como conseqüência a inclusão dessas crianças no grupo ou nas atividades educacionais da escola, limitando-se à tolerância das diferenças somente durante as aulas.

O trabalho de inclusão de crianças com necessidades especiais na escola regular na rede privada começa. A montagem institucional é outra, mudam os discursos da equipe, dos pais e das crianças. Depois de um tempo vivendo essas diferenças, precisamos hoje compartilhar alguns efeitos e questões.

Nos centros onde é desenvolvido esse trabalho, a Psicanálise não é vista como um discurso privilegiado para trabalhar as questões da educação. Disso decorreram algumas particularidades. Foi somente a partir da demanda de inclusão das crianças com necessidades especiais que aconteceu a abertura de um espaço para o projeto Companheiros de Linguagem e para as contribuições da Psicanálise na escola regular.

Da leitura dos textos que se dedicam a trabalhar a Psicanálise e a Educação, recorto nesse momento, um trecho do livro de Kupfer: "Se é possível pensar em uma educação especial psicanaliticamente orientada, pode-se imaginar que haverá também espaço para uma educação psicanaliticamente orientada". (2001, pg. 116). A partir dessa afirmação - que hoje ganha eco de pergunta– apresentaremos nosso percurso na educação regular, em realidades muito diferentes das descritas no livro. Tentaremos fazer uma reflexão a partir dos três eixos ali propostos: inclusão escolar, montagem institucional e o escolar propriamente dito.

Qual imagem pode traduzir os efeitos de um trabalho de inclusão escolar na educação regular? Uma criança com necessidades especiais brincando no pátio da escola? Um menino que não fala, cantando no coral infantil? Alunos conquistando sua vez de falar na roda da novidade? Uma criança cadeirante dançando faceira na festa junina? A púbere sem controle de esfíncteres que pela primeira vez passeia de trem com a turma? Um aluno que ao escrever descobre a referência necessária para falar pela primeira vez?

São imagens que presenciamos a partir de intervenções junto aos educadores e à equipe pedagógica. Porém, a criança com Síndrome de Down que corre no pátio pode ser o Pedro que está no lugar do monstro da turma e é perseguido porque tem que ser eliminada nas armadilhas que prepararam para ele ou o Breno que corre porque está inaugurando uma nova posição de parceria com os amigos que o tratavam como um bebê.

O adolescente autista da zona rural que num balanceio fecha-se no canto da classe de alunos com problemas de aprendizagem, parece excluído. Contudo é o João que acaba de ser resgatado de uma rotina de convivência com o gado. Passava seus dias no pasto onde recebia suas refeições, sendo recolhido à casa ao entardecer. Nessa escola especial, a primeira do município inaugurada em 1999, esse jovem terá as primeiras notícias de um outro mundo, da linguagem e da cultura.

Ao assistir ao vídeo da menina surda que ensinou para sua professora e amigos de turma, a língua de sinais, para poderem cantar juntos a música que fala de amizade, algum espectador mais animado pode concluir que é simples a estratégia para integrar os surdos na classe regular. Desconhece porém, um trabalho que implicou oito meses de exercício do desejo do professor de conhecer a Carla que vinha para a sala de aula abaixava a cabeça e não olhava porque estava brava. Por que? Porque não aceitava o pedido de fazer leitura labial para entender o que o professor dizia e desafiava com a pergunta: "Porque eu tenho que aprender a sua língua e você não quer aprender a minha?"

Imagens não traduzem o sentido desses acontecimentos. Ficam marcas nos que participam desse processo, mas com efeitos e significações totalmente distintas e únicas para cada um dos envolvidos. Cada trabalho deve articular atos, imagens, palavras e letras na tentativa de montar um quadro passível de interpretações e reflexões menos imaginárias.

Dentro do eixo da montagem Institucional, crianças com necessidades especiais se beneficiam do encontro com a cultura , da ampla circulação social prevista na rotina da escola regular. Participam dos jogos, passeios, festas e ateliês. Em momentos específicos necessitam de apoio ou acolhimento diferenciado. Mas na maioria das vezes misturam-se aos outros e nesses momentos suas necessidades são tão especiais quanto as de qualquer criança: brincar, desenhar, ouvir e contar histórias, trabalhar seus medos e sonhar.

Uma diretora diz: "Que a escola faça diferença para essas crianças". E esse é o sentido primeiro que faz o trabalho andar. Para quem e de que maneira essa diferença traz efeitos? Para essa diretora a lei de inclusão não é o motor que inicia esse movimento. Um lugar na escola, faz diferença. Nos momentos mais críticos dos processos de inclusão, é esse referencial, que vem da direção da escola, que sustenta a continuidade do trabalho para a equipe de educadores dessa escola.

Não se trata do cumprimento de uma lei ou do acolhimento piedoso dessas crianças. O trabalho de escuta da equipe, dos pais e das crianças é um processo delicado e interminável. É a construção de um caminho e de uma estrutura institucional que abre espaço para a singularidade histórica e subjetiva de cada aluno, num movimento de respeito ao desejo de fazer parte daquela escola e de descoberta de companhias possíveis na busca de significantes que o representem como criança.

Podemos escutar então, Lucas, o menino com DGD que faz uma poesia para a escola: "A escola é como uma casa grande e aconchegante" e um colega complementa " aonde sempre cabe mais gente". Testemunhamos o movimento de Alice, uma menina que se constrange por ter a idade bem mais avançada que seus colegas de turma, que na festa de aniversário da escola, se dá conta de que ela e a escola tem a mesma idade. A educadora diz que estão crescendo juntas. A menina fica radiante e sai contando para os colegas. Sua idade encontra uma nova posição no discurso, não mais de diferença pela suas dificuldades, mas de parceria no crescimento.

Porém, no discurso dos pais muitas vezes, a demanda é a de cura, que talvez seja decorrente da ilusão de apagamento das diferenças que o desejo de pertença à escola regular reforça nos pais. Mas ao mesmo tempo reclamam pedindo que à montagem institucional seja especial para seu filho. Pedem para modificar as regras, as lições de casa, o atendimento aos clínicos, querem mais tempo para serem escutados, denunciando uma posição invasiva ou de impossibilidade de ver o filho que esta aí.

O trabalho de escuta dos discursos dos sujeitos envolvidos nesse processo provoca mudanças interessantes. A demanda do trabalho se amplia e engloba situações que envolvem qualquer criança. Impasses nas reuniões da equipe, na sala de aula, no pátio, nas festas.

Os pais reclamam das outras crianças também reclamam. Querem a efetivação do discurso social atual na proposta da escola: seus filhos perfeitos, tem que saber de tudo, não pode faltar nenhum saber, nada de traumas ou histórias infantis que falem de morte, monstros. E questionam: Por que meu filho não pode trazer para a escola seus objetos mágicos? Quero que ele seja feliz aqui e agora. A escola tenta entender a posição de mestria dos alunos, seu desrespeito com alguns professores, a intolerância às diferenças. As conseqüências são de ampliação do atendimento à crianças que não tem necessidades especiais e intervenções no eixo referente à montagem institucional. Aos poucos, estamos construindo este caminho.

São muitas as dificuldades de manter o equilíbrio entre o institucional e o individual nessa realidade. Porém é possível apontar para a equipe, a diferença na qualidade das intervenções do Educador que deseja viver essa experiência. As mudanças na escuta e na possibilidade de antecipação significante alcançam todos os alunos que passam a ser considerados também em sua subjetividade.

A criança com necessidades educativas especiais, ou não, passa por diferentes impasses que podem ser desestruturantes para todos. Alguns alunos, estacionam no seu processo de desenvolvimento da linguagem oral e/ou escrita. Não conseguem ou não têm mais interesse em aprender. E mesmo estando dentro da sala de aula, sentem-se (ou efetivamente são) marginalizados. Alunos que escapam da possibilidade de ser significados no discurso da equipe por apresentarem comportamentos estranhos ao ideal do educador que não consegue mais dar sentido as sua produções.

A informação teórica não é suficiente. Também não basta conhecer a história do aluno e de seu problema. É necessária acompanhar cada aluno. Pois é grande a diversidade de reações, posturas e atitudes que aparecem em sala de aula, tanto por parte dos professores e seus auxiliares, como dos demais alunos e seus familiares. Os participantes do processo vivem as diferenças e os efeitos do atravessamento das questões subjetivas.

Nossa intervenção se dá nos momentos em que uma criança pode ser atendida somente no nível da necessidade pelo professor. Ou seja não há possibilidade de circulação de palavra. As produções da criança não são passíveis de interpretação. Um professor diz de seu aluno naquele momento: Falo com ele e me sinto falando com uma pedra. Qual a possibilidade de fazer circular o discurso desejante nessa relação?

Na clínica, os pais da criança com problemas no desenvolvimento, na impossibilidade de antecipar um sujeito nesse que não reconhecem como filho, recorrem à ciência, à técnica para pedir a um outro que sabe da patologia que os ensine a exercer adequadamente suas funções. Num contra-ponto, o trabalho possível para um psicanalista, pretende dar espaço para o sujeito para além da ciência, da patologia e da ortopedia . Opera uma tradução entre pais e filho enquanto se estranham, antecipa o sujeito e aposta na possibilidade desses pais voltarem às suas funções parentais, dando-lhes apoio durante esses momentos.

Faço hoje uma analogia desse trabalho com a intervenção feita na escola em relação à criança e seu professor. Apostar que o professor seja companheiro de linguagem dessas crianças, aquele que representa o código, que compreende, mas também aquele que não sabe sobre o sujeito em questão, o que faz com que a palavra circule . Porém, o professor nem sempre consegue acolher alunos com problemas no desenvolvimento. Pode ser porque, erroneamente, sente-se responsável pelo problema e às vezes pela cura.

Observações em sala de aula, reunião com os educadores regentes e auxiliares e pais e, supervisão de médios e pequenos grupos de alunos num trabalho de letração, são as formas de intervenção encontradas para o trabalho de tradução entre professor e candidato à aluno . As intervenções buscam linguagens que levam a novas possibilidades em sala de aula e na comunidade escolar.

Todas as variantes citadas nos três eixos, determinam a disponibilidade de intervenção e a intenção e extensão do trabalho de uma instituição. Mais ainda, apontam para uma aposta na educação psicanaliticamente orientada que possibilite, se nem sempre uma instituição de educação psicanaliticamente orientada, algumas vezes, a descoberta de alguns educadores que em seus atos educativos trilhem caminhos que levem seus alunos a novos posicionamentos subjetivos.

 

Referências Bibliográficas

KUPFER, Maria C.M. (2001). Educação para o futuro: psicanálise e educação- São Paulo - S.P. Escuta.