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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Trabalho docente: dispersão e moral do discurso pedagógico1

 

 

André Marcio Picanço Favacho; Marcelo Ricardo Pereira; Margareth Diniz; Renata Nunes VasconcelosI

IFAE/UMG

 

 

Partimos do pressuposto que o trabalho docente não é apenas um corpo de conceitos e ossatura de que se pode falar, nem um jogo de escolhas prescritas, num campo de enunciações possíveis. Nossa prerrogativa era a de que havia aí uma epistemologia da prática, à revelia da científica. Isso nos assolava em um campo de sombras e impossibilidades, pois convocava-nos a percorrer o abismo entre a objetividade e a subjetividade. Não se tratava de bipolaridade: objeto em detrimento do sujeito, tampouco o contrário. Mas tratava-se de um espaço não-fixo, amplo e enigmático a ser palmilhado no qual o sujeito se multiplica e o objeto é constantemente transformado.

Ainda que não tivéssemos como objetivo central interrogar o currículo do curso de pedagogia da FAE-UEMG, o qual se pretende afirmar como um currículo inovador, arrojado, conseqüente com as renovações pedagógicas da década de 1990, instigou-nos constatar que o efeito de tal formação não alterou significativamente alguns saberes que circulam acerca do campo educacional.

Constatamos que alguns saberes permaneceram inalterados nos discursos de nossos/as entrevistados/as: a dispersão conceitual sobre o que é a pedagogia como campo de conhecimento, a dificuldade em criar teorias singulares para os acontecimentos cotidianos que exijam uma forte articulação prática/teoria, a recorrência aos saberes da psicologia, com a finalidade última de dominar e controlar o outro, seus comportamentos e seus gestos, adequando-os a um modelo social idealizado para cada faixa etária, bem como a produção discursiva que tem na maternagem seu ápice. Muitos/as mantêm a idéia de uma pedagogia idealizada, capaz de transformar sujeitos com base nas boas técnicas e racionalizações didáticas, bem como nas boas intenções de cunho moral de um educador ou educadora. Para além destas regularidades discursivas, chama-nos a atenção nos discursos a ausência nos pedagogos e nas pedagogas de uma interrogação sobre os efeitos de sua formação em si mesmos e para os acontecimentos da escola.

Essas considerações, talvez nos autorizem a justificar o porquê de localizarmos os pedagogos e pedagogas pesquisados, tanto num discurso denominadas realismo conservador, tanto quanto no idealismo ingênuo. O realismo conservador seria calcado na representação de competências mínimas que permitem um cotidiano sem muitas surpresas, baseado num saber voltado para uma escola padrão, um professor padrão, um aluno padrão e um razoável cumprimento do programa aprendido na faculdade, de acordo com as normas do sistema educacional. A ênfase seria dada ao conhecimento e ao seu ensino. Procuram lutar até mesmo contra o insucesso escolar, mas desde que não se mude o sistema, nem as suas regras: na minha posição, às vezes, eu estou atuando como orientador e disciplinário. Às vezes, eu estou fazendo um planejamento e tenho de parar de fazer o que estou fazendo para atender aluno, para atender pais de alunos, estar conversando, orientando (mulher, 24 a.) ou minha aula foi técnica, correta... Na verdade eu gosto de planejar aula por aula (homem, 45 a.).

O realismo conservador nos remete a pensar sobre o corpo teórico que constitui a pedagogia e que corrobora com um discurso que prima pelo entendimento de um real concebido de forma conservadora. Se pensarmos que a pedagogia é um discurso que se pretende científico sobre a educação — seu objeto — temos que considerar, nos termos que Foucault trata, que esse saber que funciona como ciência tem como um de seus efeitos a tecnologia do poder disciplinar. Essa tecnologia produz corpos dóceis, manipulados, treinados para obedecer e responder. A disciplina, dispositivo que controla o corpo, fabrica por meio do poder que exerce sobre esses corpos uma individualidade multidimensional: enquadrada, programada, adestrada e utilmente combinada, através da construção de quadros de tempos, prescrições de programas de ensino, imposição de exercícios e da instituição de regulamentos generalizados. O realismo conservador se funda na existência de corpos dóceis.

Mas seria apenas essa a explicação para o fenômeno? Desconfiamos dessa afirmativa, pois o sujeito não está numa condição definida de sujeitado. Nas relações de poder que se fazem no cotidiano, existe uma dialética de posicionamentos dos sujeitos em relação às contingências. Se estivermos tratando de posições de sujeito, então não podemos afirmar a existência de uma posição que se firma indefinidamente no tempo histórico. O que existe é uma mutabilidade de posições de sujeito que em certas contingências se sujeitam e em outras estão como atores.

Em contrapartida, o idealismo ingênuo, sob uma face reformista, é tomado quando se acredita que um/a profissional adaptado à sua função é, acima de tudo, um/a pedagogo/a eficaz, militante e sonhador/a: sou uma pedagoga responsável pela transformação da educação (mulher, 24 a.) ou uma coisa que pesa muito é a questão da gestão democrática de tentar estar articulando conversas, ver o que nós podemos estar fazendo com a comunidade, com os professores. Tentar ouvir todo mundo, ver o lado de todo mundo, ver o que pode ser feito. Ir até a direção e tentar resolver as coisas mais urgentes (...) aí eu entro em contato com pessoas que podem estar fazendo um trabalho voluntário (...) (mulher, 25 a.). A ênfase seria dada a uma totalidade utópica, sabemos, nunca alcançada, sempre idealizada.

Por que o ideal de totalidade e a visão da prática, segundo essa premissa, são ingênuos? Ora, porque o pedagogo ou a pedagoga passa a operar para um sistema que não existe e a funcionar segundo uma lógica que não é a do sistema vigente, podendo provocar mais dramas individuais do que favorecer uma transformação global da escola: só que nem sempre você consegue articular isso. Lá as coisas são bem divididas: comunidade é uma coisa, professor é outra e a direção é outra (idem).

Mas como o real é o que não cessa de não escrever e de produzir mal-estares não podemos fugir dele, mesmo criando mecanismos para fazê-lo (Millot, 1987). Na idealização há uma ilusão de harmonia que parece possível entre os desejos dos homens/mulheres e o projeto de modernidade que se estabelece após o século XVIII. Mas, não existe harmonia entre os sujeitos e o seu meio, pois os desejos não podem ser satisfeitos, em detrimento de romper com esse projeto de modernidade pensado, que controla, mede, vigia e pune homens e mulheres. Esse projeto exige sacrifícios pesados de nossa parte, no intuito de regular as relações humanas entre os próprios sujeitos e as relações com a cultura.

A civilização tem se apoiado na renegação da realidade e na ilusão consoladora, de um futuro melhor, de uma vida harmônica entre nós, homens/mulheres, e a cultura, tendo a educação um papel a cumprir: situar-se do lado do bem, já que é para o bem do aluno e da aluna que se supõe o trabalho do educador e da educadora.

No insuportável de viver a desarmonia produtora de mal-estar, a educação desempenha a função ilusória de produção da idealização para uma possível reconciliação entre os homens e mulheres e a pressão que a civilização exerce. Nesse sentido, religião e educação se igualam quando para Freud (apud Millot, 1987) a primeira nos consola, oferecendo uma compensação aos tantos sacrifícios impostos por esse projeto de modernidade. A função da educação é então, adaptativa, que pretende mais uma certa cooptação entre o sujeito e o mundo. A ilusão repousa-se ai: na impossibilidade de efetivar o projeto de modernidade harmônico, benéfico e saudável.

Assim, se por um lado, não alteram as estruturas de luta social porque não alteram as estruturas do pensamento pedagógico, por outro, porque visam uma totalidade consensual romântica no interior da organização escolar.

Se pudermos considerar que esta oscilação entre o realismo conservador e o idealismo ingênuo é um saber da experiência destes profissionais, tal saber, talvez se configurasse em uma espécie de dispersão conceitual fabricada também pelas práticas discursivas da pedagogia. Ou seja, a instituição pedagógica divulga nas suas entranhas artefatos discursivos que sustentam esse resultado na formação dos pedagogos, pois a referida oscilação representa, no caso dos pedagogos pesquisados, uma certa miopia em analisar os acontecimentos da escola e, sobretudo relega o papel transformador da educação a uma mera fraseologia.

Desse modo, observamos que tais artefatos apresentam-se de duas formas indissociáveis. Pelas experiências propriamente ditas do cotidiano escolar que chamaremos, aproveitando a própria expressão recorrente dos entrevistados, de "experiências em si"; e pelos atos ou tratados de verdade sobre essas experiências. As experiências em si que são em geral os problemas do cotidiano vividos pelos pedagogos, que dizem respeito entre outras coisas, a relação professor-aluno, escola-comunidade, avaliação, dificuldade de aprendizagem, informam aos pedagogos/as as verdades que elas contêm. Estas verdades, ou os tratados desta verdade, são retiradas pelos pedagogos segundo conteúdos que lhes são inerentes. Por exemplo, um determinado comportamento de um aluno que requer a presença dos pais, o pedagogo conclui que a solução para o caso será exigir da família um maior acompanhamento do filho nas atividades escolares. Mas, onde na formação do pedagogo ele aprendeu que este seria o procedimento correto? O pedagogo ou a pedagoga diz que não aprendeu isso nos conteúdos da Faculdade; não estudaram isso nos livros, mas crêem que por tudo que estudaram este seja um procedimento viável. Diríamos que a "experiência em si" dos problemas escolares são validados na "experiência de si" dos pedagogos. Isso nos indica que a formação dos pedagogos não passa tão-somente pelos conteúdos formais do curso, pois nos parece que ela passa também e, ao mesmo tempo, por um conteúdo discursivo que acontece numa "formação paralela" nem sempre mensurável e analisada ou transformada como um conteúdo da própria pedagogia.

Os pedagogos e as pedagogas entrevistadas, anunciam que a "experiência de si" é uma espécie de moral que, frente às experiências do cotidiano escolar cria as verdades necessárias para a formação e para a sua atuação. Tais sujeitos demonstram acreditar que seu saber-fazer, eminentemente instrumental, é a pedagogia mesma em exercício. Esses artefatos discursivos, enquanto "experiência de si" e " experiência em si" , fabricam os sujeitos da dispersão conceitual.

São esses artefatos discursivos que a nosso ver provocam a cisão, que se mostra na pregnância discursiva reiterada na dicotomia teoria e prática. Ora, se é a experiência de si e em si que informa os saberes da pedagogia nenhuma teoria bastará. Sabemos existir uma distância entre o que é pensado para a formação e a assimilação por parte dos estudantes, pois o discurso pedagógico difundido nos cursos se defronta com os valores, as idéias, as vivências, os saberes "enraizados" pelos sujeitos no cotidiano. Que formação poderia então, reconhecer tal situação e enfrentá-la? Quais idéias são consideradas mais importantes para professores e professoras? Estas perguntas nos fizeram pensar que outras questões estão em jogo na relação teoria e prática não se reduzindo a um problema de dicotomia entre ambas.

Para Charlot (2002), o que existe é um problema entre dois tipos de teoria: uma teoria "enraizada" nas práticas e uma teoria que se desenvolve na pesquisa e das próprias idéias entre aqueles que fazem as pesquisas. O que existiria então, seria o desmerecimento da prática elaborada a partir do fazer cotidiano como também produtora de teoria. Assim, quando os professores estão falando de suas práticas, estão falando de teorias elaboradas.

O problema estaria nas categorias que os professores usam para falar de suas práticas, pois é diferente daquelas produzidas em espaços reconhecidos e valorizados socialmente. Eles/as não falam da mesma forma que a teoria elaborada por pesquisadores/as, pois falam de algo que foi criado pelas suas práticas, para interpretá-la, desenvolvendo uma teoria implícita. Os docentes não estão negando a teoria, mas estão negando aquela teoria que só dialoga com outra de igual valor. No entanto, quando a teoria fala de práticas, de situações que fazem sentido fora da teoria, os/as professores/as se interessam por ela.

O problema não está em fazer dialogar uma teoria desenvolvida pela ciência com uma prática advinda do fazer dos docentes, mas sim de organizar um diálogo entre dois tipos de teorias. Dessa forma, o autor reconhece o estatuto de saber que tem a produção advinda da prática que em outras perspectivas não é valorizada.

Se até então elucidamos situações nas quais o discurso do sujeito aponta a cisão teoria e prática encontramos uma situação específica na qual aparece a articulação entre as duas. Essa situação é percebida quando os/as entrevistados/as ao fazerem alusão ao seu trabalho, enunciam alguma possível articulação entre teoria e prática, destacando elementos teóricos advindos do campo da psicologia.

Entretanto, para Foucault (1972, p. 71) a teoria nunca se expressará, nunca traduzirá, nunca será aplicada a uma prática, pois ela é prática discursiva, é uma forma do sujeito apoderar-se de algo. Prática sempre local e regional e nunca totalizadora. Uma "teoria" é sistema regional de luta que as massas usam para a destruição progressiva e da tomada de poder ao lado de todos aqueles que lutam por ela, e não na retaguarda, para esclarecê-los. Este autor afirma que há muito tempo que a consciência como saber está adquirida pelas massas e que a consciência como sujeito está também adquirida.

Alguns pedagogos e pedagogas entrevistadas parecem nos dizer que não conseguiam resolver os impasses do cotidiano apenas pela bipolarização das relações entre teoria e prática que impregna as práticas de formação. O que eles denunciam é a complexidade das relações de poder estabelecidas que não podem ser analisadas através de soluções prontas e totalizadoras. Há uma provisoriedade e uma multiplicidade dita que precisa ser vista.

Acreditamos com base neste trabalho de pesquisa, que há uma pregnância do discurso humanístico nas falas dos sujeitos com os quais estivemos. Ao que parece, o "humano" é tomado aqui muito mais como um valor para o vínculo social do que como uma defesa de uma tradição filosófica. O saber parece mesmo privilegiar a experiência, longe de relacioná-la a epistéme ou aos campos de conhecimento das teorias humanistas pelas quais a pedagogia pretendeu-se fundamentar.

Isso quer dizer que os saberes constituídos por tais sujeitos apelam, não sem freqüência, à aspiração de um melhor convívio, de um cuidado com o outro, bem como um domínio sobre o outro. Ora, isso demonstra um imperativo ou uma exigência pragmática de "domar" o outro ou de possuir um saber verdadeiro sobre a singularidade subjetiva do agir de um/a aluno/a, de um/a professor/a ou de quem quer que seja que faça parte do seu quadro de relações profissionais, daí porque o curso de pedagogia foi muitas vezes denunciado pelos entrevistados e entrevistadas por não ter conseguido tal intento, qual seja, o de ofertar "o verdadeiro saber sobre o outro", embora pareça-nos que isso se deu em grandes doses.

Também se tornou notável como o discurso materno se embaraça com o discurso profissional da pedagogia. Tal discurso, através da necessidade de desvendar o outro numa utopia humanística e da busca das regras do cuidado, recorre à psicologia, que por sua vez se mostra ortopédica ou horoscopista. Sabemos que a própria psicologia não reconhece que suas análises funcionam em um circuito fechado e permanece regulada por práticas de controle institucional (familiares, escolares), das quais extrai suas evidências, e nas quais reinjetam seus resultados. (Lourau, apud Imbert, 2001, p. 39).

Recorrer aos fragmentos de saberes da psicologia parece desembocar e dar consistência ao que denominamos discurso da maternagem, aqui entendido como um discurso que visa o desenvolvimento de práticas de dominação, sob a égide do cuidado de um adulto sobre a criança: compete ao adulto, e aqui, ao pedagogo e a pedagoga, em sua maturidade, educar uma criança, cujas características são o vazio e o erro.

Ainda que a produção pedagógica venha a consumar-se e a educação da criança se realize, esta permanecerá para sempre marcada pelas modalidades de sua produção: tratar-se-á da educação de um sujeito-objeto (Imbert, 2001, p. 40). O discurso da pedagogia, pelo menos o referido nas entrevistas, pauta-se nessa intenção. Não se trata de tecermos julgamento se esse ou aquele discurso é mais ou menos válido para narrar as ações de pedagogos e pedagogas. Trata-se, antes, de entendermos a lógica mesma de composição da natureza de um curso de formação como esse.

Nossa aposta reside no fato de entendermos que num século "racional", técnico e iluminado; num século cujo saber-fazer foi teorizado ou cujo humano tornou-se "ciência", talvez o último reduto de empirismo consentido e jubilado pela humanidade, qual seja, o da maternagem, tenha perdido seu fôlego. Para tanto, esse discurso da maternagem passa a requerer seu carimbo científico e, a pedagogia talvez se tornasse a "instituição" eleita para tal carimbo.

Concluímos então, que talvez a maternagem seja a "epistemologia" da pedagogia, construída a partir da oscilação entre os fragmentos de um discurso científico e a constatação de um saber-fazer que prescinde da formação.

Entretanto, a formação que deveria fundar-se no ensino, na pesquisa e nos estágios, buscando um aprofundamento da relação mestre-discípulo e da relação educação-organização, isto é, um aprofundamento daquilo que compõe o corpus laboratorial da formação pedagógica, não se faz na sua complexidade, sobretudo nos assuntos de estágios, pois estes não são tão rigorosos quanto em outras formações. A experiência nos mostra que os estágios são burocratizados, burlados e pouco explorados tanto por aqueles que os administram —instituição e docentes—, quanto por aqueles que os realizam. Muitas vezes, tais estágios são vivenciados de maneira pouco diretiva ou sob roteiros ultrapassados, que resultam em relatos e apresentações exaustivamente repetitivas, com reduzido ou nenhum juízo reflexivo. Quando muito, são realizados sob excessivas alegorias metodológicas que mais uma vez adiam a exigência de se pensar epistemologias possíveis que os fundamentam e privilegiam um saber-fazer sem muita reflexão. Acreditamos que isso deva ocorrer de maneira diversa em outras formações: a dissecação de corpos na medicina; o atendimento ambulatorial na psicologia; as atividades asilares na assistência social; os acompanhamentos judiciários no direito, entre alguns exemplos, exigem um elevado nível de investimento, estudos e saberes para que tais atividades sejam levadas a efeito.

Observamos que os sujeitos entrevistados quase nunca disseram espontaneamente acerca dos estágios e das pesquisas que realizaram durante o curso. Quando foram induzidos, anunciaram algumas poucas palavras sobre os mesmos, às vezes de maneira queixosa: tem o último período: é muito carregado. Tem monografia, tem estágio. É muito pesado (...) a pesquisa é muito importante, nos ajuda muito (mas não especifica em quê) (mulher, 41 a.) ou os estágios não contribuíram para a monografia, mas foi uma imposição da instituição. Se fosse possível conciliar seria uma boa contribuição (mulher, 25 a.) ou, ainda, os estágios são formas de tentarmos avançar, mas no meu caso eu acho que não contribui muito. Eles são vazios. Eu acho que falta uma melhor elaboração dos estágios. Não há um aproveitamento em si. É como se você fizesse um projeto e arquivasse. Para a formação não ajuda quase nada, desgasta o aluno e vai desanimando. No final, a AIP era vazia, os alunos davam um jeitinho e escapavam (homem, 25 a.).

Como afirmamos, o discurso pedagógico aquiesce de uma dispersão, que dociliza corpos e saberes, pois torna seus referenciais um tanto indistinto: é um curso que a gente pode fazer sem muita pressão (mulher, 40 a.). Entre a adjetivação das epistemologias e a "cientifização" do saber materno, a pedagogia pensa encontrar a garantia de seu sucesso em uma prática que se pretende científica. Compreendemos, então, a insistência do pedagogo e da pedagoga em fazer apelo aos serviços do psicólogo ou de qualquer outro "cientista". Para além de qualquer informação ou formação, o/a pedagogo/a espera obter um saber sobre a criança; um saber que lhe permita operar e conduzir seu objeto, sem que nada de imprevisto lhe aconteça. Nada que possa mostrar a ele/a a menor brecha possível, em um saber que se pretende completo e definitivo.

Nessa perspectiva, a pedagogia procrastina uma invenção de uma epistéme própria, capaz de elevar os gestos de suas práticas à categoria de saber-teórico. Talvez seja possível que haja para a pedagogia uma epistemologia da prática ou uma epistemologia de circunstância, implícita nos processos intuitivos e artísticos de alguns profissionais que, de fato, levam a cabo em situações de incerteza e conflito de valores. Isso não quer dizer que a pedagogia deva criar uma epistéme tradicional ou científica, mas uma voltada ao acontecimento, à insurreição cotidiana.

Trata-se de um ato, para além de todo e qualquer pensamento moralizante que insiste em se fazer cumprir nas instâncias menos nobres de teorias calcadas numa pedagogia dispersa, envelhecida e conservadora. Provavelmente, os discursos dos sujeitos ouvidos foram marcados por uma nostalgia, por não haver uma teoria circunstancial que fosse equivalente a uma prática experimentada ou de não haver um saber-teórico que possa ser articulado às teorias das situações singulares do cotidiano escolar. Entretanto, acreditamos que, para além dessa nostalgia, encontra-se uma denúncia regozijada de saberem a priori que toda e qualquer epistemologia tradicional padecerá de elementos que preceituem o real. É como se pedagogos e pedagogas sofressem eles mesmos de uma falta constitutiva, a saber, de uma epistemologia que os faça advir ao mundo douto.

 

Referências bibliográficas:

CHARLOT, Bernard. Formação de professores: a pesquisa e a política educacional. In: PIMENTA, Selma G. & GHEDIN, Evandro (orgs.) Professor reflexivo no Brasil. Gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.

FOUCAULT, Michael. A arqueologia do saber. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.

GÓMEZ, Angel. O pensamento prático do professor. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

IMBERT, Francis. A questão da ética no campo educativo. Rio de janeiro: Vozes, 2001.

MILLOT, Catherine. O real e o ideal. In: Freud antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

VEIGA_NETO, Alfredo Jose da. A ordem das disciplinas. Tese de Doutorado Porto Alegre: UFGRS/FACED, 1996.

 

 

1 Texto adaptado do Relatório de Pesquisa sobre Trabalho Docente realizado na FAE-UEMG/CBH em 2004.