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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
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An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
Os entraves da inclusão escolar: reflexões a partir da psicanálise
Cláudia Alaminos Gonçalves
Fonoaudióloga, mestranda da Faculdade de Educação da USP na linha de pesquisa Psicologia e Educação
1- Um pouco da história da psicanálise no Brasil
Antes de falarmos propriamente da história da psicanálise no Brasil, consideramos pertinente ressaltar que em nosso país houve, e ainda há, uma certa equivalência no uso dos termos psicanálise, psicologia e psiquiatria; cuja conotação é a de um tipo de tratamento para a resolução de problemas, para o auto-conhecimento ou mesmo de um tratamento destinado a loucos.
Tal fato, que poderia ser encarado apenas como um erro semântico cometido por leigos, pode ser encarado como o reflexo do caminho histórico percorrido pela psicanálise, pela psicologia e pela psiquiatria brasileiras. Caminho no qual, por diversas vezes, as três áreas estiveram entrelaçadas e até mesmo misturadas.
Voltando-nos ao processo histórico a partir do trabalho de Vale (2003), nos deparamos com o fato de que no Brasil, até a metade do século XIX, não havia nenhum tipo de assistência especializada no atendimento de doentes mentais. Devido aos pedidos preocupados de alguns médicos, apenas em 1841 foi criado o Hospício D. Pedro II1 e em 1886 foi regulamentado o ensino da psiquiatria no Brasil.
Nos primórdios do século XX, houve um impulso à política de assistência psiquiátrica no Brasil resultante do apoio dado pelo presidente Rodrigues Alves. Na década de 1920, duas tendências psiquiátricas surgiram no Rio de Janeiro. A primeira delas foi inspirada pela psiquiatria biológico-organicista alemã que considerava os problemas psiquiátricos diretamente relacionados a problemas culturais e que ambos teriam causa genética. Assim, de acordo com essa linha teórica, eram determinados organicamente. Esta teoria foi adotada pela Liga Brasileira de Higiene Mental que, a partir de 1926, assumiu uma ideologia eugênica que proclamava que a psiquiatria deveria prevenir e controlar a doença mental através de uma ampla intervenção na sociedade.
A segunda tendência psiquiátrica preconizava que a humanização e a melhora no tratamento destinado aos doentes mentais deveriam ser priorizadas. Levando em consideração essa tendência, encontram-se trabalhos com influências psicossociais e psicanalíticas.
Como os conceitos da higiene mental dominaram a psiquiatria brasileira no início do século XX, as idéias psicanalíticas sofreram influência desses conceitos que preconizavam a intervenção tanto no comportamento individual quanto nas instituições, especialmente a família e a escola, com o objetivo de prevenir os fatores determinantes da doença mental. Dentre esses fatores, os "excessos sexuais" tomavam uma posição de destaque. A partir dessa hipótese, à psicanálise era designado o papel de reprimir, prevenir, educar e civilizar a população, principalmente os negros, considerados primitivos e desregrados no que dizia respeito à sexualidade.
Até a metade do século XX predominavam a segregação e a reclusão dos doentes mentais, cujos tratamentos recebidos baseavam-se na administração de sedativos e eletrochoques.
Apenas nas décadas de 1950 e 1960 novas sociedades psicanalíticas foram fundadas no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Nessa mesma época, chegaram ao país as idéias de Michel Foucault e da antipsiquiatria que influenciaram o movimento antimanicomial no Brasil.
No final do século XX inicia-se a influência do modelo norte-americano na psiquiatria brasileira, cuja tendência é a classificação dos quadros psiquiátricos a partir de um critério quantitativo de sintomas, descritos no DSM-IV.
2- A psicanálise e sua utilização nas escolas
Os conceitos da higiene mental, amplamente difundidos na primeira metade do século XX, trouxeram a "boa nova" da medicina mental preventiva que aspirava ser a "moral universal do amanhã".
Segundo Roxo (1925) citado por Reis (2000), um dos melhores meios de se fazer a prevenção da doença mental era intervir sobre as crianças na escola, local mais acessível à sindicância médica. A partir da observação na escola seria possível a constatação precoce dos distúrbios degenerativos mentais e, com essa descoberta, promover a separação dessas crianças e a segregação delas em "estabelecimentos adequados".
A referida ideologia eugênica chegou então às escolas, nas quais os professores eram orientados a identificarem lares perversores, tarefa para a qual a psicanálise foi solicitada, sem que houvesse qualquer rompimento com os programas profiláticos da Liga Brasileira de Higiene Mental.
Nunes (1988) citado por Reis (2000) considera que a valorização inicial da psicanálise ocorreu pela possibilidade da sua utilização em projetos pedagógicos de melhoria das crianças e, conseqüentemente, do povo em geral, em especial no que dizia respeito à retificação dos instintos, leia-se pulsões, sobre os quais operaria a sublimação.
Essa visão prescritiva e intervencionista da psicanálise no meio escolar ainda aparece como demanda de alguns educadores.
3- O modus-operandi dos educadores
Conforme pudemos constatar através da observação histórica, a escola tem sido um campo fértil para a aplicação de hipóteses teóricas do campo psi, tomadas como verdades em si mesmas. Para a execução dessa função, os educadores têm sido convocados para que, após o "treinamento" ou a "formação" mais adequada, eles mesmos possam aplicar as hipóteses e, a partir dos parâmetros fornecidos pelas próprias teorias, obter respostas, intervenções ou posturas mais adequadas para solucionar suas dúvidas ou dificuldades.
De acordo com Lajonquière (1999), a crescente psicologização traz consigo graves conseqüências ao cotidiano escolar. Ela transforma qualquer queixa ou baixo rendimento escolar em um problema individual, tomado como exclusivo do aluno que deverá ser tratado por especialistas que tomaram para si funções que antes eram exclusivas do educador.
Os freqüentes encaminhamentos a especialistas por parte das escolas derivam do fato dos educadores se sentirem incapacitados e impotentes para abordar as dificuldades enfrentadas pelo aluno e o laudo apresentado por m especialista traz consigo o aval para que os professores continuem a fazer o que sempre fizeram em relação ao aluno ou, o que é mais danoso, para excluí-lo ao realizar um encaminhamento para uma instituição escolar "mais adequada" às suas necessidades individuais.
Ao relacionarmos o modus operandi das escolas nos dias atuais e o que já ocorria na primeira metade do século XX, podemos verificar que a realidade da educação não foi modificada em sua essência. Apesar das novidades metodológicas, a visão que o educador faz de suas atribuições e conhecimentos permanece pautada na "autorização" que outros profissionais conferem à tarefa de educar este ou aquele aluno.
4- Remando contra a maré ou da inclusão escolar
Apesar do aspecto normativo da Conferência Mundial de Educação para Todos (Tailândia, 1990) e da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais (Espanha/Unesco, 1994), da qual originou-se a Declaração de Salamanca, há no movimento de inclusão escolar algo de um retorno à autonomia do educador em seu território de atuação.
A afirmação: "Escolas devem buscar formas de educar tais crianças (crianças com necessidades educacionais especiais) bem-sucedidamente, incluindo aquelas que possuam desvantagens severas", presente na Declaração de Salamanca (1994), apesar de acenar com ma falsa possibilidade à utopia da educação para todos, traz consigo uma responsabilização das escolas e conseqüentemente dos educadores, de receber e educar alunos que fogem da caracterização universalizante de quais são as crianças autorizadas a freqüentar o ambiente escolar. (Grifo nosso)
A partir do exposto acima, nos deparamos com duas hipóteses sobre os entraves à inclusão escolar. A primeira delas diz respeito à própria história da Educação. Os educadores estão habituados a receber orientações, treinamentos e formações sobre os diferentes assuntos que permeiam sua atividade profissional. Essa tradição gera insegurança e sensação de impotência diante da presença de alunos com características tão diferentes das crianças que usualmente freqüentam a escola. Pode-se constatar que esta situação tem abarcado em si uma grande parcela das queixas dos professores em relação à inclusão. Frases do tipo: "não sei o que ou como posso ensiná-lo", "ele veio sem um diagnóstico", "como poderei ensiná-lo sem saber o que ele tem e qual o seu potencial", "esta classe não é a ideal para ele" ou "eu não sou psicóloga" são corriqueiras entre tantas outras semelhantes.
No entanto, por trás de preocupações em que o foco é tão somente o bem estar da criança incluída, poderia haver outra explicação plausível para tantas dificuldades?
Ao utilizarmos a psicanálise como ferramenta teórica para refletir sobre a inclusão escolar podemos formular uma segunda hipótese que explique as dificuldades do processo. Esta hipótese está diretamente relacionada à questão do retorno do recalcado ou, como nos alerta Lajonquière (2001, p. 48), "o retorno disfarçado daquilo do qual nada queremos saber, apesar das nossas boas intenções".
De acordo com esta hipótese nada queremos saber dos diferentes ou dos deficientes, eles nos causam repulsa, pois através deles nos deparamos com aquilo que supomos ser diferente de nós mesmos. Assim, a presença do deficiente promoveria algo semelhante ao que produz o selvagem, que não passam de tentativas de eliminar a maior parte possível de sua selvageria e de torná-lo "civilizado", de acordo com nossas concepções de civilidade.
A mudança ocorrida com a inclusão escolar pode ser observada no olhar destinado à criança. De acordo com Lajonquière (2001) se antes ela era encarada como possuidora de déficits, que supostamente deveriam ser corrigidos, Agora, com o advento da nomenclatura Necessidades Educacionais Especiais, supõe-se nela necessidades que deverão ser atendidas como condição para eu a criança se torne parecida com as demais.
5- Resistência à mudança de paradigmas
Thomas Kuhn em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas (1962) se opõe à visão da Ciência como um acúmulo linear e progressivo de conhecimentos e elabora a teoria de que a Ciência evolui através de revoluções, nas quais o paradigma vigente é substituído por um novo. Algo que não ocorre de maneira pacífica, mas através de revoluções em que os defensores do paradigma vigente impõem resistência ao novo já que este vem romper com o anterior.
Dessa maneira, o surgimento de um novo paradigma não acrescenta, mas desorienta, desintegra e muda as regras que governavam a prática científica anterior. Kuhn (1962, p. 26) nos diz a respeito de um novo paradigma: "sua assimilação requer a reconstrução da teoria precedente e a reavaliação dos fatos anteriores. Esse processo intrinsecamente revolucionário raramente é completado por um único homem e nunca de um dia para o outro".
Conforme a citação de Kuhn, podemos considerar que todas as características de Freud e a psicanálise trazem no seu bojo a introdução de um novo e subversivo paradigma. O mesmo se pode dizer a respeito da inclusão escolar que demonstrar a obsolescência dos saberes instituídos sobre a educação de deficientes e propõe uma nova abordagem para tal empreitada.
6- Análise da situação da inclusão a partir dos quatro discursos de Lacan
Os quatro discursos, introduzidos por Lacan no Seminário 17, O avesso da Psicanálise (1969-1970), são o discurso de mestre, o discurso da universidade, o discurso da histérica e o discurso do analista. Tais discursos ultrapassam e não prescindem das palavras, mas são definidos como o lugar no qual o sujeito se posiciona para fazer o laço social, isto é, os discursos são modalidades de tratamento do outro.
Ao focalizarmos a inclusão escolar através dos quatro discursos nos deparamos com os educadores, agentes do discurso escolar, posicionando-se no discurso da histérica que, num tom queixoso, afirmam nada saber e dirigem-se a um suposto Outro, colocado no lugar de mestre, do qual esperam os saberes e as informações que irão solucionar suas dúvidas e dificuldades e, por conseqüência, viabilizar a inclusão escolar de maneira a satisfazer suas expectativas individuais, além dos requisitos pedagógicos e legais.
O sujeito posicionado no discurso da histérica faz do seu mal-estar o mote de seu discurso e convoca o mestre para decifrar-lhe o sintoma. Com a persistência irrevogável do mal-estar, a histérica aponta para a realidade do mestre, a de que ele é castrado. Nesse caso, tendo em vista a inclusão escolar, o saber do mestre, em geral encarnado por profissionais da área psi, não será suficiente para enumerar todas as necessidades educacionais especiais e propor soluções que possam satisfazê-las para que possam então surgir crianças normais, de acordo com a perspectiva dos educadores.
O posicionamento dos educadores no discurso da histérica, quando se trata da inclusão escolar, pode ser tomado como conseqüência de dois aspectos concernentes ao processo. O primeiro relaciona-se à maneira prescritiva e orientadora que profissionais afins têm se relacionado com os educadores, munindo-lhes com seus saberes estruturados a respeito de situações enfrentadas em sala de aula. O segundo aspecto refere-se ao modo como se tem viabilizado a inclusão escolar, através de leis que devem ser cumpridas a qualquer preço e em todas as situações, sem que haja implicação subjetiva do professor tanto com o paradigma da educação inclusiva quanto com o aluno incluído.
Dessa forma, a perspectiva de viabilizar a inclusão escolar através da informação e de atitudes de mestria que visem instrumentalizar os professores com saberes que o possibilitem trabalhar com crianças diferentes do aluno padrão são, em sua grande parte, infrutíferas, pois nesta abordagem não há a produção de uma mudança subjetiva do professor que, mantendo-se na posição do discurso da histérica, jamais poderá assumir para si o lugar de mestre a partir de uma nomeação própria.
7- A viabilidade da inclusão como ato educativo
A educação escolar pressupõe que numa instituição há regras a serem seguidas e que a inserção de um sujeito numa comunidade só é possível quando há uma renúncia pulsional, pois em qualquer comunidade há a indicação do que se deve e do que não se deve fazer.
Lajonquière (1999), nos diz que a promessa da educação é que a criança, ao se apropriar de conhecimentos próprios dos adultos, poderá vir a sê-lo. Portanto, educar supõe uma falta na criança e, através do ato educativo, ela é introduzida na cadeia desejante, o que permite que ela circule na sociedade como um semelhante.
Apesar da divisão subjetiva e o mal estar na cultura colocarem diante dos olhos a (im)possibilidade da educação enquanto ideal de perfeição narcísica, o ato educativo é responsável por uma mudança de posição do sujeito frente à castração.
Se um dos aforismos mais populares da modernidade é "lugar de criança é na escola", os alunos incluídos (quando há inclusão de fato), que antes eram identificados aos significantes louco, deficiente mental, surdo, cego entre outros, passam a ser identificados ao significante criança, pelo fato (não tão simples) de que freqüentam uma escola e não uma instituição especial e segregadora em cujo estatuto há uma discriminação das patologias e não dos sujeitos que dela podem fazer parte.
Portanto, as instituições especializadas assim como a sede por diagnósticos e prognósticos dos educadores das escolas regulares no contato com as crianças incluídas, objetalizam a criança e deixam de enxergar um sujeito para enxergar uma patologia, o que por si inviabiliza o ato educativo e conseqüentemente a inclusão.
8- Considerações finais
Ao retomarmos nossa discussão sobre a inclusão escolar como uma responsabilidade dos educadores sobre seus atos educativos na escola perante as diferenças, podemos acrescentar que o preparo dos professores com vistas a facilitar ou viabilizar a inclusão, de maneira oposta a habitual na qual são fornecidos métodos e técnicas que indicam como o professor deve proceder nesta ou naquela situação, deve priorizar a possibilidade de reflexão sobre os atos educativos escolares e seus efeitos nas esferas social, cultural e subjetiva dos alunos e não tentar descobrir quais são as necessidades educacionais especiais das crianças para assim satisfazê-las.
Não é de satisfação que se trata a educação ou a inclusão, é de um posicionamento do educador diante do sujeito que aprende. Assim, o ato educativo se dá a partir do confronto entre subjetividades e não de uma ecolalia, muitas vezes risível, de estratégias mais ou menos adequadas para abordar o aluno tomado como objeto, objeto este que está marcado com o significante patologia, impossibilidade, estranho ou incompatível.
Trata-se de romper com o percurso da história da mera aplicação de diferentes discursos no campo educativo para que o educador, tomando as rédeas de sua empreitada possa, por sua própria autorização, ensinar os que vieram depois deles e colocar cada aluno, seja ele deficiente ou não, nos trilhos da cadeia desejante que nos subjetiva e nos filia à humanidade.
Referências bibliográficas:
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LACAN, J. (1969-1970). Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise. (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor.
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1 No século XX, o hospício passou a chamar-se Hospital Nacional de Alienados.