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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Novos caminhos da criação? Reflexões sobre família e infância

 

 

Cláudia Aparecida de Oliveira Leite

Doutoranda em Lingüística IEL/UNICAMP

 

 

Novos caminhos da criação? Essa pergunta é a rosa-dos-ventos que nos permitirá tecer reflexões acerca dos desdobramentos que a família e a infância ocupam em nossa "pós-modernidade". Para tal, tomaremos alguns fragmentos de um filme de animação chamado Les triplettes de Belleville1 que narra a história de uma criança (Champion) "taciturna e melancólica" que vive com a avó (Madame Souza) e que mantém um desinteresse notório em relação ao que o cerca. "Aparentemente", nada capturava seu olhar ou se desdobrava em alguma vibração. E assistimos às tentativas da avó para alavancar um sorriso, um olhar de entusiasmo, um fio de desejo.

O desafio dessa avó – decifrar o enigma do desejo que modula uma criança – permite que tracemos um primeiro apontamento, qual seja, os desafios e as vicissitudes da criação. Dentre as acepções que o termo criação possui na língua portuguesa destacamos aquela que implica o cuidado dispensado ao ser humano, o que inclui a reprodução, a gestação, o investimento dedicado à criança. A própria fase em que se é criança e a educação, sistemática ou não, de uma pessoa também estão inclusos na definição de criação. Este ato geralmente é realizado por um adulto que é convocado a assumir social, jurídica e afetivamente uma dedicação à criança. Criar é um ato que se estabelece a partir de um investimento dado a criança ordenando sua estruturação e lhe atribuindo um lugar na cena simbólica.

O filme nos mostra a Avó, Madame Souza, emaranhada nessa tarefa de criar Champion e fazê-lo desejante. Ela encontra o "fio do novelo" secretamente depositado sob o colchão de Champion: sua paixão pelas bicicletas e, num belíssimo suspiro, se implica como promotora desse encontro da criança com uma promessa de movimento: a bicicleta.

As elaborações da Psicanálise nos permitem considerar a constituição do sujeito se efetuando por conquistas que são reordenadas na matriz simbólica e na dependência da alteridade – do adulto – que assegura a criança a possibilidade de se estruturar. Assim, a criança e a família são lidas de forma indissociável no que tange aos movimentos de estruturação subjetiva.

Conforme Ângela Vorcaro (1999, p.64) nos aponta:

"Afinal, a função significante incide como real na individualidade do organismo, desde que ele é nomeado, situado na relação de uma linhagem e a um discurso. Tomada pela alteridade, essa individualidade orgânica realiza-se enquanto distinção, pela contingência da função do traço que a separa da imanência vital, na singularidade do que é aí cunhado, resíduo que barra o mero fluxo vital e garante a inscrição da alteridade."

Apoiados pela Psicanálise, podemos esboçar os movimentos que implicam na constituição subjetiva e que entram em jogo ao se atribuir um lugar à criança no discurso familiar. Assim, para manter-se viva, a criança necessita de um adulto que a crie, que a nomeie. Esse encontro descompassado, que promove as vias do não-saber, é constitutivo e funda a possibilidade de relançamento do desejo.

Os movimentos implicados na constituição do sujeito e sua dependência da alteridade percorrem as formulações freudianas desde os escritos do Projeto para uma psicologia científica(1895), perpassando os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) e outros trabalhos posteriores. Focalizamos o texto Romances Familiares (1908) em que percebemos o destaque que Freud dá ao lugar privilegiado dos pais frente a criança em um dado momento constitutivo, pois os pais são considerados por ela como detentores plenos da autoridade e fonte de todos os conhecimentos. Freud destaca que essa passagem da criança frente ao adulto é fundamental. Lacan também imprime as balizas da conquista do sujeito como desejante, e as funções que estão em jogo neste acontecimento, pela operação simbólica que tem como elementos ordenadores o nome-do-pai e desejo materno.

Esta vinculação família-criança recebe atenção de vastos campos de conhecimento. Entretanto, toda essa notoriedade que a criança conquistou em nossos dias, e que faz dela o centro das discussões familiares e sociais é fruto de modificações fundamentais que a família sofreu ao longo da história. É importante salientar que a infância, a criança e a família não podem ser tomadas como um acontecimento natural, biológico e desde sempre inalterado. É o que podemos ler nas teses de Phillipe Ariès (1975) quando este destaca que a atitude dos adultos frente a infância mudou trazendo rearticulações para o lugar ocupado pelos pais e pelas crianças na cultura e sociedade. Ou seja, toda essa implicação que vivenciamos está em franco curso, movimento, e ao longo da história sofreu oscilações e mudanças significativas.

Chamamos a atenção para um sentimento de indiferença frente a infância que, segundo Ariès (1975), imperou por longo período. A criança, sendo demasiadamente frágil, poderia sucumbir a qualquer tempo, o que não justificaria um investimento maciço em sua criação. Essa indiferença em relação à infância foi sendo criticada, combatida e modificada e com essa nova forma de tratar a infância Ariès (1975:194) declara:

"A família deixou de ser apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome, e assumiu uma função oral e espiritual, passando a formar os corpos e as almas. (...) O cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos, uma afetividade nova que a iconografia do século XVII exprimiu com insistência e gosto: o sentimento moderno da família".

Ariès (1975, p.189) indica que entre o fim da Idade Média e os séculos XVI e XVII, a criança havia conquistado um lugar junto a seus pais. Esse acontecimento deu à família do século XVII sua principal característica que a distinguiu das famílias medievais. Dessa forma, ele insiste que "a criança tornou-se um elemento indispensável da vida quotidiana, e os adultos passaram a se preocupar com sua educação, carreira e futuro. Ela não era ainda o pivô de todo sistema, mas tornara-se uma personagem muito mais consistente."

Retomando o filme Les triplettes de Belleville, que ilustra nossa discussão, ressaltamos que a avó de Champion traz à cena as querelas que nos torturam, sempre temperadas pelo descompasso que a linguagem nos impõe. Como criar uma criança? O que é criar uma criança? Sem resposta, Madame Souza tenta: oferece-lhe o piano, presenteia-lhe com um cachorro (que ocupa um lugar fundamental na trama do filme) e movida pela descoberta debaixo do colchão, dá o golpe de mestre: presenteia Champion com uma bicicleta.

O impossível da criação, a constituição da criança e da família que rompe com o campo natural, nos impõe várias questões e dentre elas: quais os caminhos que podemos trilhar em nossa distinta modalidade de criação em que a criança é tomada como célula fundamental para a "engrenagem humana"? O que é novo nessa relação família-criança? A diversidade instaura novas configurações que se estendem desde as formações familiares díspares (criança e avós, tios, mães-sociais, casais do mesmo sexo, pai-mãe) até os novos projetos científicos para gerar um bebê. Os atuais debates sobre clonagem, sobre a utilização se células tronco participam dessa configuração atual sobre a criação. Mas é o estabelecimento dos vetores da criação no império do discurso capitalista que tomará neste momento a nossa reflexão.

Les triplettes de Belleville também nos convida a refletir sobre esse ponto. O filme compõe uma crítica primorosa ao modelo capitalista. Belleville é uma cidade super-urbana, que tem em sua chegada, via mar, a caricatura da Estátua da Liberdade. Ao invés daquela forma longilínea que encontramos na estátua de Nova York, a estátua de Belleville traz as formas obesas tão comuns entre os personagens urbanos do filme. Detalhe que também pode ser notado na estatueta do Oscar. Esse detalhe instala um primeiro convite a nossa reflexão sobre a cultura do excesso e da implicação desse modelo nas relações familiares e sociais.

O filme revela os moldes de uma sociedade consumista por excelência, que não poupa aqueles que não são mais consumíveis/consumistas. A travessia imposta pelo declínio consumista ganha forma nas Triplettes; elas são três irmãs que eram famosas vedetes nos anos 30 e que, por ocasião do filme, já idosas, ganham a vida fazendo shows com sucatas. Elas comem rãs, muitas rãs. Até picolés de rãs... o que compõe cenas bizarras. Poderíamos dizer que elas vivem porque engolem sapos: moram em um prédio decadente, que é ponto de prostituição, infestado de baratas e que possui banheiros sujos com fezes em forma de Mickey Mouse.

Neste trabalho, gostaríamos de nos deter nesse ponto: o que dizer da criação, dos nós entre adultos e crianças, na vigência desse modelo discursivo marcadamente presente nos nossos dias? Lacan, no seminário XVII - L'envers de la Psycanalyse [A Psicanálise pelo avesso] (1969-1970) propõe um sistema de relações que inscreve a estrutura de quatro discursos radicais: discurso do mestre, discurso histérico, discurso psicanalítico e discurso universitário. Sob uma forma algébrica composta por quatro termos (Significante Mestre, Saber, Sujeito, a) e quatro lugares (agente, Outro, produção, verdade), Lacan nos apresenta a estrutura desses quatro discursos, marcando a impossibilidade de tomar separadamente o sujeito do social. Sendo assim, ele formula o discurso como laço social. Em 1972, em uma conferência em Milão, ele apresenta um quinto discurso: o discurso capitalista.

Aurélio Souza (2003) nos lembra que a produção desse quinto discurso foi resultado de algo que sempre interrogou Lacan: o lugar da Psicanálise na cultura e na política e a posição política do analista. Lacan insiste que através desse novo discurso, ligado à modernidade e a própria produção capitalista, a idéia da alienação não deve corresponder a uma simples condição de que o homem é determinado pelo trabalho. Dois elementos do discurso capitalista nos tocam: 1º) A redução do Saber a um valor de mercado (mecadoria) e 2º) A produção constante de "objetos" que passam a ser desejados pelo sujeito.

Em relação ao primeiro ponto, Aurélio Souza (2003, p.139) nos diz:

"Se até então havia uma impossibilidade estrutural e discursiva do sujeito ter acesso ao Saber e ao objeto causa de desejo [a], desde que este saber adquire o estatuto de um bem de consumo, ele vem continuamente oferecido como uma promessa de satisfação possível para o sujeito".

O adulto é convocado a saber o tempo todo; se não encontra resposta a algo, ou conforme marca Souza (2003, p.141): se não assume nosso não-saber sobre o real do gozo, é acusado de desinformado. Fica proibido não saber! E a engrenagem do saber/mercadoria alimenta as relações na família e alhures: como criar meninos, como criar meninas, como convencer pessoas, como enlouquecer um homem/uma mulher na cama. O que vem em seguida é que o descompasso estrutural entre a criança e o adulto toma um gosto amargo experimentado pelos pais, professores, tios, avós. A promessa de que há um saber que pode ser totalmente absorvido não deixa ilesos nem as crianças nem os adultos.

O segundo ponto, concernente à produção constante de objetos, marca a proliferação em escala industrial e a renovada promessa de que o produto mais recente é melhor que o anterior. Sendo assim, esse produto está mais apto para satisfazer nossos anseios. Nesse ponto, as crianças são incluídas de forma capital, tornando-se verdadeiras minas de consumo. Entretanto, qual é mesmo a moeda que esses pequenos consumidores possuem para se submeterem às leis de mercado? Convocada a consumir, a criança passa a contar com a moeda do adulto e nessa conta, multiplicam-se as perdas, pois estamos sempre atrasados em nossas aquisições e a afetividade passa a ser contabilizada pela injunção consumista.

Novos caminhos da criação? Que os caminhos sejam sempre novos a cada (des)encontro entre adulto-criança. O descompasso e o não-saber são portais por onde circulam as possibilidades de sujeito e de desejo advirem. O discurso capitalista promete rechaçar ambos. Desde que propomos pensar a junção família-criança, podemos interrogar a relação que se instaura entre sujeito e objeto, marcando a possibilidade de operar outras maneiras de "organizar e instaurar limites nesse campo de gozo que afeta continuamente o sujeito" (Souza, 2003, p.107). Os laços sociais também se estabelecem por outras formas discursivas, conforme Lacan nos indica ao apresentar os quatro discursos radicais.2

 

Referências Bibliográficas:

ABBAGNANO, N. (1982) Dicionário de Filosofia. São Paulo: Editora Mestre Jou.

ARIÈS, Philippe. (1978) História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC.

DARMON, Marc. (1994) Ensaios sobre topologia lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas.

FREUD, Sigmund. (1909 [1908] ) Romances familiares in Edição Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, tradução) – volume IX pp. 214-222. Rio de Janeiro: Imago, 1987.

LACAN, Jacques. (1969-1970) O seminário, livro 17: o avesso da Psicanálise (Ari Roitman, tradução; consultor, Antônio Quinet) – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

SOUZA, Aurélio. (2003) Os discursos na Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

VORCARO, Angela. (1999) Crianças na Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

 

 

1 Filme de Sylvain Chomet que no Brasil foi traduzido por As Bicicletas de Belleville.