5Novos caminhos da criação? Reflexões sobre família e infânciaPsicanálise/Medicina: Qual laço possível? author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A constituição da subjetividade e a aquisição da língua escrita: reflexões psicanalíticas sobre o declínio da função paterna e a alfabetização de crianças

 

 

Conceição Azenha

Mestranda IEL/UNICAMP

 

 

Is pater est, quem justas nuptiae demonstrat1

 

Há algum tempo trabalhando na clínica com crianças e estudando a conexão entre psicanálise e educação, tenho visto que, não poucas vezes, a alfabetização e/ou a aquisição da escrita por parte da criança, sofre grandes dificuldades.

Quando comecei a trabalhar em Nova Odessa (interior do Estado de São Paulo), a municipalização do ensino também estava em seu início. Naquela época (julho/2000), num universo de 3.319 alunos de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental, havia 393 crianças que não sabiam ler nem escrever, ou seja, 12% do total . Apenas nas quartas séries, 147 crianças não eram alfabetizadas. Numa análise qualitativa, pude ratificar a lei cifrada por Lajonquière (1999) "quanto mais inflacionada está a dimensão psicopedagógica, mais fica comprometida a educativa". Também tive a oportunidade de verificar que havia crianças "impedidas" de aprender. Havia evidências de que tais crianças apresentavam-se inibidas para aprender, abandonando a execução de quase todas as tarefas escolares as quais lhes produziam ansiedade (Freud, 1925). Reconhecendo, como Freud, que a inibição é um sintoma e indica sofrimento psíquico, passei a atendê-las clinicamente.

A teoria psicanalítica ajudou-me a perceber uma espécie de denominador comum às crianças atendidas, a saber, o fato de todas apresentarem indícios de impasses na sua constituição subjetiva no que diz respeito à função paterna nelas (in)operada.2

Citando Masson (1986), Ângela Vorcaro (1997) nos lembra do alerta de Freud: "sempre se é filho da época em que se vive, mesmo naquilo que se considera ter de mais próprio". Assim advertidos, e para que não estejamos a procurar manifestações das conversões histéricas nos sujeitos a la Charcot, torna-se legítimo reconhecer a plasticidade dos sintomas, identificando que, dentro de um contexto datado historicamente, outros processos de subjetivação estão em jogo. Se algo é constante, trata-se daquilo que se refere à ordem da dimensão estrutural do sintoma que diz respeito à posição do sujeito. Neste sentido, se nos perguntarmos "qual é a patologia infantil do momento", a partir da teoria psicanalítica podemos obter pelo menos duas respostas. Para Anny Cordié (1996) a resposta é o fracasso escolar. Mais recentemente, Calligaris ("Qual o ‘sucesso’ que queremos para as nossas crianças", 2001, IV Simpósio Nacional de Educação Fundamental, Leme/SP) nos propõe ser a hiperatividade, alicerçado em dados estatísticos que revelam o crescimento impressionante do uso da ritalina3 por crianças.

Indico ambas as respostas como correlatas à minha experiência. Ou seja, cotidianamente recebi encaminhamentos de crianças em situação de fracasso escolar com o diagnóstico prévio de hiperatividade feito por um médico ou professor.

Lajonquière (1999) lembra que em "Psicologia e Ideologia", clássico estudo de Patto (1984) pode-se verificar que o exemplo brasileiro do dito fracasso deve seu início, não por ingênua coincidência, ao processo de psicologização do cotidiano escolar. Além disso, "cabe lembrar que no famoso Dictionnaire de Pédagogie de Ferdinand Buisson, publicado em 1887, não consta o verbete fracasso escolar". (Lajonquière, 1999: p.180).

Quanto ao fracasso escolar, o livro de Anny Cordié revela que essa ‘patologia’ não é exclusividade dos brasileiros. Segundo a autora francesa, tal situação é uma das conseqüências da rápida transformação do mundo do trabalho, numa sociedade cada vez mais competitiva e tecnicizada pelo conhecimento científico, além da banalização produzida pelo extenso e inadequado uso dos testes psicométricos.

No âmbito da educação brasileira, Vorcaro (1999) nos mostra que o fracasso escolar - historicamente atribuído ao sujeito inapto – sempre serviu para justificar sua exclusão do acesso ao patrimônio cultural – condição efetiva de cidadania. Mais que isso, o fenômeno do fracasso escolar foi observado, segundo a autora, com um terrível mal-entendido: "a instituição escolar tomou conseqüência como causa e o não aprender ganhou atributo de morbidade". (Vorcaro, 1999, p. 195)

Os trabalhos de Lajonquière (1992, 1996a, 1996b, 1999 e 2000) são indicativos de que, muitas vezes, as simples vicissitudes no aprender têm se transformado em verdadeiros impasses para o pequeno sujeito, à medida que todo educador moderno pretende exercer uma pedagogia científica, sem se dar conta de que a ciência é o antinômico da infância. O que tem atrapalhado os relacionamentos humanos, segundo esse autor, é a crença cega nos manuais de condutas cientificamente comprovadas, como se isso fosse a tábua de salvação num naufrágio. Concordamos com Lajonquière quando afirma que o que naufraga é justamente a forma como o adulto se endereça à criança, em nome da ciência, numa recusa sistemática do desejo dos pequenos. (comunicações durante o XIX Evento de Formação continuada do LEPSI– IP/FE USP,11/06/02).

Se a escola pode, por um lado, ser a produtora de fracasso escolar; por outro, pode haver impasses subjetivos para os sujeitos. Vejamos. Segundo Jerusalinsky (comunicação durante o seminário em 30/06/03, Lugar de Vida/USP), o pai está sob suspeita na família moderna. Além disso, dentro do ideário hedonista vigente – as crianças devem estar sempre alegres, sorridentes e se divertindo. Então, exercer a função paterna colocando limites é muito difícil, sobretudo porque temos visto, com esse autor, a paixão intensa que não raro as mães nutrem mais pelos pediatras do que por seus maridos. O discurso médico-psicológico atual pede cautela para não traumatizarmos as crianças, quando colocar limite é pôr freio ao gozo. Por isso, concordamos com Grant (1999. P. 72): papai nunca mais vai saber tudo, do Papai-sabe-tudo, restou uma papa.

Hoje há configurações familiares muito distintas de 30 ou 40 anos atrás. Temos visto famílias monoparentais, homoparentais, geradas por inseminações artificiais, decompostas e recompostas. O controle da fertilidade pela mulher conferiu-lhe um maior poder sobre seu destino. A mulher tornou-se financeiramente independente do homem. Nos Estados Unidos há bancos de espermas que vendem seus produtos por catálogos. Evidentemente, tudo isso provoca uma crise na identidade masculina e o papel do homem, na atualidade, fica altamente questionado. Essa questão é tão ampla na sociedade que num artigo publicado pela Folha de São Paulo (2002) vimos que "a chamada crise da masculinidade, antes restrita à intimidade de cada homem, tornou-se pública nos últimos dez anos. Dezenas de estudos de antropólogos, sociólogos e psiquiatras chamaram a atenção para a condição de inferioridade do sexo masculino" (grifo meu)

A partir da perspectiva lacaniana, a constituição do sujeito ocorre graças a duas encruzilhadas estruturais: o estádio de espelho e a metáfora paterna. A primeira diz respeito à formação do Eu e de uma unidade imaginária para que um sujeito possa advir. A segunda diz respeito à condição de entrada no campo do simbólico, o da linguagem. E a função paterna é a operadora da castração, ou seja, da possibilidade de o sujeito não se julgar maior que a Lei.

Na medida em que o enfraquecimento do significante pai é um dado de nossos tempos, cabe perguntar: quais as implicações do declínio da imago social do pai para a constituição de subjetividades? Tal questão ganha ênfase na medida em que, como reafirma Rosa (2000, p. 87) "não é indiferente para o destino psíquico de um sujeito quem sustenta o papel de representante do discurso do Outro."

Assim formulada, tal questão pode ser inserida em várias áreas e "trata desde a ausência concreta do pai na família, passando por figura, nome, significante." Diante disso, meu interesse particular dirige-se às implicações de tal enfraquecimento para o processo de aquisição da escrita pelas crianças. Há efeitos? Que tipo de efeitos?

Aqui é importante diferenciarmos a função paterna - operadora da castração - e a imago social do pai. Quando falamos do declínio do pai, certamente estamos falando de sua representação no imaginário social. (cf. Lacan, 1938). No entanto, a função paterna é da ordem do simbólico, em que o pai encarnado pode ser seu suporte (ou não).

Por isso, a observação sobre as incidências de falhas na função paterna dos sujeitos em dificuldade de se alfabetizar tem me insuflado o desejo de pesquisa, em função das questões que se apresentam na clínica e, mais ainda, pela experiência junto às salas de recuperação de ciclo. Passo agora a relatar esta experiência.

Alunos que não sabem ler, já há quatro anos na escola, formam a classe da Recuperação de Ciclo. Dificuldade é o significante princeps.

O trabalho, realizado semanalmente, consistiu em: 1) escutar o percurso escolar singular de cada aluno; 2) escutar a professora e o infantil nela que cada aluno lhe convocava, sustentando a transferência de ambos e 3) funcionar como um terceiro entre a professora e o aluno, validando a castração simbólica.

Importante mencionar que, a princípio, não sabíamos o que, de fato, teríamos que fazer. O trabalho foi sendo possível só-depois da escuta de algumas crianças e da própria professora e, também, só-no-depois foi que percebi que a própria escuta fora um operador de trabalho durante sua vigência.

Um caso exemplar nesse sentido foi o de G., 11 anos. O garoto estava fazendo a 4ª. série pela segunda vez, mas ainda não era alfabetizado. No início do ano, G. não reconhecia ou nomeava as letras; porém, realizava com muita rapidez as quatro operações matemáticas. Uma escuta de sua posição de filho revelou que G. não sabia quem era seu pai. Sua mãe teve-o solteira e seu pai morava no mesmo bairro que ele. Ele brincava com seus irmãos sem saber que eram irmãos. Como era solteira, a mãe registrou-o em seu nome e no nome do avô materno, oficializando assim um incesto (que de fato não ocorreu). Escutei também a sua família, mas a avó materna enfatizava que não queria que ele soubesse sua verdadeira história e, embora a mãe a revelasse para ele, a avó – agente da função materna desde que ele nasceu - permanecia agindo como se não soubesse quem era seu pai biológico e impedia subliminarmente que ele tocasse nesse assunto. Depois disso, G. realizava a escrita de pequenos ditados feitos pela professora, evidenciando que sabia escrever palavras, mas não frases de maior ou menor complexidade. No entanto, não sabia ler o que escrevia, nem nomeava letras. Havia, por parte da avó, um total impedimento para suas perguntas sobre sua história e, por isso, ao meu ver, G. não perguntava, não queria saber, como dizia a avó. Obedecendo ao estatuto municipal, ele foi para a 5ª. série, embora não soubesse ler.

Tivemos um resultado bastante positivo com a maioria dos alunos. Um exemplo foi um pequeno livrinho, feito em duplas pelos próprios alunos. O nome da coleção foi proposto por um aluno: "Ler é viver". De apenas ouvintes de histórias, passaram a contar e escrever suas próprias histórias.

Acredito que, do ponto de vista da instituição escolar, dois fatores possibilitaram a alfabetização para muitos alunos: 1) a aposta das professoras no sucesso dos alunos, sustentada pela aposta que eu fazia nela e em seus alunos e 2) o corte operado pela intervenção que realizei - no papel de um terceiro - ao longo do trabalho, fazendo freio ao gozo engendrado na relação transferencial dos alunos com suas professoras. Porém, é relevante lembrar que tal operação só foi possível na vigência da transferência daquelas professoras comigo.

No complexo de castração, o que está em jogo é uma abertura para uma produção desejante do sujeito. Se a criança consegue agüentar o fato de não ser o único objeto do desejo da mãe, pode mobilizar seu desejo, numa "operação inaugural de linguagem, na qual a criança se esforça por designar simbolicamente sua renúncia ao objeto perdido. (...) O recalque originário aparece então como intervenção intrapsíquica que irá assegurar a passagem do real imediatamente vivido à sua simbolização na linguagem". (Dor, 1990: p. 91).

A linguagem é, portanto, em sentido amplo, uma metáfora, pois se trata de um substituto do objeto perdido. Isso significa que a constituição de um sujeito (do desejo) possibilita o usufruto de um lugar de enunciação, da formação de laços sociais, pela a entrada desse sujeito no campo da linguagem. E aqui podemos falar em linguagem oral e escrita.

Como as falhas da operação da função paterna, fazendo mancar o simbólico, incidem no processo da alfabetização? Como pensar o declínio do pai na modernidade e sua relação com a aquisição da escrita? É possível criar nomes do pai, no plural, durante a escolarização, de modo que ofereçam algo de ordenação, de parada, de pontos de capitonagem aos pequenos sujeitos?

Estas são as questões que estão (pro)movendo a produção de minha pesquisa.4

 

Referências bibliográficas:

CORDIÉ, A. (1996). Os atrasados não existem. Psicanálise de crianças com fracasso escolar. Porto Alegre: Artmed.

DOR, J. (1990). Introdução à leitura lacaniana. Porto Alegre: Artes Médicas.

FONTES, A. M. (1999) "Fracasso escolar": um sintoma social? In: I Colóquio do Lepsi. IP/FE – USP. Anais A Psicanálise e os Impasses da Educação. São Paulo, Annablume, p.108-113

FREUD, S. (1925) Inibição, sintoma e ansiedade. In: Edição Eletrônica das Obras psicológicas Completas , Vol. XX.

________ (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: : Edição Eletrônica das Obras psicológicas Completas , Vol. VII

GRANT, W.H. (1999). O declínio da função paterna na atualidade. In: I Colóquio do Lepsi – IP/FE – USP. Anais A Psicanálise e os Impasses da Educação. São Paulo: Annablume. p.72- 76

LACAN, J. (1938/1984) Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

_________. (1958) O Seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 .

__________(1966).O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.96-103.

LAJONQUIÉRE, L. (1992) De Piaget a Freud. A (psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber. Petrópolis: Vozes, 253p.

________________.(1996a) A criança, "sua" (in)disciplina e a psicanálise. In: AQUINO, J. G. (org.) Indisciplina na escola. Alternativas teóricas e Práticas, 7ª ed.

________________.(1996b) Conversando com Sara Pain. Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, São Paulo, n.1.

LAJONQUIÉRE, L. (1999) Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. 2ª ed. Petrópolis: Vozes.

_________________(2000) Itard victor!!! Ou do que não deve ser feito na educação de crianças. In: BANKS-LEITE, L. e GALVÃO, I. A educação de um selvagem. As experiências pedagógicas de Jean Itard. São Paulo: Cortez, p.105-116.

ROSA, M. D. (2000) Histórias que não se contam. O não-dito e a psicanálise com crianças e adolescentes. Taubaté/SP: Cabral Editora Universitária.

VILAS BOAS, S. (2002) Homens tentam superar desvantagem emocional. Folha de São Paulo, São Paulo, 17.01.02.

VORCARO, A. (1999). Crianças na psicanálise. Clínica, instituição, laço Social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

___________. (1997) A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud .

 

 

1 Citação em Latim, comum em Direito : " Pai é quem se casou com a mulher de quem nasceu o filho". Quem define o pai é a mãe.
2 Coloco o foco nas sessenta e três crianças com as quais estava em contato porque muitas das crianças dos anos anteriores já não estavam mais comigo (o que não nos impede de pensar a possibilidade de esses indícios estarem presentes nas crianças atendidas em anos anteriores).
3 Droga indicada pelos médicos para combater a hiperatividade.
4 pesquisa de mestrado em curso no IEL/UNICAMP com apoio financeiro do CNPq.