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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Psicanálise/Medicina. Qual laço possível?1

 

 

Cynthia Nunes de Freitas Farias

Psicóloga da Divisão de Psicologia do Hospital das Clínicas da FMUSP

 

 

Freud (1919 [1918]), em sua conferência "Linhas de progresso na terapia psicanalítica", faz algumas considerações a respeito de uma possível extensão da psicanálise àqueles que até então não puderam dela se beneficiar. Ele diz que chegaria um tempo em que através de um "tipo de organização", a psicanálise poderia oferecer tratamento gratuito a uma considerável massa da população. (p. 210)

Observa algumas condições acerca dessa nova perspectiva para o tratamento psicanalítico que se prenuncia, como, por exemplo, que ele acontecerá no seio de instituições, que deverá ser gratuito, de responsabilidade do Estado (p.210). Finalmente, que exigiria uma adaptação da técnica psicanalítica as essas novas condições.

Na via da previsão freudiana, Laia (2003) conclui que esse futuro aludido por Freud já é nosso presente (p.27), tendo em vista o aumento do número de psicanalistas trabalhando hoje em instituições educacionais, de saúde, de desenvolvimento social etc.

Em minha experiência no HC da FMUSP, uma proposta de trabalho orientado pelos princípios da psicanálise não tem sido tarefa fácil.

O HC é um hospital escola e está entre os principais da América Latina em termos de formação de médicos e produção de conhecimento científico. É um centro que conta com tecnologias de ponta na área da saúde, recebendo casos de alta complexidade e configurando-se como um hospital do sistema público de atenção a saúde de nível terciário e quaternário.

A quantidade de pacientes e a diversidade de doenças que se encontra neste hospital é um dos aspectos, talvez o principal, que garante a qualidade da formação dos alunos e a experiência dos profissionais que ali se dedicam. Essas características fazem deste hospital uma das referências na área da saúde atraindo pacientes e profissionais que procuram a instituição para serem tratados ou para se especializar. Podemos supor então que pertencer ou ter pertencido a esta Instituição, seja como funcionário, seja como paciente, pode funcionar como uma designação que está longe de ser banal.

Esse espaço ordenado pelo discurso médico-científico abriga as práticas psicológicas desde a década de 50 do século passado, sob a égide da para-medicina, ou seja, são consideradas terapêuticas que devem se associar à medicina auxiliando-a a restaurar o bem-estar biopsicossocial do paciente.

A psicologia inserida no Hospital se constitui hoje como uma especialidade: a Psicologia Hospitalar. O que da o tom dessa especialidade é muito mais a doença da qual o paciente sofre que sua própria condição de doente. A designação informal dos psicólogos de acordo com as clínicas em que estão inseridos, testemunha o cunho de sua especialidade: psicólogo do cólon, do fígado, da cabeça e pescoço, do transplante renal etc. O despedaçamento do paciente, próprio da especialização da medicina, se mostra ali onde poderíamos supor que este teria lugar como sujeito. A doença da qual sofre se sobrepõe a sua própria historia, determinando sua personalidade e suas perspectivas de futuro.

Os pacientes que procuram a atenção do hospital das clínicas o fazem sustentados na idéia de que ali, apesar das filas de espera infindáveis, do tempo exíguo das consultas, da falta de medicação, etc, ainda assim, receberão o melhor tratamento. Para muitos, conseguir uma vaga nos serviços de triagem das Clínicas é a ultima esperança na sua peregrinação nem sempre em busca da cura, mas principalmente de um diagnóstico, de alguém que saiba do que ele sofre. É muito comum ouvir dos pacientes que se ali não conseguirem dar-lhes um diagnóstico e um tratamento, então em nenhum outro lugar isso poderá ser feito.

Esses testemunhos nos inspiram a considerar que o HC funcione como uma das referências em nossa sociedade, um significante mestre, S1, da saúde, e o que se produz no interior de seus muros tem um impacto considerável na constituição de uma concepção de vida normal e sadia. Nesses termos, poderíamos dizer que o HC sustenta um suposto saber sobre o bem estar biopsicossocial dos indivíduos o que parece sustentar uma transferência prévia a essa Instituição tanto por parte dos pacientes como dos profissionais que o procuram.

 

Os destinos da transferência no hospital

A possibilidade de intervenção junto à equipe médica surgiu em minha prática em hospital geral a partir de um pedido do médico-chefe da equipe que se ocupa de pacientes com Doenças Inflamatórias intestinais. Ele observou que algo da relação dos pacientes com suas mães interfere consideravelmente nos resultados do tratamento clínico e cirúrgico. Solicitou-me que fizesse uma pesquisa com esses pacientes para entender o que acontecia com eles, pois, embora se saiba que os denominados fatores emocionais possam modular as manifestações clínicas de diversas doenças, no seu entender havia algo estranho com esses pacientes.

Reconheci nesse "estranho" observado, o retorno do gozo, banido pelo discurso médico-científico, sobre o corpo, fazendo enigma.

Minha proposta de uma pesquisa psicanalítica frustrou de certa maneira os objetivos científicos. Os principais meios de difusão do conhecimento em medicina não aceitariam publicar os resultados do trabalho já que nosso método de investigação não obedece as regras da produção de conhecimento cientificamente comprovadas e nossos resultados não poderão ser universalizados.

Segundo Mattos (2003), a presença da psicanálise nas instituições, embora amplie sua aplicação, faz com os psicanalistas se arrisquem em situações não tão favoráveis e sobretudo requer que eles exponham publicamente aquilo que de sua experiência no caso a caso , fazendo advir o que pode haver de mais singular em um sujeito, seria útil em uma escala coletiva (Mattos, 2003). Sabemos com Freud que o método psicanalítico encerra uma relação indissociável entre investigação e tratamento e que há efeitos de verdade que são produzidos a partir da aplicação desse método. Entretanto, essa verdade só pode ser recolhida no particular de cada experiência. Como conseqüência, a aplicação do método psicanalítico engendra um universal não-todo.

Como um universal que é não-todo pode responder a demanda da medicina moderna?

A própria concepção de saber para a psicanálise coloca o analista numa posição diametralmente oposta a do médico. Ao passar a palavra à histérica, "uma fingidora", permitindo que ela fale desse corpo que não se dobra às leis do organismo, Freud rompe com o discurso da medicina moderna. O saber que pode curar é produzido pelo próprio paciente. Freud preserva a todo custo a função clínica do médico, própria da medicina clássica, que perde sua força na medicina moderna.

Lacan em seu texto de 1966, "O lugar da psicanálise na medicina", aborda a transformação do lugar do médico operada pelo discurso da ciência a partir de duas balizas fundamentais: a resposta à demanda do paciente e o estatuto do corpo. Ele adverte o médico do risco que corre ao abdicar de sua função clínica em prol dos avanços tecnobiocientíficos, pois perderá seu lugar privilegiado de organizador dentro das mais diversas especialidades e áreas científicas, passando a ter sua função regulada de fora.

O conceito de Medicina Baseada em Evidência (MBE) que orienta cada vez mais a produção do conhecimento em medicina dá testemunho das palavras de Lacan.

Esse novo paradigma, surgido no início dos anos noventa com a finalidade de diminuir a ênfase dada à intuição, à experiência clínica não-sistemática e às justificativas fisiopatológicas na tomada de decisões médicas, é o produto do que se tem chamado de domínios tecnobiocientíficos (Castiel, 1999). A associação à bioestatística e à informática médica compõe finalmente o tripé que sustenta a MBE. A meta a ser atingida é a produção de um raciocínio que suplante a experiência clínica de cada médico e seus potenciais vieses, ou seja, os efeitos da subjetividade do médico, e ofereça aos doentes o que possa comprovadamente haver de mais novo e mais confiável em termos de terapêutica.

Sacket (1997) propõe uma hierarquia dos tipos de estudos válidos como fornecedores de evidências. Em primeiro lugar encontram-se as meta-análises dos estudos randomizados controlados, tendo o maior peso como método de obtenção de evidências. Em segundo lugar deve-se basear em ao menos um estudo randomizado-controlado. A elaboração do desenho desse tipo de estudo conta com estratégias como o duplo ou o triplo cego, que visam minimizar a subjetividade, especialmente os efeitos transferenciais e contra-transferênciais que possam surgir do encontro do médico com seu paciente e também do interesse particular do médico nos resultados da pesquisa. Em terceiro lugar estão os estudos controlado sem randomização. Em quarto e quinto lugar nessa escala de evidência aparecem a referência à pelo menos um estudo quase experimental, e aos estudos não experimentais, descritivos, comparativos, respectivamente. Em último lugar e com o menor valor de evidência, estão os relatórios de peritos e a opinião de autoridades.

Vemos que na tentativa de excluir desses estudos os vieses operados pela subjetividade tanto do médico quanto do paciente, ou seja, eliminando o efeito transferencial que Freud elevou a dignidade de conceito operante na clínica, o saber do mestre é relegado ao último plano. È verdade que para se chegar aos estudos que permitem as meta-análises são necessários os passos anteriores. Elas são em última instância, o resultado da observação clínica, singular de cada médico. Essa inversão de valores engendra a ditadura do universal, ou como é chamada, a ditadura das meta-análises. Na medida em que o resultado desses estudos orientam atualmente as políticas de saúde no que concerne o investimento de verbas nos procedimentos terapêuticos, e medicamentos mais eficazes para cada doença, o médico se vê limitado em sua prática clínica, pois no caso a caso, diante da exceção, só pode prescrever o que é consenso, seja por falta de subsídios financeiros, ou por medo dos tribunais.

Está aí a nova configuração da relação médico-paciente. Se antes, como postulou Clavrel (1978), o discurso do doente era desacreditado por que o único discurso sobre a doença era o do médico, o resto era literatura, hoje o único discurso sobre a doença é a literatura sustentada pela MBE.

Para Lacan (1966/2001), essa mudança em relação ao médico e aos que se endereçam a ele, inaugura um novo direito do homem a saúde. Surge ai, no lugar daquele que vinha procurar um saber sobre seu sofrimento, o sujeito do direito que vem pedir ao médico o "seu ticket de benefício", cujo objetivo é preciso e imediato.

Podemos constatar esse pedido no dia-a-dia de nossa prática em hospital geral público. A demanda de cura é seguida comumente do requerimento de laudos para auxílio doença, aposentadoria por invalidez, afastamentos, direito a vale-transporte, a descontos especiais para portadores de algumas doenças como o câncer etc. Freud observava, já em 1918, que talvez as pessoas menos abastadas estariam menos disponível a abrir mão de suas neuroses visto que a doença dar-lhes-iam um direito a mais à ajuda social. Não acredito que se trate de uma crítica de Freud as políticas assistenciais, mas o que ele parece querer ressaltar é a vertente de satisfação da doença que subjaz a essa demanda.

Sabemos com Lacan que ao abordar o médico não é apenas a cura que o paciente espera.

"Ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente, o que é totalmente diferente, pois isto pode implicar que ele está totalmente preso à idéia de conservá-la. Ele vem às vezes nos pedir para autenticá-lo como doente. Em muitos outros casos ele vem pedir, do modo mais manifesto, que vocês o preservem em sua doença, que o tratem da maneira que lhe convém, ou seja, aquela que lhe permitirá continuar a ser um doente bem instalado em sua doença". (Lacan, 1966/2001: 10).

É na medida em que o médico se propõe a responder a esse pedido objetivamente, com a rapidez e precisão esperada, que alguma coisa fica fora do campo do que pode ser passível de transformação pela ação terapêutica. Ao ignorar a dimensão do desejo que a demanda veicula, o médico está condenado a ficar apenas com o corpo máquina, cadáver, sobre o qual só se pode agir como mecânico. Foucault (1980) nos diz que o corpo precisa ser tomado como morto para que a clínica se estabeleça. Somente um corpo morto pode ser previsto, controlado e responder aos protocolos de pesquisa, aos programas preventivos, educativos etc. O corpo habitado pelo gozo atrapalha o cientista. Um exemplo interessante a esse respeito é o comentário dito jocoso de um dos membros da equipe médica sobre seus pacientes. Se houvesse um botão que desligasse a "cabeça" de seus pacientes ele acredita que teria sucesso em todos os tratamentos.

Lacan (1966) chamará de falha epistemo-somática o efeito da ciência sobre a relação da medicina com o corpo. Como nos diz Marcos André Vieira (2000:4) é a falha epistemo-somática que indica o "abismo intransponível entre o corpo como idéia, como imagem e o corpo como gozo"(Vieira, 2000: 4). O que é banido pela ciência do corpo retorna como sintoma, pois no corpo que o paciente oferece ao médico como objeto de investigação coexistem prazer e dor (Lacan, 1996).

Justamente por ignorar a dimensão do desejo presente na demanda e o gozo incrustrado no corpo, a cura é inacessível à ação terapêutica da medicina moderna. Quanto mais o médico responde a demanda do paciente com os objetos que a tecnologia cientifica coloca a sua disposição, mais sintomas aparecem. A resposta à demanda pura e simplesmente é o corolário da cronificação da doença e do doente.

Entretanto é justamente o fato da ciência operar uma falha "epistemo-somática" (Lacan, 1966) sobre o sujeito que o gozo pode retornar interrogando-a. E dessa maneira que escuto o pedido que me foi feito. Algo que não pode ser computado nas pesquisas, que não pode ser ouvido retorna atrapalhando o resultado esperado.

Ao sustentar minha proposta de intervenção clínica aposto na possibilidade de que no lugar dos pacientes que me são encaminhados advenha um sujeito que seja capaz de circunscrever algo de seu modo de gozo pela palavra, sem precisar arriscar a própria vida para dar conta do impossível de dizer. É pelo significante que se chega a esse resto, que se toca o real, nos diz Marcos André Viera (2000: 51). Se a psicanálise lhe abre este caminho, suportando junto com ele o não-saber sobre o gozo, a medicina, por sua vez, busca uma comprovação, uma evidência.

Segundo Vieira (2000) "o psicanalista, não tem como demonstrar a existência do desejo e do gozo, pois eles, em um certo sentido, não existem. Ele tem muito a fazer em uma instituição para manter viva a falha epistemo-somática". Contudo, não tem muitos elementos de resposta a estes profissionais. Resta-nos relançar esse resto que sobra das intervenções médicas à categoria de questão, e apostar que o sujeito trabalhe.

Que a psicanálise tem encontrado um campo fértil para suas pesquisas e intervenções junto à medicina é inegável. Também a medicina pode se beneficiar ao associar-se ao trabalho de psicanalistas. Não se trata de estar no hospital para negar a ciência, muito menos para responder com um saber, o psicanalítico no caso, aquilo que escapa dos domínios da medicina. Lacan (1966) precisa muito bem o lugar da psicanálise na medicina: Ele é marginal, pois, a medicina considera a psicanálise uma espécie de terapêutica auxiliar e exterior. E extraterritorial, por que, segundo ele, os próprios analistas parecem ter suas razões para se manterem assim. Portanto, é necessário que preservemos nosso lugar de extimidade dentro do hospital, para mantermos bem viva a falha "epistemo-somática" e fazer advir o sujeito do inconsciente.

 

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1 Este trabalho foi desenvolvido a partir de discussões junto ao Núcleo de Pesquisa sobre o Corpo do CLIN-a sobre a prática da psicanálise aplicada em hospital geral, tendo por base o trabalho da autora no Serviço de Coloproctologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.