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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
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An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
A creche atravessada pela Psicanálise
Daniela Waldman Teperman
Psicanalista, mestre pelo Departamento de Psicologia Escolar do IPUSP, coordenadora da Creche Central da USP.
Na clínica com bebês, a prevenção é uma demanda constante, levando psicanalistas a discutir, fundamentar, traçar possibilidades e impossibilidades. A prevenção é uma demanda advinda do corpo social, supõe um ideal e é passível de ser respondida por outras disciplinas nas quais é possível prever, oferecer "garantias" - a medicina sendo o corolário dessas possibilidades. No campo psicanalítico, a discussão é longa, remete a Freud quando este postulou uma possível psicoprofilaxia das neuroses, remete aos princípios psicanalíticos e ao posicionamento específico dos psicanalistas diante deste contexto. Sem aprofundar-nos nestas questões, retomamos a definição de prevenção mais coerente com a clínica e a teoria psicanalítica que pudemos encontrar. Indagada sobre como os psicanalistas poderiam ouvir a palavra "prevenção", Marie-Christine Laznik (1997) responde: "...como os profissionais poderiam então chamar uma intervenção que, situando-se cedo na vida da criança, possibilitando sua constituição subjetiva anteriormente dificultada ou inexistente – como é o caso das crianças com sinais precoces de isolamento autístico – senão de prevenção?". Laznik define prevenção como o diagnóstico precoce seguido da respectiva intervenção. Podemos dizer que fazemos prevenção em psicanálise ao detectar precocemente sinais – e somente na presença destes - de risco para a constituição psíquica do bebê e encaminhá-lo e à sua família a um serviço voltado ao estabelecimento ou restabelecimento do laço do bebê com o Outro Primordial.
Agora, como pensar o papel preventivo da creche, instituição educativa que recebe bebês desde os primeiros meses de vida? A creche desempenha seu papel preventivo ao detectar precocemente transtornos na constituição subjetiva do bebê e realizar o encaminhamento para tratamento. Mas, se encerraria aqui o papel preventivo da creche? Estaria encerrado também o papel do psicanalista que atua nesta instituição? Situando a questão de uma outra maneira: quais os efeitos para um bebê cuja constituição subjetiva está em risco da entrada e freqüência em uma instituição educativa como a creche? Qual o olhar do educador para estas questões? O que a creche pode fazer por estes bebês e suas famílias – mesmo que o tratamento psicanalítico esteja garantido? Que aspectos do saber psicanalítico podem contribuir para a atuação do educador, permitindo-lhe fundamentar um saber/uma ação intuitiva?
A creche, enquanto instituição educativa – não mais assistencialista, embora às vezes nos deparemos com seqüelas desta origem – reserva um lugar específico aos bebês. Nesta instituição o olhar está voltado para as relações íntimas entre cuidar e educar e para a oferta de condições para o estabelecimento da identidade e da autonomia da criança. Como o discurso psicanalítico lê e encaminha estas questões? Como bebês com transtornos podem ser capturados por estes aspectos do discurso pedagógico?
É possível "lermos" o lugar que uma instituição confere aos bebês ao observarmos a organização da rotina, a proporção bebês/educador, a estruturação do espaço, o processo de adaptação dos bebês e suas famílias, a formação dos educadores. Estes elementos permitem vislumbrar como cada instituição específica articula cuidar/educar, singular/coletivo. Na Creche Central da USP estes dois pares aparecem equilibrados: cuidar e educar, singular e coletivo são contemplados em uma rotina flexível, em um número adequado de educadores, em um espaço físico adequado e maleável, configurando a instituição como ambiente facilitador do desenvolvimento e da constituição subjetiva dos bebês.
Vale destacar que na Creche Central da USP, além da supervisão do trabalho pedagógico há um espaço reservado para a reflexão sobre a prática dos educadores e seu papel junto aos bebês e suas famílias, espaço coordenado por um psicanalista.
Vanderveken afirma que uma ‘intuição balizada’ repousa sobre uma ampla base de conhecimentos. No caso dos educadores da creche, podemos dizer que seu saber/ação está balizado, por um lado pelo conhecimento das necessidades do bebê ao ingressar em uma instituição educativa, e, por outro, agora pensando nos casos específicos dos bebês com transtornos em sua constituição subjetiva, por conhecimentos advindos do discurso psicanalítico que permitem configurar um olhar específico. Trata-se de um discurso diferente do pedagógico, já que não-todo, no qual não se procede a uma orientação mas a uma modulação do saber, possibilitando a articulação entre o singular e o coletivo, permitindo que se implemente uma ação orientada por uma leitura de cada bebê naquilo que nos oferece como questão. Os educadores dispõem de um saber sobre como atender os bebês, saber que é posto à prova e ressignificado a cada novo bebê que recebem e que é desafiado por aqueles bebês que não respondem conforme o esperado.
Passo a relatar brevemente a entrada de dois bebês com importantes questões no que diz respeito à constituição subjetiva e a ilustrar – também brevemente – alguns efeitos observados nos educadores, na creche e nos próprios bebês.
Sandra - uma bonequinha que não come
Durante a entrevista a mãe de Sandra – 12 meses - descreve inúmeras dificuldades desde o nascimento da filha: custava a ganhar peso, aos 4 meses parou de ganhar peso e aos 6 parou de comer. Apresenta-se, de fato, muito abaixo do esperado em termos de peso e altura. Sandra é tão pequena que não aparenta um bebê de 1 ano, engatinha mas ainda não anda. Chama a atenção como fica agarrada ao corpo da mãe. A mãe refere dificuldades importantes em relação à própria alimentação e descreve um cotidiano difícil ao lado da filha.
Os médicos reviraram Sandra em busca da etiologia do quadro que apresenta mas não encontraram nenhuma causa orgânica para o transtorno alimentar que apresenta. Sugeriram a entrada na creche apostando que o convívio em um outro ambiente, com outras crianças poderia favorecer sua alimentação e seu desenvolvimento. Esta indicação da equipe médica foi fundamental, não somente pelos efeitos na alimentação mas justamente pela possibilidade de a creche atuar como um terceiro nesta dupla mãe/bebê com sérias dificuldades que ultrapassam a alimentação, traduzindo-se não apenas em um quadro de atraso de desenvolvimento mas em falhas na constituição subjetiva de Sandra, falhas no laço com o Outro.
Antes da entrada de Sandra na creche, conversei com os educadores sobre as questões desta pequena em relação à alimentação e a orientação foi que lhe oferecêssemos os alimentos sem insistir, deixando que ela os explorasse, manuseasse ou recusasse. Avaliei que era importante oferecer outras possibilidades em relação à experiência de alimentar-se para ela, nas quais ela pudesse saborear os alimentos, pudesse construir um registro tão importante como o de fome e saciedade, alternância entre presença e ausência, elementos fundamentais para que fosse construído um espaço entre elas: este bebê que recusava a mãe ao mesmo tempo em que grudava nela como um carrapato.
As intervenções efetuadas na creche com Sandra e sua família foram orientadas por uma leitura psicanalítica, mas não se tratava de oferecer um tratamento psicanalítico na instituição. Contudo, dadas as dificuldades trazidas pela mãe e o quadro apresentado por Sandra, encaminhei-as para o Núcleo de Intervenção Precoce do Lugar de Vida, onde vêm sendo atendidas semanalmente desde então.
Passados poucos dias Sandra passou a alimentar-se bem na creche embora em casa as dificuldades alimentares persistissem. Na creche, rapidamente o olhar e a angustia dos educadores deslocaram-se da questão alimentar para o desafio de construir uma relação de proximidade com ela.
Inicialmente a grande questão dos educadores era como intervir com Sandra, que era muito suscetível, irritadiça, e grudava no colo de qualquer educador não mostrando diferencia-los. O que primeiramente foi visto como uma característica positiva – não estranhar, aceitar qualquer adulto – pôde depois ser revisto e lido como dificuldade de diferenciar os adultos e estabelecer um vínculo. Muitas vezes, os educadores observavam que ela não se acalmava no colo, precisando ficar sozinha para acalmar-se. Nesta época pensamos o que significava para ela passar o dia em um ambiente coletivo, com demandas das crianças e dos adultos do berçário. Assim, equilibrar momentos de investimento na relação, trocas e jogos com Sandra com outros em que permanecesse só, era importante para que pudesse se beneficiar e suportar estar em um ambiente coletivo como a creche. Na realidade, de uma forma geral, esta é uma preocupação que temos com todos os bebês, mas que aqui se acentuava.
No início Sandra engatinhava pelo pátio com liberdade e desenvoltura, no entanto fazia isso olhando apenas para o chão. Um comportamento que, do ponto de vista pedagógico, poderia ser visto como uma atitude de autonomia - e inicialmente assim foi lido pelos educadores - pôde ser revisto e significado de uma outra maneira. Não estranhar e circular olhando apenas para o chão no caso de Sandra revelava uma atitude de desconexão e alheamento.
Com o passar do tempo, Sandra que não olhava ou voltava a cabeça quando a chamávamos, passou a atender pelo nome, olhar e acompanhar o adulto com os olhos. Em momentos pontuais começou a construir jogos com adultos ou crianças nos quais o prazer ficava evidenciado pelo sorriso e pela procura pela continuidade dos jogos (cadê achou, jogar bola,etc).
Embora fosse muito pequena e magra, ao chegar à creche ela destacava-se por estar sempre muito bem vestida e arrumada. O investimento da mãe na aparência, roupas, cabelos era evidente. Entre os adultos e crianças da creche este efeito "bonequinha" parece ter se multiplicado, outros educadores vinham carregá-la e visitá-la, as crianças maiores adoravam passear com ela de mãos dadas pelo pátio. No entanto, em meados do segundo semestre, notamos que Sandra não vinha mais tão arrumada, apontei isso para os educadores que observaram: talvez antes, como ela não comia, a mãe tinha que mostrar que cuidava bem dela de algum jeito, arrumá-la parecia cumprir esta função, parece que ela não precisa mais disso... Leitura interessante! Aparece aqui um saber sobre a importância da mãe se apresentar, se reconhecer e ser reconhecida como "boa".
A entrada de Sandra na creche permitiu-nos recolocar de forma delicada e afinada questões que os outros bebês nos apresentam, mas que neste caso apareceram de forma contundente, capturando os educadores. Foi preciso recolocar em questão idéias pré-concebidas sobre o amor idealizado das mães, sobre a rivalização com estas, procurando reafirmar a possibilidade de a creche autorizar a mãe como aquela que detém um saber privilegiado sobre o bebê, convidando-a a desdobrar este saber.
Raul – quando o educador pode antecipar um lugar para o bebê
A entrada de Raul na creche foi tumultuada pois nos organizamos para receber um bebê de um ano e ele aparentava, de uma forma geral, uns 4 meses: chorava muito, inconsolável, se contorcia, os educadores se alternavam em oferecer-lhe o colo procurando criar formas de acalmá-lo. Na hora do banho reagia como um recém-nascido, desorganizando-se completamente. Apresentava uma dificuldade alimentar importante - contraía todo o corpo no momento de engolir, não mastigava – e apresentava dificuldades motoras: mal sustentava a cabeça, tinha dificuldade em segurar brinquedos, não sentava; não olhava, parecia atravessar-nos sem nos ver, não sorria, era espástico.
A única informação que tínhamos a respeito do quadro apresentado por Raul era de que possuía atraso no desenvolvimento neuro-psicomotor transmitida à mãe pela neurologista. Entramos em contato com o pediatra e a neurologista que o acompanhavam para obter mais informações, no entanto, ao mesmo tempo, foi preciso ponderar com os educadores que a definição de um quadro, o tão esperado diagnóstico, não traria soluções imediatas às nossas dúvidas, era preciso experimentar, observar, fazer ofertas.
A primeira orientação que fiz às educadoras foi que tratassem Raul como um bebê pequeno, mesmo que tivesse já 1 ano de idade. Assim, a alimentação e os cuidados oferecidos foram os equivalentes aos de um bebê de 4 meses: sopinha, berço, mantas, colo, sol, carrinho, cadeirinha...
Diante da ausência de olhar em Raul e do quadro que este apresentava e diante da mãe que não problematizava o quadro apresentado pelo filho encaminhei-os ao Núcleo de Intervenção Precoce do Lugar de Vida.
O investimento dos educadores neste caso foi excepcional, assim como os resultados obtidos. Em pouco tempo os choros inconsoláveis diminuíram, dando lugar a um olhar estabelecido, balbucios, sorrisos, sustentação da cabeça. Atualmente quando nos aproximamos, ele já sorri, balbucia, convida para o contato. Os educadores relatam que ele chora quando eles se afastam e responde rapidamente à menor aproximação.
Aos poucos mudamos a alimentação de Raul introduzindo nova consistência e novos legumes. Fomos também abrindo mão da manta, dos cuidados específicos de bebê e passamos a usar almofadas ou a cadeirinha para sentá-lo. Ele respondeu bem a essas pequenas mudanças.
A mãe de Raul chegava e saía sempre correndo da creche, muito apressada. Os educadores se ressentiam: "ela nem perguntou como foi o dia dele", "ela não se preocupa". A rivalização, tão presente entre creche e mães aqui se acirrava. Com o passar do tempo, conforme nossa ansiedade diante das dificuldades de Raul foi diminuindo – e o choro também – a mãe pôde aproximar-se lentamente, mostrando que poderia formular algum saber sobre seu bebê (dando dicas de como gostava de ser banhado ou trocado) e procurando na creche algum suporte (pediu a receita da sopinha). Embora durante todo o tempo a orientação dada aos educadores fosse justamente incluir – não excluir – as formas desta mãe cuidar, acalmá-lo, isso não tinha sido possível. Sabemos dos riscos de tomar para nós um pequeno como detentores do saber e da verdade, excluindo os pais deste processo, assim como o saber familiar.
Nos dois casos descritos, as dificuldades dos bebês eram bastante evidentes e os pais estavam mais ou menos posicionados diante destas. A situação é bem mais complexa quando nem a família nem os médicos que acompanham a criança detectam dificuldades em seu desenvolvimento ou constituição psíquica. Nestes casos, como a creche – espaço não regido pelo discurso médico – pode realizar os encaminhamentos necessários: a partir de que demanda? Autorizada por quem? Quais os efeitos para a família quando este olhar parte da creche? Questões importantes... mas que ficam para outra ocasião.
Para concluir:
Cada bebê que entra na creche traz novas questões ao grupo de educadores, questões que dada a forma como nos estruturamos para receber bebês e dada nossa compreensão deste processo, são rapidamente solucionadas. Mas há bebês que promovem verdadeiras revoluções no berçário. Bebês como estes que descrevi, para os quais o saber que os educadores dispõem mostra-se insuficiente, bebês que remetem à impotência mas que também podem levá-los a pensar que "nem tudo é o que parece" (o exemplo da confusão entre a tão almejada autonomia e um quadro de alheamento me parece contundente neste sentido) e que é preciso inventar, criar intervenções específicas.
Se a creche como instituição é um espaço privilegiado para a prevenção como descrevi no início deste trabalho (diagnóstico e intervenção precoces), também permite que, através de uma intuição "psicanaliticamente balizada" os educadores possam promover condições para a constituição subjetiva antes impossibilitada, e que a creche possa ainda funcionar como um terceiro para as famílias. Estes bebês que desestabilizam os educadores e a creche como um todo, ao não chegarem com receitas e instruções levam-nos a ressignificar seu papel, levando às últimas conseqüências a impossibilidade de condutas homogeneizadas. Acredito que isto repercute na conduta dos educadores com todos os bebês, portanto, todos os bebês beneficiam-se de um "olhar prevenido" em relação à onipotência, a um saber todo, à construção de uma verdade única, olhar que achata as diferenças, as singularidades.
Referências bibliográficas:
VANDERVEKEN, Y. Intervention et acte. Les Feuillets du Courtil. N. 6, fevereiro, Tournai, p. 91-8. (tradução de Maria Cristina Machado Kupfer).