5A creche atravessada pela PsicanáliseA criança e o adolescente na contemporaneidade: entre o declínio da família e a insuficiência da instituição escolar author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Sobre o tratamento possível do autismo

 

 

Elisa Carvalho de Oliveira

Psicanalista, mestranda do programa de Pós- Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ

 

 

Tomando como referência principal o texto de Lacan: "Conferência em Genebra sobre o sintoma" (LACAN, 1975), propomos, neste trabalho, articular algumas questões que consideramos fundamentais para a abordagem do autismo.

Com objetivo de melhor situarmos as referências nas quais se baseia o presente trabalho, passamos à enumeração dos seguintes pontos: 1) Sobre a linguagem; 2) Acerca do autismo e 3) Um fragmento clínico.

 

1) Sobre a linguagem

Em uma passagem do texto sobre o sintoma, Lacan faz o seguinte questionamento: "O que são os sonhos senão sonhos relatados?" (LACAN, 1975, p.124). Dessa forma, ele ressalta a definição de Freud na Traumdeutung (FREUD, 1900/1975), de que é somente a partir do relato, ou seja, apenas em função da articulação da fala do sujeito, que se torna possível a interpretação e, portanto, a apreensão de algo da ordem do sentido do sonho. Nessa via, é precisamente sobre o material do sonho que Freud trabalha. Assim, ao proceder a uma interpretação, o analista deve se ater à freqüência, à repetição e ao peso dado a certas palavras, na medida em que é o relato do sonho, como matéria verbal, que serve de base para a interpretação. Na psicopatologia da vida cotidiana, diz Lacan, acontece o mesmo. Somente quando o sujeito se dá conta do lapso, ou do ato falho, é que se faz possível algo da ordem de uma interpretação. "O exemplo maior é dado pelo chiste" (LACAN, 1975, p.13), no qual a qualidade e o sentimento de satisfação demonstrado pelo sujeito, e nisto Freud insiste, procede essencialmente do material lingüístico.

Percorrendo nessa linha os primeiros textos de Freud que tratam do sonho, do ato falho e do chiste, destacamos um ponto que se faz marcante ao longo desses livros em termos da concepção de Freud com relação à palavra. Desde sempre, para Freud, longe de terem um sentido em si mesmas, as palavras são mais propriamente o objeto através do qual "se busca o caminho para abordar o inconsciente" (Lacan, 1966, p.199).

Em seu ensino, Lacan substitui a palavra mot pela palavra signifiant. O significante, por definição, é algo que se presta ao equívoco, quer dizer, remete a várias significações possíveis. É justamente essa característica do significante que promove, na fala do sujeito, uma abertura para uma pluralidade de sentidos, favorecendo, assim, a passagem do inconsciente no discurso. Nesse sentido, Lacan vai dizer que nenhuma interpretação deve ser teórica, ou sugestiva, quer dizer, imperativa. Ela deve ser equívoca, pois a interpretação não é para ser compreendida, mas para "provocar ondas" (Lacan, 1975, p.16).

O inconsciente nos fala por meio de suas formações, a partir da articulação significante que surge na fala do sujeito. Assim, longe de ser um ajuntamento de significantes, o inconsciente tem uma estruturação precisa. Dessa forma, Lacan afirma que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem" (1975, p. 13). Ao articular essa frase que se constitui em um dos pressupostos básicos de seu ensino, ele diz que o faz, no entanto, com uma reserva: o que criou a estrutura é a maneira pela qual "a linguagem emerge de início em um ser humano" (Lacan, 1975, p.13).

Tal passagem, entretanto, nos aponta uma questão, uma vez que nos perguntamos a que apontaria o termo "de início" (au depárt) a que Lacan se refere quando fala sobre a linguagem. Seguindo o texto da conferência em Genebra, ressaltamos que a linguagem sem nenhuma existência teórica vai intervir sempre segundo a forma de uma palavra forjada por Lacan, a saber, lalangue.

Se os analistas sustentam a existência de um inconsciente, conforme Lacan assinala, isto é, fundado sobre a experiência, esta, desde a sua origem (e este termo retorna neste ponto no texto), tem uma relação com lalangue. Segundo Lacan, a lalangue merece ser chamada a justo título de materna, já que é pela mãe que a criança, pode-se dizer, a recebe. Assim, é importante destacar que a criança não a aprende, ela a recebe.

Contudo, desde o início a linguagem implica uma espécie de sensibilidade. É surpreendente constatar como uma criança pequena pode vir a fazer uso de palavras como "talvez" ou "todavia", antes mesmo de ser capaz de construir verdadeiramente uma frase. Certamente ela as escutou, mas a compreensão de seu sentido pela criança é algo que merece nossa atenção. De acordo com Lacan, isso prova que há algo como uma peneira através da qual a água da linguagem, ao atravessá-la, chega a deixar alguns resíduos com os quais, necessariamente, o sujeito terá que se haver.

É certamente do texto da experiência cotidiana da análise, que algo voltará a surgir nos sonhos, em toda a sorte de formas de dizer, em função da maneira pela qual a lalangue foi não só falada, mas também escutada por cada um em sua particularidade.

O homem pensa com a ajuda de palavras. E é no encontro destas com seu corpo que algo se esboça. Ou seja, ali se situa o sentido. Assim, ressaltamos a pergunta formulada por Lacan: "Se não existissem palavras do que poderia o homem testemunhar?" (Lacan, 1975, p.125). Esse ponto nos leva à segunda parte deste trabalho, em que apresentamos uma questão acerca da possibilidade de situarmos algo da ordem de uma posição do autista na linguagem. O que nos faz, seguindo a trilha aberta por Lacan, perguntar se, mesmo antes de ter acesso a uma fala articulada em palavras, o autista poderia, em sua particularidade, algo testemunhar?

 

2) Acerca do autismo

Ao falar sobre o autismo na Conferência em Genebra, como resposta a alguns de seus interlocutores, Lacan faz determinadas pontuações, que, como foi dito anteriormente, se constituem em balizas importantes para abordarmos a questão sobre a possibilidade de um tratamento analítico.

Inicialmente, Lacan afirma que, como o nome indica, os autistas "escutam a si mesmos" (Lacan, 1975, p.134). Escutam muitas coisas, sendo que, em alguns casos, o fato de escutarem pode, inclusive, desembocar em uma alucinação. E nesse ponto, Lacan ressalta que a alucinação tem sempre um caráter mais ou menos vocal.

Seguindo o texto, destacamos como referência para a abordagem do autismo, neste trabalho, o ponto em que Lacan formula que nem todos os autistas escutam vozes, embora articulem muitas coisas. Nesse caso, trata-se de ver precisamente "de onde eles escutaram o que articulam" (Lacan, 1975, p. 134). Essa passagem, portanto, nos aponta para uma questão acerca da possibilidade de algo da ordem de uma alteridade se apresentar para o autista. Dissemos "algo da ordem", já que o lugar de onde os autistas escutaram o que articulam não está devidamente situado. Contudo, diz Lacan, seria necessário precisá-lo, o que se constitui em uma importante indicação em termos da Direção da cura.

Em um ponto seguinte, Lacan vai dizer que se trataria de saber por que há algo no autista ou no chamado esquizofrênico que se congela. "Mas não se pode dizer que não fala" (Lacan, 1975, p. 134). Segundo essa linha de raciocínio, tratar-se-ia, portanto, de fazer uma pergunta a respeito da ordem de que esta fala deriva. Uma fala que, inclusive, conforme foi apontado, não faz laço de comunicação com o Outro.

A seguir Lacan enuncia: "Que você (referindo-se ao interlocutor) tenha dificuldade para escutá-lo, para dar alcance ao que dizem, não impede que se trate, finalmente de personagens sobretudo verbosos" (Lacan, 1975, p. 134). Nessa passagem, Lacan aproxima diretamente o autismo e a psicose, sendo que não os iguala totalmente, deixando uma margem para abordarmos o autismo sem tomá-lo tão imediatamente no campo das psicoses.O que nos leva à questão da possibilidade de os autistas estarem presentes de alguma forma na linguagem.

Em uma outra passagem, Lacan aponta que o autista não dá provas de ter escutado o que alguém tem a dizer-lhe, uma vez que este se ocupa dele. Ressaltamos que tal marcação poderia vir a ser uma indicação para o lugar do analista na Direção da cura do autismo. Na medida em que, o "ocupar-se" do paciente poderia vir a se configurar em uma postura demasiado demandante por parte do analista e isso, como resposta, só geraria um agravamento da posição do autista.

Dessa forma, consideramos que o analista, avisado, deveria sustentar, ao longo do tratamento, um acolhimento das manifestações trazidas pelo paciente, uma escuta de suas articulações, para que viesse a surgir, em um determinado momento lógico, o que indica Lacan, ao enunciar que "finalmente, sem dúvida, há algo a dizer-lhes" (Lacan, 1975, p.134).

 

3) Um fragmento clínico

Neste ponto, trazemos o fragmento do caso clínico de uma criança, que contava com seis anos de idade no início de seu tratamento.

Ao longo das primeiras sessões, Íris apresentava uma constante movimentação, que consistia em andar por todos os espaços da casa onde se situava o consultório. Em determinados momentos, ela passava a pular com o corpo extremamente rígido, emitindo alguns sons, sem que fosse possível apreender o sentido.

No primeiro momento, Íris não falava nenhuma palavra articulada e não demonstrava nenhuma demanda, a não ser no momento em que tomava a mão do analista para, juntamente com a sua, abrir a porta da sala. Contudo, não se poderia dizer que seu olhar era totalmente indiferente, pois, se inadvertidamente seu olhar encontrava o do analista, em uma posição ativa, Íris desviava o seu olhar. O olhar do Outro contava para ela, muito embora não fosse possível suportá-lo.

Frente ao estado em que Íris se encontrava, havia algo que fazia uma escansão, ou seja, marcava uma diferença em seu movimento aparentemente contínuo. Era algo que chamava sua atenção, mantinha sua concentração e se repetia ao longo das sessões. Ao encontrar alguma reentrância na parede, ela se detinha e passava a retirar a tinta, fazendo com que surgisse um pequeno buraco. Com os fragmentos de tinta e cimento que ficavam em sua mão, fazia um movimento brusco com os dedos, que expulsavam estes pequenos objetos, de modo que eles caíssem no chão. Era marcante que, ao atirar esses mínimos objetos longe, Íris emitia um determinado som: "Aaah!".

Neste ponto, importa assinalar que, ao longo das sessões, uma pequena modificação nas atividades que Íris executava passou a ocorrer de alguma forma. Em determinada sessão, a paciente chegou a tomar alguns papéis que ficavam no armário do consultório e passou, a partir disso, a realizar a sua atividade retirando um pedaço de papel que era então, posteriormente jogado pela janela. Assim, algo de diferente surgiu, pois ela precisava fazer este trabalho com a massinha até que todo o bloco tivesse sido fragmentado, o que a fazia buscar outro em seguida.

A partir desse momento em que Íris não só anda pelos espaços e retira os pedaços de tinta das paredes, mas também se detém por algum tempo em torno dos fragmentos de papel, ocorre um determinado momento em que surge uma fala do analista endereçada a ela, apesar de outras palavras já terem sido ditas não só a ela mas, inclusive, em torno dela. É quando o analista diz a ela que talvez pudesse deixar algo para trabalhar na próxima sessão; se ela voltaria, será que precisava jogar tudo? Será que algo não poderia restar ali, no espaço de seu tratamento? Ou mesmo faltar, na execução de sua atividade?

Ao considerarmos essa fala como tendo alguma importância, isso se deu, logicamente, em função de seus efeito, pois neste momento, por uma primeira vez Íris olhou para o analista, diretamente, como se desse provas, de uma forma diferente , de que havia escutado.

Assim, em torno das articulações que passaram a se circunscrever no espaço do consultório ao longo das sessões, e como efeito mesmo do que passava a operar em seu tratamento, Íris olhou de forma diferente para o analista e chegou em determinada sessão a dirigir a este um chamado, um chamado com o nome do analista, o que poderíamos considerar que estaria na via de um apelo.

Na sessão a que nos referimos, Íris chegou para seu atendimento, e da escada que vai dar na sala do consultório, chamou o analista, muito surpreendentemente, pelo seu nome. Logo após esse momento, quando escutou o analista dizer: "Você me chamou?", Íris sorriu, o que não havia acontecido até então Isso apontou para a via de uma articulação de uma outra ordem, que envolveria, então, um certo laço com o Outro.

O apelo verbalizado, diz Lacan (1953), diferentemente do apelo mimetizado, que pode ser realizado por qualquer ser, é algo que envolve o Outro e implica, inclusive, a possibilidade de recusa. É algo que delimita uma outra posição para o sujeito, na medida em que é "a condição si-ne-qua-non para este aceder à realidade humana" (Lacan, 1953, p. 103).

Nesse ponto, recorremos ao texto: "Pequeno discurso aos psiquiatras" (LACAN, 1975), no qual, ao final de sua exposição, Lacan formula a pergunta: "Então, para que serve a linguagem?" (Lacan, 1975, p.17) Se ela não é feita para significar as coisas, expressamente, quer dizer, se esta não é a sua primeira destinação e nem tampouco o é a comunicação, é simples: a linguagem faz o sujeito. Desse modo, o resultado da linguagem é que alguma coisa chega ao sujeito, alguma coisa acontece, no Outro, quer dizer, sempre no Outro. Isso faz com que aquilo que se chama ser humano tenha como primeira experiência o seguinte: "ele percebe que acontecem coisas quando se fala" (Lacan, 1975, p.17).

Seguindo esta via, pontuamos as indicações de Lacan, em termos de que o autista se configura em um personagem sobretudo verboso, o que nos leva a considerar que, apesar de seu estado, ele está de alguma forma na linguagem. E a questão é justamente: de que forma? Na medida em que é possível que mesmo pontualmente, ele chegue a escutar algo e a partir disso chegue a realizar articulações que venham a sustentar sua posição. E que finalmente, não se possa dizer que não fala. Apesar das conseqüências de uma grave problemática em relação ao laço com o Outro, e que toca o impossível no sentido de fazer laço social, o que recolhemos da clínica com o autista, na particularidade de cada caso, é que uma aposta sustentada pelo desejo do analista tem efeitos, e que estes podem vir a promover uma abertura na via de um tratamento possível.

 

Referências bibliográficas:

FREUD, S. (1900). A Interpretação dos Sonhos. Edição Standart brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. V, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.

---------- (1901) A psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standart brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. VI, Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.

---------- (1905) O Chiste e sua relação com o Inconsciente Edição Standart brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

LACAN, J. (1953-54) O Seminário. Livro 1: Os escritos técnicos de Freud.Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1983.

---------- (1966) Da estrutura como intromistura de um pré-requisito de alteridade e um sujeito qualquer. In A Controvérsia Estruturalista. 1966. (p.198-212).

------------ (1975) Conferencia en Ginebra sobre el síntoma. Intervenciones y textos 2, 115-144. Buenos Aires: Manantial, 1988.

---------- (1975) Conférences et entretiens dans les universités nord-américaines. 5-61. Scilicet 6/7, Paris, Seuil, 1976.

---------- (1975) Pequeno discurso de Jacques Lacan aos psiquiatras. Dizer 10. Rio de Janeiro, 1994.