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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A criança e o adolescente na contemporaneidade: entre o declínio da família e a insuficiência da instituição escolar

 

 

Elizabeth dos Reis Sanada

Psicanalista. Educadora. Doutoranda e Mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP

 

 

O presente trabalho se propõe a discutir algumas das especificidades do discurso contemporâneo a fim de verificar de que modo vêm a influenciar na constituição da subjetividade e nas dificuldades enfrentadas por crianças e adolescentes, sobretudo, advindas da transferência de saber e poder, anteriormente sustentados pela família em relação aos filhos e hoje outorgados à escola.

No que diz respeito à família, poderíamos situar os primórdios do declínio de sua função já por volta do século XVIII, a partir do fortalecimento da burguesia. Momento que Kupfer (2004) descreve ao introduzir, através do livro Émile, de Rousseau, a figura do preceptor, como primeiro representante da transferência de função e da mudança de papéis entre a família e a escola.

No caso da instituição escolar, diríamos que o início de sua decadência se dá ao aceitar essa incumbência – impossível – de formar o indivíduo em sua completude, enfrentando a partir de então uma crise de identidade, sendo por vezes enredada por um discurso que enfatiza o caráter mercantilista em detrimento das leis e normas que antes serviam para arregimentar o sujeito intelectual, moral e subjetivamente.

Trata-se de uma dinâmica que a insere no quadro que Lajonquiére (1997) descreve como característico do atual espírito (psico) pedagógico hegemônico, isto é, a prevalência de ideais imaginários em relação aos ideais de ordem simbólica.

Segundo Lajonquiére, esta sobreposição se presentifica no "pedido de complementação narcísica daquele mesmo que o enuncia. Assim, o ideal, em vez de levar embutido um dever ser – uma dívida para com o passado dos homens e das matemáticas (próprio do ideal simbólico) – encena em si mesmo o dever de ser a metade que ao mandante lhe falta para ser de fato, lembrando Freud, o Ego-Ideal" (1997, p. 32).

Deparamo-nos, assim, com uma tentativa de fechamento que visa mascarar uma falta estrutural, revelando uma dinâmica que reflete o processo de subjetivação contemporâneo e uma marcante semelhança com um mecanismo perverso.

Corroborando esta perspectiva, Lajonquiére acrescenta que "o ideal imaginário veicula um saber mais parecido com a certeza; então aquele que recebe a injunção de ser, agora, não só sabe o que lhe estão pedindo senão também como é que se faz para ser. À vista disso, esse saber sobre o desejo passa a ser um saber de fato sabido e, portanto, o veiculado acaba se revelando não um desejo mas um voto de gozo" (1997, p. 32).

A dinâmica assim descrita nos remete a um âmbito mais abrangente, precisamente relacionado às questões advindas da contemporaneidade, assunto sobre o qual nos deteremos tendo como referência estudos de autores como Walter Benjamin, que apontam para a predominância da técnica como uma das características do perfil contemporâneo.

Esta prevalência desencadeia a formação daquilo que se denominou de "realidade autônoma", trazendo como conseqüência mais imediata a morte da tradição, a fragmentação das relações de trabalho, sociais e amorosas, fazendo emergir, em seu lugar, seres desconectados, sem raízes e sem perspectivas, processo que, em termos lacanianos, poderíamos nomear como um declínio do simbólico enodando as relações.

Temos, então, uma dinâmica que ora se apresenta caracterizada pelo insuflamento imaginário – como uma tentativa de dar consistência, ali onde esse simbólico rateia, exemplo que pode ser visto na profusão de imagens com a qual a contemporaneidade se encontra marcada –, ora retratando uma realidade imaterial, naturalizada. Realidade mórbida e narcisista que, por vezes, faz irromper o real, marcando o corpo "a ferro e a fogo", como no caso das tatuagens e utilização de piercing, tão comuns entre os adolescentes de hoje, ou ainda por meio do consumo de drogas, lícitas ou ilícitas, e da difusão da promiscuidade.

Associado ao declínio dessa lei maior, capaz de organizar a sociedade e os sujeitos, eis que surge algo que Zajdsznajder (1992) descreveu como conseqüência do afastamento da fundamentalidade, a saber, a perda das certezas e garantias com relação ao conhecimento humano, que são substituídas por incertezas, inseguranças e fraturas, autorizando o sujeito a viver de modo desimplicado e superficial, uma vez que a vida se apresenta mais variada, mas também, mais arriscada.

Perde-se ainda, segundo o autor, a centralidade, o que se traduz pela ausência de um eixo capaz de enodar as experiências, objetivos e a própria existência do ser humano, estando sobremaneira articulada com o conceito de origem. Em última instância, na contemporaneidade, o próprio sujeito deixa de ser o centro e, em seu lugar, não só objetos são introduzidos, como o próprio sujeito é elevado ao estatuto de objeto.

Além disso, ocorre um deslocamento no que concerne ao conceito de universalidade, não havendo mais um saber universal capaz de dizer do todo e de se sustentar como um paradigma.

No lugar da fundamentalidade, da centralidade e da universalidade, eis que surge a ciência como uma forma do discurso do mestre que se caracteriza por produzir um saber no real.

Nas palavras de Unterberger o que se promove a partir desse discurso é a coletivização de uma mesma maneira de gozar, "ali onde a lei não opera para pôr limites, propõem-se normas que funcionam como suplências da lei do sujeito articulado ao desejo" (1992, p. 64).

É neste sentido que os diversos saberes hoje disponíveis para dizer o sujeito, muitas vezes, acabam por colocá-lo no lugar de objeto, através do tecnicismo dos conceitos e procedimentos utilizados para tratá-lo, disseminando rótulos que o destituem de sua singularidade.

Segundo Freire, "os sujeitos contemporâneos sentem-se ou comportam-se como se estivessem irremediavelmente impossibilitados de desligarem-se de um mundo de imagens artificiais, modelado segundo interesses ditados pela sociedade de consumo" (1994, p. 136).

Impõe-se um novo ritmo, caracterizado, sobretudo, por uma nova forma de organizar o tempo – interno e externo. Perde-se o eixo da história, a tradição. E, com esta perda, surge uma nova visão de tempo onde o que importa é o presente, o aqui-agora. Transitoriedade é a palavra de ordem.

Assim, o tempo contemporâneo é marcado pelo instantaneísmo, pela brevidade e imediatismo que (des)estrutura as relações.

Trata-se de um processo que parece irreversível e que se manifesta principalmente acerca das relações amorosas e de trabalho (termo que também engloba as relações educacionais e escolares).

Em ambos os casos, o que ocorre é uma mudança de olhar e de significação. No amor, a questão que fica é a respeito de quem é este outro com quem se relaciona. Quanto ao trabalho, após a fratura, vem sobrepor-se aos conceitos de obrigação e vocação, uma certa dose de ludicidade e de não-seriedade.

Veremos que esta idéia se refere não só ao amor e ao trabalho como se encontra disseminada em todos os vetores do mundo contemporâneo, marcando uma peculiaridade no modo como o sujeito lida com a falta e com suas formas de gozo.

Como decorrência desta dialética, priorizam-se as noções de progresso, razão, produção e acúmulo de bens materiais. A ênfase e incentivo se encontram na capacidade de autocontrole e de auto-regulação.

Visto sob a perspectiva lacaniana, poderíamos dizer que o que impera no mundo contemporâneo é algo referido por Lacan (1972) como o discurso do capitalista.

Nas palavras de Tarrab, "trata-se de um discurso no qual um sujeito em sua falta de gozo estrutural, demanda ao saber científico a produção de um objeto capaz de um gozo que, sem conseqüências, venha a suturar sua castração, sua divisão, sua miséria..." (1992, p. 41).

Um discurso que, ilusoriamente, oferece a possibilidade de conjugação do sujeito com seu fantasma o que, em outras palavras, significa "vender" uma idéia de completude, a partir da aquisição de um determinado objeto ou serviço.

Sob a promessa de um gozo Outro, o sujeito se vê confrontado não mais com a falta estrutural, mas com aquela fabricada a partir de objetos que engendram necessidades no lugar de desejos – gadgets, para usar o termo lacaniano.

Neste sentido, Augusto coloca que "o resultado desse processo não é outro senão o crescimento contínuo do consumo e do lazer, tornados fins em si mesmos, a fragmentação da vida em conjunto de atos sem sentido, e a extrema solidão que persegue os homens, ainda que vivam em sociedade" (1992, p. 165). O imperativo hoje é consumir, na maioria das vezes, sem importar muito o quê, mas simplesmente consumir.

Entre crianças e adolescentes, esta nova realidade se representa na demanda por um pronto atendimento à suas solicitações de consumo, ancorada na incapacidade de vislumbrar uma perspectiva para o futuro, voltando seus esforços apenas para as atividades que respondam à suas expectativas mais imediatas.

Deste modo, o caráter lúdico e de não seriedade, de que falávamos há pouco, toca o âmbito escolar em sua totalidade.

Ao tentar atender à demanda do mercado e da família, a escola perde sua identidade, dando espaço para a constituição de um descompasso, uma vez que seus métodos não conseguem acompanhar o ritmo e o avanço tecnológico encontrados pelas crianças e adolescentes de hoje em seu meio.

Assim, forma-se um círculo vicioso onde a família se perde ao ir a busca de um outro saber capaz de lhe dar um filho ideal, passando a responsabilidade dessa construção utópica para a escola. Esta, ao se deparar com o engodo da empreitada e com sua insuficiência para realizá-la, delega sua autoridade ao orientador vocacional, ao psicólogo, ao fonoaudiólogo, entre outros, a fim de ver suprida sua falha, sendo justamente nesta ciranda, que o sujeito passa à condição de objeto.

Com o intuito de ilustrar brevemente esta situação, e caracterizar a inversão de papéis que acomete a ambos – crianças e adolescentes – nesta realidade, fazemos menção a três exemplos com os quais nos deparamos em nossa clínica.

O primeiro caso é o de um adolescente de 14 anos que, sob tratamento analítico, questiona: "para que estudar se o chefe do tráfico na favela ganha mais que o cara que tem um diploma de faculdade?"

Neste caso, o cara com diploma é seu pai, alguém que com autoritarismo lhe diz para não fumar nem beber, mas que quase sofreu um infarto devido ao cigarro e ao álcool.

O chefe do tráfico é seu amigo, alguém com quem pode contar nas horas difíceis e que, embora no crime, tem leis claramente estabelecidas. Se essas leis e regras são infringidas o castigo advém imediatamente.

Já em seu meio familiar o cenário é bem diferente. Os pais, separados, vivem um mundo de mentiras, abarcando desde o motivo da própria separação até o grau de liberdade que é dado ao filho, cuja mãe acoberta os atos ilícitos por ele cometidos, desacatando as intervenções do pai.

Outra paciente, com 12 anos, de classe média alta, envolvida entre os diversos jogos multimídias de que dispõe, TV a cabo, viagens, entre outros privilégios, queixa-se de não ter tempo para estudar. Não se importa em obter notas baixas, mesmo tendo auxílio de professores particulares. E, o pior, desimplicada, a menina conclui: "não tem problema, a escola não repete mais!"

Filha de pais separados, mora com a mãe executiva, a qual pouco vê, sendo praticamente criada por empregadas.

Para espanto maior, uma das disciplinas para a qual a garota recebe reforço é História, matéria na qual a mãe se graduou e tornou-se mestre.

O terceiro caso é o de uma garota de cerca de 8 anos, matriculada precocemente na escola, numa série bem mais adiantada que a sua idade comportaria. A menina, acostumada até mesmo a bater na empregada quando esta não atendia as suas ordens, de repente, como que por um capricho, decide não mais freqüentar as aulas.

Chamados a conversar com a orientadora pedagógica, os pais – que já haviam sido alertados anteriormente acerca dos desvarios da filha no ambiente escolar – são encaminhados para atendimento psicológico.

Ao chegar para a entrevista, o pai se recusa a ver as dificuldades da filha, acusando a escola de ter fracassado na tarefa que lhe foi incumbida.

Após alguns encontros, sendo detectada a necessidade de um trabalho com os pais, eis que estes retiram a criança do tratamento, decididos a colocá-la numa outra escola e a matriculá-la em cursos de arte e natação como uma solução para o problema.

Assim, mais uma vez nos vemos diante de um quadro que podemos caracterizar como relativo a um declínio da imago paterna, algo que no primeiro caso começa pelo próprio lugar outorgado pela mãe ao pai do adolescente em questão.

Revela-se uma dinâmica na qual os valores são outros, ancorados em sua maioria sobre mecanismos perversos, onde a transgressão – embutida em atos ilícitos, na promiscuidade, na drogadição, no desrespeito à autoridade, na pirataria, entre outros – dá mostras de como saber e fazer gozar, substituindo os ideais de ordem simbólica e usurpando uma condição anteriormente referida ao Pai.

Como vemos no segundo caso, a dívida simbólica parece relegada a segundo plano, à medida que a mãe se divorcia de seu dever para com sua formação acadêmica e sua função de educar a filha, evocando para isto objetos e serviços que a substituam – como empregadas, professores particulares, etc –, tornando-se ela mesma um elemento de troca neste cenário consumista voltado para a produção de capital.

Sobretudo, no último recorte percebemos claramente a transferência de saber e autoridade da família em relação à instituição escolar e a busca por outros saberes que eximam os pais de sua responsabilidade no processo de formação da filha.

Desta forma, podemos concluir dizendo que, nestes casos, o que se dá é o entrelaçamento de dois tipos de mal-estar: um estrutural, descrito a partir da constituição psíquica do sujeito, e um contingente, relativo às mudanças estabelecidas na sociedade atual.

Na contemporaneidade, o próprio sujeito se aliena a uma promessa de gozo absoluto, oferecendo-se como corpo ao devoramento de um outro avassalador, caracterizado pela objetividade de um mundo governado pela tecnologia e pela ciência, cujo discurso promete – no futuro – evitar o mal-estar e o seu cânone maior que é a morte, mascarando-se, assim, cada vez mais a falta.

 

Referências bibliográficas:

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KUPFER, M. C. M. (2004). Tratar e educar crianças pouco normais. In Anais do IV Colóquio do LEPSI – Os adultos, seus saberes e a infância (p. 108-115). São Paulo, SP: Instituto de Psicologia e Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

LACAN, J. (1972). Del Discurso Psicoanalítico. (O. Arribas, trad.). Milán: Universitá degli Studi, via Festa del perdono.

TARRAB, M. (1992) ... Mírenlos Cómo Gozan!! In Sujeto, goce e Modernidad – Los fundamentos de la clínica. Buenos Aires: Atuel-Tya.

UNTERBERGER, M. (1992). Estatuto del "yo soy" em la toxicomania y el alcoholismo. In: Sinatra, E. S., Sillitii, D. & Tarrab, M. (comp.). In Sujeto, Goce y Modernidad III – De la monotonía a la diversidad. París: Atuel-Tya.

ZAJDSZNAJDER, L. (1992). Travessia do Pós-Moderno. Rio de Janeiro, RJ: Gryphus.