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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
On-line ISBN 978-85-60944-06-4
An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
Os aspectos constitucionais do bebê na constituição do sujeito
Erika Maria Parlato-Oliveira
Professora da UFMG. Doutoranda no Laboratoire des Sciences Cognitives et Psycholinguistique - EHESS - Paris/ Semiótica - PUC-SP.
Neste trabalho procuro destacar algumas das competências biológicas do bebê, principalmente os dados mais recentes descritos na literatura sobre a percepção auditiva, que possibilitam entender a comunicação primária entre a mãe e o seu bebê, desde antes do nascimento. Estes fenômenos são vistos aqui como complementares aos aspectos psíquicos que norteiam a relação mãe-bebê, considerados como imprescindíveis para a constituição do sujeito e para o desenvolvimento da linguagem.
Ao nos interessarmos pela díade mãe-bebê, torna-se interessante pensar quais as competências deste bebê, como agente participante nesta díade. Visto que, por muitos anos, o bebê foi visto como passivo e inábil e o feto como inerte; as pesquisas em ciências cognitivas vêm contribuir para elucidar as competências do bebê, principalmente no que se refere aos aspectos sensoriais, relacionados à audição, visão, olfato, gustação e tato.
Convém ressaltar os estudos sobre o período intra-uterino, como o trabalho de Boysson-Bardies (2003), que afirma que o bebê se familiariza com a língua materna e com suas características dinâmicas da voz em um processo de comunicação desde os últimos meses de vida intra-uterina. O que possibilita uma experienciação da língua materna e da voz da mãe, com suas diferentes entonações, de acordo com seus estados emocionais, em conjunto com outras percepções do corpo materno, considerando as alteraçoes hormonais, alimentares, de movimentos, que são captadas pelo feto, através também de outros sentidos, tais como o paladar, o olfato e o tato.
Nos últimos vinte anos, a equipe coordenada por Jacques Mehler, no « Laboratoire des Sciences Cognitives et Psycholinguistique de l’Ecole de Hautes Etudes de Sciences Sociales » (EHESS) de Paris vem realizando pesquisas com bebês. Um dos métodos utilizados1 é a «técnica de sucção não-nutritiva ». Este método consiste na observação da mudança de reação do bebê, a partir da premissa de que todo evento percebido como uma novidade induz o bebê a uma reação, que neste caso é vista a partir da mudança da taxa de sucção do bebê. Tal mudança é medida a partir de uma chupeta, que contém um captador de pressão ligado a um dispositivo de registro, que fornece dados sobre o nível de interesse do bebê a partir de diferentes estimulos verbais.
Tais experimentos permitiram constatar que o bebê, desde os primeiros dias de vida, é capaz de diferenciar a sua língua materna de outras línguas, bem como de distingüir entre duas línguas estrangeiras. De fato, o bebê apresenta uma extrema sensibilidade para a prosódia da língua, ou seja, para os traços supra-segmentais, que se referem ao ritmo, aos tons, à entonação da fala.
O bebê tambem é capaz, a partir de três dias de vida, de diferenciar fonemas próximos, mesmo que eles não pertençam à sua língua materna, tal habilidade irá desaparecendo aos poucos, conforme a exposição à língua, de tal forma que um adulto só é capaz de identificar os fonemas de sua própria língua materna. Ou seja, o bebê é capaz de diferenciar todos os fonemas de qualquer língua, mas a exposição a uma língua fará com que tal habilidade seja perdida em detrimento à aquisição de quais são os fonemas dintintivos em sua língua materna2. Tal habilidade tem sido bastante estudada nos casos de crianças bilíngues, nos quais os resultados mostram a considerável plasticidade do cérebro humano.
Estas capacidades permitem ao bebê captar os traços distintivos de sua língua materna, que permitirão, em um segundo momento, adquirir os demais níveis lingüísticos – morfológicos, sintáticos e semânticos –, que possibilitarão, por sua vez, a compreensão e a produção da língua.
Por outro lado, encontramos na fala das mães, o manhês, ou seja, « o dialeto de todas as mães do mundo, quando elas falam com seus bebês, no qual a voz é mais aguda e a entonação exagerada » (Dupoux e Mehler, 1990, p.221). Encontramos no manhês modificações prosódicas na fala da mãe, ou de qualquer pessoa, ao dirigir sua fala ao bebê, que são caracterizadas principalmente pela elevação da freqüência fundamental, pelo prolongamento das vogais, e pelas repetições das curvas melódicas. Estas características coincidem exatamente àquelas que o bebê tem competência para discriminar. Desta forma, há uma « sintonia » entre a produção vocal da mãe e a percepção auditiva do bebê.
Quando há a ausência de qualquer um destes fatores, a produção de manhês, pela mãe, ou a imcompetência do bebê para perceber acusticamente tal produção, como nos casos de surdez congênita, podem levar a dificuldades no estabelecimento do vínculo entre mãe e bebê, que produzem conseqüências na constituição do sujeito3 e conseqüentemente na aquisição da linguagem.
Considerando estes elementos, constitucionais e relacionais, como hipótese de trabalho, encontra-se em andamento uma pesquisa que investiga, através de vídeos familiares, a prosódia de mães com seus respectivos bebês, que tiveram posteriormente diagnóstico de autismo4, como um dos sinais essenciais na constituição da díade.
Nestes últimos anos a nossa percepção acerca dos bebês alterou-se sensivelmente, o que vem permitindo, cada vez mais, uma « liberdade » nas ações do bebê, que passaram a ser interpretadas e valorizadas como tendo sentido e intenção, como uma habilidade que o bebê possui para comunicar-se com a mãe. Mesmo o choro tem sido estudado, como uma forma de expressão dos estados fisicos e emocionais do bebê5.
Essa nova percepção encontra-se cada vez mais presente nos discursos maternos, em enunciados como :
- « Olha como hoje os bebês são mais espertos, enxergam, conhecem a voz da mãe! »
Essas produções são decorrentes da banalização das pesquisas científicas em revistas e programas de televisão destinados ao público leigo, que atribuem ao bebê capacidades sensoriais onde antes atribuíam uma total incapacidade.
O que mudou portanto, nos últimos anos, foi a nossa percepção sobre os bebês, e consequentemente o aumento de estudos interdisciplinares6. Estes estudos nos permitem compreender que antes mesmo de tornar-se sujeito, as habilidades do ser humano, em seus primeiros momentos, o capacitam a organizar-se e relacionar-se com o outro. Por vezes, desconsidera-se que a palavra relação pressupõe a implicação de dois seres, e não apenas um. Esta díade é composta por um ser constituído como sujeito, e portanto responsável, e um outro ser não constituído como sujeito, porém hábil e capaz de tornar-se sujeito mediado na relação.
O conhecimento sobre as capacidades perceptivas do bebê, contribuem para a clínica de bebês, na sua terepêutica e também em relação à prevenção, à medida que possibilita um olhar diferenciado sobre o bebê, complementar aos conhecimentos sobre os aspectos psíquicos envolvidos na relação mae-bebê.
Referências bibliográficas :
BOYSSON-BARDIES, B. Le langage, qu’est-ce que c’est ?. Odile Jacob. 2003.
BUSNEL, M.-C. A linguagem dos bebês. São Paulo: Escuta, 1997.
CYRULNIK, B. Os alimentos do afeto. São Paulo: Ática, 1995.
DUPOUX, E. & MEHLER, J. Nascer Humano. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.
GROZLEZIAT, C. Lés bébés et la musique. Paris: Érès, 1998.
JAKOBSON, R. Langage enfantin et aphasie. Paris: Flammarion. 1977.
LAZNIK, M-C. Rumo à palavra. São Paulo: Escuta, 1997.
LEBOVICI, S. "As interações precoces", in O bebê, a mãe e o psicanalista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
LOPES, E. C. , Parlato-Oliveira, E. e Stephanelli, N. "Análise acústica do choro", in Anais IV Encontro Nacional sobre o Bebê. Brasilia, 2002.
RAMUS, F & MEHLER, J. "Language indentification with supresegmental cues". Journal of acoustical society of America, 105 (1), 512-521. 1999.
RAMUS, F. Language discrimination by newborns: Teasing apart phonotactic, rhythmic, and intonational cues. Annual Review of Language Acquisition, 2, 85-115. 2002.
SPITZ, R. A. "A constituição do objeto libidinal", in O primeiro ano de vida. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
1 Recentemente, outras técnicas têm sido utilizadas, tais como a ressonância magnética ou a NIRS (near infra red spectroscopy), a fim de verificar as competências do bebê a partir da ativação das zonas corticais durante a percepção de estímulos sonoros lingüísticos.
2 Esta competência também já havia sido discutida por Roman Jakobson, em seu texto « Langage enfantin et aphasie ».
3 No sentido em que é atribuído pela Psicanálise lacaniana.
4 Esta é uma pesquisa que está sendo realizada em conjunto por Prof. Filippo Muratori (Neuropsiquiatra Infantil da Universidade de Pisa – Instituto Científico Stella Maris), Marie-Chritine Laznik (Psicanalista do Centre Alfred Binet /Pré-Aut - Paris) e Erika Parlato-Oliveira (PUC-SP – LSCP/EHESS/Paris).
5 Ver trabalho de Erika Cristina Lopes, Najara Stephanelli , Erika Parlato-Oliveira, intitulado « Análise acústica do choro » , apresentado no IV Encontro Nacional sobre o Bebê – Brasilia, 2002. Ver também em Cyrulnik, que afirma que os choros dos bebês não ocorrem ao acaso, mas sim, de forma estruturada e exprimem suas emoções.
6 Estes estudos provêm principalmente das seguintes disciplinas, Psicolingüística, Ciências Cognitivas, Psicologia do Desenvolvimento, Psicomotricidade, Psicanálise, Neurociências e Semiótica.