5Os aspectos constitucionais do bebê na constituição do sujeitoNome próprio, traço unário e autismo author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A transferência e o fracasso escolar

 

 

Fanoel Messias dos Santos

Especialização em Psicopedagogia e Aluno do LEPSI

 

 

O saber pedagógico tem, ao longo do tempo, concebido formas diferenciadas da prática educacional. As concepções Humanista, Liberal-Tradicional, Tecnicista e Reprodutivista permeadas pela Concepção Dialética da Educação tornam evidente o comprometimento da ação educativa com alguma perspectiva filosófica ou política, que consciente ou inconscientemente é assumido na prática da ação educativa.

A escola ocupa um espaço em que variados vetores exercem influências, dando à mesma a característica de uma instância de luta. Do fervor desse conflito espera-se uma resultante capital, a elevação cultural do sujeito e da sociedade. Reside basicamente nessa resultante a promessa que toda essa trama enseja. A apropriação dos conhecimentos acumulados pela humanidade deve ser o foco da atenção da prática escolar, pois, através dela o sujeito deixa para trás um estado e assume um outro que lhe permitirá, a priori, uma visão apurada e crítica na condução do seu destino e da sociedade, garantindo a esta sua permanência no presente e sua existência no futuro.

"Toda organização dos homens se baseia fundamentalmente na capacidade do homem de fazer promessas e mantê-las" (Arendt,1973 in Schilling, 2002,p.21). As questões de fracasso escolar estão intrinsecamente ligadas às questões de confiança nas promessas acenadas pela escola: "Estuda e terás uma vida melhor!" (Schilling, 2002, p.22). A confiança, que implica o depositar algo do sujeito desejante no domínio do outro, sustenta-se na promessa de uma conduta futura face à ‘falta’ presente.

À escola é conduzido o sujeito movido pelo desejo de outro e pelo desejo do outro. Esse desejo está ‘ligado’ ao saber que supostamente encontra-se contido na figura do professor. Remonta-se, assim, à relação edipiana, desta feita com a tríade professor/aluno/saber.

Tido como uma patologia recente, o fracasso escolar só pode surgir com a instauração da escolaridade obrigatória no fim do século XIX. Comenio, já no século XVII, postulava a sistematização do ensino afirmando a possibilidade e necessidade da educação de massa e a idéia de que "a ação educativa é capaz de moldar de maneira integral e completa o educando, ou melhor dizendo, de produzi-lo integralmente"(Mazzotti, 2002).

A pedagogia moderna, dentro desses parâmetros comenianos, promove a educação padronizada para todos os seguimentos sociais, com o objetivo de dar iguais oportunidades a todos. Porém, adverte De Césaris que "esta inclusão forçada" (2002, p.39) pode resultar em exclusão e violência institucional.

A educação vem assumindo um papel excludente do sujeito uma vez que a grande maioria dos indivíduos poucas vezes se viu incluída e considerada capaz de responder à escolarização, conforme nos coloca Cortez (1998). Ao contrário, as medidas adotadas para a sua inclusão nas raias da escola, de certa forma, sempre levaram à (re)afirmação da desqualificação sobre a população a ser escolarizada (Cortez, 1998, p.66).

***

"A criança que chega à escola traz consigo toda a experiência relacional que adquiriu na família. É portadora inconsciente de todas as frustrações e recalcamentos do seu drama interior pessoal" (Mauco,1967).

Quando a criança deixa a família pela primeira vez, sofre e estabelece novos laços com os colegas e professores. Orientada pelo seu inconsciente, vai transferir para os professores imagens das figuras parentais e os sentimentos que a ligam a elas.

A palavra "transferência", com sentido psicanalítico, foi empregada pela primeira vez em 1895; Freud no texto A Psicoterapia da Histeria mostra a intervenção quase constante da transferência; nos Estudos, demonstra nítida idéia de transferência desde sua gênese até sua importância na questão terapêutica. Em 1905 publica o caso Dora onde explica a respeito das transferências, "tendências e fantasias despertadas e tornadas conscientes no decorrer do tratamento psicanalítico" (Freud, 1905). A transferência entre paciente e analista é favorecida pela sujeição do paciente às regras impostas pela associação livre. Contudo, em Além do Princípio do Prazer (1920), apresenta a transferência como possível na vida comum, nas relações entre as pessoas de forma geral, possibilitando a compreensão do sujeito nas suas diversas relações com o outro e o peso da sua realidade psíquica.

Visando o posicionamento considerado como distorções das preposições de Freud, adotado em versões psicologistas, biologistas, e outras, Lacan faz um trabalho propondo um "Retorno a Freud". O conceito de inconsciente é revisto por ele considerando a hipótese de tê-lo como fenômeno numa descontinuidade. Propõe, então, o conceito de inconsciente estruturado como uma linguagem. (Dor,1989). A estrutura da linguagem que constitui o inconsciente preexiste ao sujeito no mundo em que ele se desenvolve, "não só antes de falar e de caminhar, mas antes mesmo de nascer empiricamente à vida, o sujeito já é objeto do discurso, do desejo e das fantasias de seus genitores que, por sua vez, são assujeitados às estruturas lingüísticas, psicanalíticas e histórico-sociais" (Lajonquère in Monteiro,2000, p.63).

Para Lacan o desejo do outro é o sentido do desejo humano, pois, aquele é, na realidade, o desejo de ser reconhecido pelo outro. É o que faz o sujeito investir na transferência.

Com relação à transferência, Lacan referencia a sua teoria considerando a resistência, a repetição e a neurose da transferência como fenômenos resultantes e não como características.

Na situação analítica, a associação livre é regra imposta ao analisante. Surge, desse quadro, um novo ângulo do qual é possível abordar a resistência. Ela não é acionada pela transferência, mas sim, está presente no discurso, na estruturação do signo lingüístico, S/s, cuja barra resiste à significação — o saber inconsciente.

Pela associação livre o paciente supõe no analista o saber sobre o que lha falta. Quer encontrar neste a verdade sobre seu desejo, dispensando-lhe a demanda de amor (Monteiro, 2000, p.70), o desejo de reconhecimento "...ser nada além de desejo do desejo do Outro e de permanecer excêntrico a toda solução de satisfação" (Dor, 1989, p.69). Dessa forma, o analista ocupa uma posição denominada por Lacan de Sujeito do Suposto Saber, posição esta que favorece a transferência.

Na hipótese lacaniana, a transferência também não é exclusiva do ambiente analítico, a fala, por si só, é indício da existência de transferência. Na verdade, esta é sustentáculo daquela.

***

"O fracasso, opondo-se ao sucesso, indica um julgamento de valor; ora, esse valor é função de um ideal" (Cordié, 1996, p.20).O sucesso, na sociedade moderna ocidental se traduz através do verbo "ter", ter acesso ao consumo de bens, ter boa posição social, em resumo, ter o falo imaginário. Ao fracasso subentende-se o contrário de tudo isso, a não consecução do "ter", estar privado de usufruir daquilo que a sociedade dispõe ao cidadão, ao sujeito.

O fracasso escolar, como renúncia, é, em geral, manifestação de um conflito inconsciente, fruto de uma contradição que atinge as aspirações do sujeito. Esse conflito, quando entre identificações paradoxais, pode provocar a paralisação do sujeito, bem como o bloqueio das suas realizações. Na escola as contradições têm lugar já a partir da própria concepção da atividade que ali se exercita, a educação. Esta visa preservar a sociedade formando cidadãos integrados à mesma e também formar cidadãos capacitados a atuarem como agentes transformadores dessa mesma sociedade. A educação está destinada a conservar e modificar a sociedade.

Inúmeros fatores se vazem presentes na escola, porém, difere esse ambiente ao da clínica psicanalítica por um principal aspecto: a ausência da associação livre. A fala, porém, "pode ser considerada como a marca por excelência da sujeição desejante" (Lajonquière in Banks-Leite & Galvão, 2000, p.144). Falar em si, constitui-se em reeditar a dialética edipiana.

Lajonquière, ao discutir sobre a empresa do Dr. Jean Itard junto ao Selvagem do Aveyron, Victor, aporta-nos a um clássico caso de fracasso educativo. Salienta que o "dispositivo pedagógico, como o colocado em ato por Itard, articula-se a partir da recusa do sujeito do desejo" (Lajonquière in Banks-Leite & Galvão, 2000, p.110). Independentemente dos resultados atingidos ou manifestos nessa empreitada, das reais condições de Victor como aprendente e de Itard como ensinante, já se achava certificada a morte desse sujeito. Itard não estava pronto a metaforizar qualquer ação, reação, ou omissão como marca de um desejo a ser reconhecido, "o mestre, é claro, nada queria saber acerca do desejo e, portanto, escutava, não outra, mas sempre a mesma coisa" (Lajonquière in Banks-Leite & Galvão, 2000, p.113), condenando Victor à condição de objeto

Itard foi detido na barra do algoritmo S/s num discurso insignificante, tornando segura sua ação defensiva na resistência à sua própria fala e na simples repetição da sua postura e ótica diante de seu objeto Victor.

O binômio Itard-Victor por vezes se repete encarnado nas personagens professor-aluno na ação educativa. Patto em seu trabalho sobre o fracasso escolar nos revela que "as afirmações sobre as características da clientela continuam a ser as mesmas dos anos setenta." (Patto,1987, p.582) Quais são essas afirmações? São as que declaram que:

"As dificuldades de aprendizagem da criança pobre decorrem de suas condições de vida.(...) A escola pública é uma escola adequada às crianças de classe média e o professor tende a agir, em sala de aula, tendo em mente um aluno ideal. (...) Os professores não entendem ou discriminam seus alunos de classe baixa por terem pouca sensibilidade e grande falta de conhecimento a respeito dos padrões culturais dos alunos pobres, em função de sua condição de classe média." (Patto, 1987, p. 583, 591, e 597)

Percebe-se um discurso que perdura ao longo do tempo assinalando uma ruptura entre sujeitos ensinantes e aprendentes calcado na negação do outro, sustentando as condições do fracasso escolar.

O professor é aquele que apresenta um discurso a alguém; sempre que o faz, o faz através da fala, estruturada pela linguagem, na denegação da demanda educativa de signos significantes do desejo enquanto que o aluno tem no professor aquele que tudo sabe sobre seu desejo, o Sujeito Suposto Saber. A transferência tem o Sujeito Suposto Saber como princípio constitutivo, pois, em simetria tem-se um sujeito que demanda de amor e de reconhecimento.

Cordié (1996) apresenta a questão da relação da criança com o saber escolar como uma estrutura que lhe trás frustrações às quais deve ser capaz de aceitar. Esse saber e sucesso escolar podem ocupar a situação de valia para a criança, mas, esses elementos entram na constituição do narcisismo que é componente primordial do sujeito e está relacionado às estruturas do ego. Nessa situação, quando ocorrem perturbações nas metáforas do objeto, o sujeito depara-se novamente com a angústia, a inibição e constrói, às vezes, um sintoma.

O desejo de saber, que Freud associa a uma pulsão, a pulsão epstemofílica (Erkenntnistrieb), quando inibida, provoca a suspensão dos investimentos cognitivos, melhor dizendo, uma inversão nessa pulsão; o que ocorre com o aneróxico em relação ao "nada comer", acontece também nessa situação mas da forma de "nada saber". A queda ou desaparecimento do investimento cognitivo, a inversão pulsional do desejo de saber para "nada saber", desarmam a condição básica para a constituição desse Sujeito Suposto Saber; assim sendo, instala-se um quadro desfavorável à manifestação da transferência, pelo menos nesse ambiente escolar, por parte do sujeito aprendente e calcada no desejo de saber.

***

Os conceitos psicanalíticos nos levam a considerar o desejo como sendo essencial nas questões motivadoras do sujeito. A busca eterna ao que lhe falta leva-o ao outro na vã esperança de se reencontrar na completude primordial narcísica, no desejo materno. A castração que se instala pela impossibilidade de satisfazer os desejos maternos é afeta à falta, esta leva o sujeito ao desejo de saber. Assinala-se aqui, uma primeira condição para a configuração da transferência, o desejo de saber. De fato, o desejo de saber "o quê o outro quer de mim?" dirige-se ao seu reconhecimento pelo outro, por isso busca saber sobre o desejo do outro. Como sua angústia tem origem na falta que lhe é presente, a castração, a sua busca consiste em saber sobre o próprio desejo, o objeto ‘a’.

Esse pensamento lacaniano nos revela um outro elemento que se encontra naquele que "sabe" o que falta ao sujeito, o Sujeito Suposto Saber. A ele são transferidos os saberes sobre os desejos do sujeito desejante. Temos, então, uma outra condição explícita para a configuração do fenômeno da transferência, o Sujeito Suposto Saber.

Em situação de fracasso escolar, nas questões que envolvem o sujeito, Anny Cordié postula o princípio de que tal situação abraça o sujeito quando seu desejo de saber é inibido por qualquer fator. Na verdade a autora diz que há uma inversão na pulsão epstemofílica do sujeito, levando-o à situação de "nada querer saber". Partindo da eliminação do desejo de saber, torna-se pouco provável, senão impossível, a configuração do sujeito suposto saber. Assim, a transferência, a exemplo do sujeito suposto saber, não se configura entre os sujeitos envolvidos nesse enlace.

Em suma, a ação educativa não ocorre porque não há um depósito por parte do sujeito (não)desejante sobre o outro, o aluno não tem no professor, ou naquele que se propõe a lhe ensinar algo, o depositário fiel do seu desejo. A educação, aí, não acontece.

É importante frisar que essas questões fogem ao domínio do sujeito. A sua postura nessas imposições é de impotência e de passividade, visto que não são de sua consciência tais ocorrências, mas sim, são da esfera do inconsciente.

***

 

Referências Bibliográficas

CORDIÉ, A. Os atrasados não existem – psicanálise de crianças com fracasso escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

CORTEZ, M. C. À sombra do fracasso escolar: A psicologia e as práticas pedagógicas. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 3, n.5, p. 63-83, jul./dez. 1998.

DE CÉSARIS, D. M. O fracasso escolar: Paradoxos de uma inclusão que gera violência e exclui. in Programa e resumos do IV Colóquio do LEPSI: Os adultos, seus saberes e a infância. São Paulo: USP, 2002.

DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: O inconsciente estruturado na linguagem. Tradução de Carlos Eduardo Reis; Supervisão técnica da tradução de Cláudia Corbisier, Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 203 p.

_______. Introdução à leitura de Lacan: Estrutura do sujeito. Tradução de Patrícia Chittoni Ramos; Supervisão técnica de Francisco Franke Settineri, Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995. 2v. 258 p.

FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LAJONQUIÈRE, L. Itard Victor!! Ou do que não deve ser feito na educação das crianças. in BANKS-LEITE, L.; GALVÃO, I. (orgs.). A educação de um selvagem: As experiências pedagógicas de Jean Itard. São Paulo: Cortez, 2000.

MAUCO, G. Psicanálise e educação. Lisboa: Moraes, 1967.

MAZZOTTI, T. B. Filosofia da educação, uma outra filosofia? Educação on line, disponível em < http:// www.educacaoonline.pro.br. Acesso em: 01 out. 2002.

MONTEIRO, E. A. A transferência e a ação educativa. 2000. 105 p. Tese (mestrado) — Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.

PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: Histórias de submissão e rebeldia. 1987. 312p. 2v. Tese ( Livre docente em Psicologia) — Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

SCHILLING, F. Ética, promessas. in Anais do III Colóquio do LEPSI: Psicanálise, infância e educação. São Paulo: USP, 2002. 275 p.