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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Nome próprio, traço unário e autismo

 

 

Flávia Chiapetta de Azevedo

Aluna do Doutorado em Teoria Psicanalítica da UFRJ – Instituto de Psicologia

 

 

Nosso objetivo neste trabalho é refletir sobre o estatuto do sujeito no autismo. Para nortear nossa reflexão , partiremos do conceito de traço unário. A escolha pelo tema surgiu de nossa clínica, mais especificamente de um caso de autismo que chamou nossa atenção pela forma como a criança foi "nomeada". A escolha foi realizada pelo pai, o qual toma como referência o nome de uma modelo estrangeira. É importante marcar o motivo da escolha: o pai escolheu o nome porque era diferente, tratava-se de um nome que ele nunca tinha ouvido falar. Além disso, o nome da filha não é o mesmo da modelo, porque o pai acrescenta uma letra para tornar o nome da filha absolutamente diferente. Vale ressaltar que não se trata apenas de um nome diferente, mas de uma diferença que não remete a sentido algum. Pensamos, a partir deste caso, que o problema do autismo está circunscrito pela questão da nomeação.

Nomear não é da mesma ordem que dar um nome. No Seminário IX, a identificação, Lacan (1961-62) afirma que o nome é o ponto de amarra onde o sujeito se constitui, a partir do qual se pode falar sobre identificação. Neste sentido, o nome tem valor de traço unário e está articulado à segunda identificação – aquela que Freud, em "Psicologia de grupo e análise do eu", denomina de regressiva.

Essa identificação está ligada ao abandono ou perda do objeto. Na medida em que esta perda se efetiva, o sujeito se identifica com um traço do objeto. Essa identificação é sempre parcial, referindo-se somente a um traço único da "pessoa objetalizada" (Lacan 1961-62). Vale lembrar que o traço unário não é um traço que faz apelo a lembrança do objeto. Não é um traço que tenha por função representar o objeto. Trata-se apenas de uma marca distintiva, sem significação. Por isso o nome próprio é o exemplo paradigmático do traço unário, porque se trata de um traço distintivo, de sorte que longe de se traduzir ele se transfere como tal:

"Foi por causa de Cleópatra e Ptolomeu que toda a decifração do hieróglifo egípcio começou porque em todas as línguas Cleópatra é Cleópatra e Ptolomeu é Ptolomeu" (Lacan, aula de20/12/61).

Vimos, então, que nomear é mais que dar um nome, faz parte da própria constituição do sujeito. Mais especificamente, a nomeação permite a identificação ao traço unário. Neste sentido, o traço unário refere-se à primeira marca do sujeito, seu nome, constituindo-se como o acionador da subjetividade. No fragmento de caso clínico que apresentaremos, o nome escolhido pelo pai parece que não nomeia.

Durante as entrevistas, o pai relata que aos 12 anos foi abandonado pela mãe e seu pai é assassinado em seguida, sendo por isso adotado por outra família. Neste novo lar ele vai ocupar um lugar desprivilegiado, com muitos deveres e poucos direitos. Isto porque, diferentemente de seus "irmãos", ele precisava trabalhar, dormia isolado de todos, num lugar improvisado. Há pouco tempo sua mãe adotiva foi homenageada publicamente, pelo seu aniversário, com uma mensagem no jornal, e abaixo da mensagem vinham os nomes dos filhos, mas o nome do pai de nossa analisanda não apareceu. Como seu nome foi excluído da série familiar, o pai não consegue nomear a filha.

Seguindo as indicações de Lacan (1969), nas "Duas notas sobre a criança", dirigidas à Sra. Jenny Aubry, supomos que, na ausência da função do pai, a criança fica exposta a todas as capturas fantasmáticas da mãe. É o que ilustra nosso caso:

a principal preocupação da mãe em relação à filha refere-se ao fato de esta vir a adoecer. "Ela não se alimenta bem e fica dias sem evacuar" – diz a mãe. Não se alimentar bem significa, para esta mãe, não ter horários regulares para as refeições e não gostar de alimentos que ela considera importante. Quando lhe é sugerido deixar a filha se alimentar por conta própria, a mãe reage afirmando que por conta própria a filha não se alimentaria e certamente adoeceria. Para não correr o risco de ver sua filha adoecer, a mãe se antecipa preparando uma alimentação reforçada. Nesta relação, a falta não comparece, porque antes de a filha sentir fome, a mãe a alimenta. Visto toda esta preocupação da mãe, é importante ressaltar que a filha é considerada pelo médico como obesa.

Um acontecimento importante parece desencadear esta preocupação da mãe. No dia do parto, após a ultra sonografia, é revelado à família a possibilidade de uma anormalidade orgânica do bebê em função de uma prematuridade do feto. Isto porque, embora se tratasse de uma gravidez de 9 meses, o desenvolvimento do feto correspondia a 6 meses, devido ao fato de a placenta não ter se desenvolvido suficientemente. Vale lembrar que a placenta é o órgão responsável em alimentar o feto.

"Fiquei muito nervosa com essa notícia, ficava pensando que poderia perder minha filha" – diz a mãe.

A possibilidade de perder a filha coloca em jogo elementos estruturais inconscientes da mãe, impedindo-a de simbolizar a separação, a qual ela sente na pele: "A anestesia não fez efeito, senti cortarem minha barriga, tive uma crise nervosa, me deram um calmante e eu dormi".

A notícia emitida por um sujeito em quem se supõe um saber – o médico – aprisiona a mãe, comprometendo sua relação com o infans. A mãe permanece fixada neste momento de iminência de morte da filha, pela sua incapacidade em alimentá-la. E parece que é, justamente, deste lugar que a filha "responde". Ela se oferece como algo que deve ser alimentado o tempo todo, objeto da fantasia da mãe. Esta posição comparece na análise, a partir da transferência, quando a analisanda "solicita" ser alimentada pela analista: "Quer uma balinha? Dá comida pra ela!".

Como o analista pode, então intervir?

Sobre a direção da cura no autismo temos como principal referência a intervenção de Melanie Klein (1930) no caso Dick, retomada por Lacan (1953-54) no Seminário, livro I, sobre os escritos técnicos de Freud. Dick é um menino de 4 anos, a quem Melanie Klein (1930) refere-se como esquizofrênico. Mas ele apresenta todas as características do quadro de "autismo infantil precoce" descrito por Leo Kanner (1943) 14 anos depois: trata-se de uma criança com pobreza de vocabulário e de desenvolvimento intelectual; ausência de dor; indiferença à presença da babá; não brinca; recusa alimentar-se; e, principalmente, não faz apelo.

Sobre este caso, Lacan (1953-54) demonstra um especial interesse na intervenção realizada por Melanie Klein (1930) porque, apesar da indiferença que Dick manifesta pelos brinquedos que a analista lhe apresenta, ela interpreta de imediato. Destacamos um trecho da primeira sessão:

"Quando lhe mostrei os brinquedos que tinha preparado, o menino olhou para eles sem o menor interesse. Peguei um trem grande e o coloquei ao lado de outro menor, chamando-os de ‘trem papai’ e ‘trem Dick’. Então ele pegou o trem chamado Dick , empurrou-o até a janela e disse: ‘Estação’. Expliquei: A estação é a mamãe; Dick está entrando na mamãe" (Klein M., 1930: 257).

A partir da intervenção de Melanie Klein (1930), a criança progride: Dick começa a chorar quando a babá vai embora, brinca e, paulatinamente, aumenta seu vocabulário.

Lacan (1953-54) retoma esta intervenção apontando que, neste ponto, Melanie Klein (1930) introduz a simbolização:

"No caso dramático, nesse sujeito que não acedeu a realidade humana porque não faz ouvir nenhum apelo, quais são os efeitos das simbolizações introduzidas pela terapeuta? Elas determinam uma posição inicial a partir da qual o sujeito pode fazer agir o imaginário e o real e conquistar o seu desenvolvimento. Ele se precipita numa série de equivalências, num sistema em que os objetos se substituem uns aos outros" (Lacan, !953-54: 103).

Ainda no mesmo seminário, Lacan (1953-54) afirma que:

"Ela [Melanie Klein] dá literalmente nomes ao que, sem dúvida, participa do símbolo porque pode ser imediatamente nomeado, mas que, para esse sujeito só era, até então, realidade pura e simples" (Lacan, 1953-54: 59).

Esclarece-se, então, que é a partir das significações oferecidas por Melanie Klein (1930) que Dick pode pronunciar "estação". É também neste momento que Dick faz seu primeiro apelo, perguntando pela babá.

Vimos, então, que é a partir das significações de Melanie Klein (1930) que Dick pode progredir. Portanto, podemos concluir que na direção da cura com autistas torna-se necessário um oferecimento de significação. Essa posição parece ser distinta da direção da cura na psicose. Isto porque, na psicose, parece que é o próprio "sujeito" que dá a significação, como Schreber, que, diante das mensagens interrompidas, das vozes que lhe enviam os inícios das frases, ele devia, sem um minuto de descanso ou remissão, completar.

Diante dessa proposta de direção da cura com autistas, uma questão se impõe. Sabemos que no autismo o Outro não é simbolizado. Ou seja, com o autismo, nós lidamos com um Outro sem lei, um Outro intrusivo que se apodera do "sujeito", fazendo dele objeto de gozo. Assim, os signos da presença do Outro, incluindo a fala, são tomados como intrusivos, o que faz essas crianças evitarem esses signos de forma radical.

O analista, na transferência, é convocado a ocupar o lugar do Outro para o sujeito. Nesse sentido, será que esta direção – a de oferecer significações – não colocaria o analista no lugar do Outro intrusivo, reproduzindo o Outro do saber absoluto que se apodera do sujeito, colocando-o no lugar de objeto de gozo? Pensamos que a única forma de abordar a questão é a partir do desejo do analista. Acreditamos que as intervenções de Melanie Klein (1930) tiveram efeito no caso Dick, porque, ali, o desejo do analista estava operando. Não podemos esquecer que Melanie Klein (1930) inaugura, de certa forma, a psicanálise com crianças. E especificamente no caso Dick, ela diz que se viu "obrigada a modificar sua técnica usual" (Klein M, 1930: 260).

É assim que, à revelia de sua teoria, impregnada de imaginário, ela permite Dick simbolizar a falta: "Dick então atirou a carroça danificada e seu conteúdo na gaveta e disse: ‘foi embora’ " (Klein M., 1930: 258). Dessa forma, em várias sessões, comparece o jogo do Fort Da (Freud 1920) porque Dick esconde os objetos, ele mesmo se esconde e assim por diante, e Melanie Klein (1930) o acolhe. Retomamos a intervenção de Melanie Klein (1930) para ressaltar a questão da douta ignorância – elemento fundamental que se articula com o desejo do analista.

No texto "Variante do tratamento-padrão", Lacan ([1955] 1966), partindo da indicação de Freud sobre ser a ciência analítica recolocada em questão na análise de cada caso, aborda a questão referente à ignorância. Num primeiro momento, Lacan ([1955] 1966) parece referir-se a ignorância como um sintoma, como retorno do recalcado e, portanto, como censura da verdade do sujeito (um não querer saber sobre sua verdade). Em seguida, ele afirma: "o fruto positivo da revelação da ignorância é o não-saber, que não é uma negação do saber e sim sua forma mais elaborada" (Lacan, 1955: 360).

Nesse sentido, a passagem da ignorância sintomática para um não-saber implica numa elaboração por parte daquele que pretende se tornar analista. É só a partir desta elaboração, que acontece no percurso da formação do analista, que se pode ter acesso a revelação que é a de saber que não se sabe. É esta posição – de ignorar o que se sabe -, que é diferente da ignorância sintomática, que permite o analista escutar seu paciente transmitir seu saber sobre seu próprio inconsciente, através da associação livre. No final do texto "Variante do tratamento padrão", Lacan ([1955]1966) parece nomear essa posição – ignorar o que se sabe – de douta ignorância.

Retornando a questão do autismo, pensamos que o analista, atravessado pelo desejo do analista, e, mais especificamente, pela douta ignorância, pode oferecer a significação sem reproduzir o Outro intrusivo. Isto porque essa posição é bem diferente das mães de autistas que oferecem uma significação que porta uma certeza.

 

Referências bibliográficas:

KLEIN, M. (1930). "A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego". In: Obras completas de Melanie Klein, Vol. I. Melanie Klein, amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). Tradução de A. Cardoso. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996, p.249-264.

LACAN, J. (1953-54). O Seminário livro1, Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1979.

LACAN, J. (1955-56). O Seminário livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LACAN, J. (1961-62). O Seminário livro 9, A identificação, Mimeo.

LACAN, J. (1969) "Dos Notas Sobre El Niño" In: Intervenciones y Textos 2. Argentina: Manantial,1993, p.55-57.