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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
On-line ISBN 978-85-60944-06-4
An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
Arte e psicanálise
Flavia Vasconcellos
Psicanalista e membro da equipe do Grupo de Apoio à Escolarização Trapézio
O presente trabalho pretende discutir as relações entre psicanálise e arte, a partir da experiência do ateliê de Artes realizado pelo Grupo de Apoio à Escolarização Trapézio, que oferece, dentre outros serviços, um atendimento integrado, para alunos que apresentam impasses escolares, sua família e a escola.
Por motivos diversos, alunos podem apresentar dificuldades em seu processo de escolarização e aprendizagem (Leandro de Lajonquière chama a isso de vicissitudes). Por vezes, essas dificuldades podem ser solucionadas dentro da própria escola, com recursos próprios ao campo educativo. Há casos, entretanto, que resistem às intervenções pedagógicas. Algumas crianças se emaranham nos fios do conhecimento e do saber. Vêem-se paralisadas em seu processo de escolarização e mostram-se pouco permeáveis às intervenções estritamente pedagógicas. São casos que demandam um olhar e uma escuta voltados ao desejo inconsciente que possam des-construir certezas, abrindo possibilidades para o inusitado, o surpreendente, o lapso.
A arte é um meio criativo de expressão das paixões e inquietações que movem o homem. É uma produção humana que, por excelência, traduz uma das mais belas capacidades dos homens de brincar com os sentidos, de transfigurar o imutável, de criar o inesperado a partir do conhecido, o novo a partir velho.
De certa forma, estes elementos participam também do processo de uma análise: a repetição sintomática só é rompida na medida em que, a partir dessas repetições, algo de novo possa surgir.
É com este espírito que oferecemos um ateliê de artes no Trapézio, valendo-nos do grande poder da Arte como instrumento de transmissão da Cultura, porque entendemos que neste encontro do sujeito com sua história, valores e tradições, abrem-se novas possibilidades de se relacionar consigo e com o Outro.
Importante ressaltar que o ateliê de artes do Trapézio só pode ser compreendido plenamente na sua articulação com a montagem como um todo que tem por objetivo apoiar o sujeito nas vicissitudes de suas aprendizagens, a partir de intervenções que convidam este sujeito a comparecer e a se posicionar.
Apresentaremos a seguir um fragmento clínico retirado de um dos ateliês de artes realizados no Trapézio.
Fragmento
Estávamos trabalhando com o tema "Gravura". Iniciamos o trabalho de um modo bastante simples, quase rudimentar, usando placas de isopor e alguns instrumentos de ponta, que improvisamos, para marcar as placas. Aconteceu que apenas a placa do J. ficou bem gravada, as outras, todas, apresentavam algum problema: ou borravam demais, ou a tinta ficava toda na placa, ou o desenho ficava irreconhecível. Em um segundo momento, dedicamo-nos a observação e análise do material com o objetivo de encontrar os elementos que pudessem nos explicar o resultado obtido. O fato de nos termos voltado para as placas de isopor com um "espírito de pesquisa" revela que o objeto é passível de ser analisado, pesquisado, indagado e que é preciso que nos debrucemos sobre ele para buscar desvendá-lo. O saber é sempre parcial e é justamente o vazio que permanece que impulsiona o sujeito a continuar sua busca. Após termos levantado estas observações, voltamos a gravar novas placas, com um efeito desta vez mais interessante.
Este fato se torna especialmente relevante na medida em que estamos tratando de sujeitos que chegam a nós com dificuldades em relação as suas aprendizagens e que parece ser comum encontrar nesses casos uma posição resignada em relação ao objeto de conhecimento. É como se houvesse uma verdade indiscutível que alguns conhecem e outros não. Então, o que fazemos em nossas intervenções é colocar pontos de interrogação nos lugares onde as certezas estão paralisando o sujeito.
Lajonquière (1993) sugere uma distinção importante entre os conceitos de saber e conhecimento, que, especialmente para nós, que trabalhamos nesse meio de campo entre o objetivo e o subjetivo, parece ser bastante reveladora: para ele, o saber é sempre inconsciente e está referido ao desejo; já o conhecimento diz respeito aos objetos que são cognoscíveis pela via consciente.
Na prática, saber e conhecimento caminham juntos e isso talvez nos permita afirmar que nossas intervenções no Trapézio questionam o saber e instigam o conhecimento.
Voltando as nossas placas, portanto, tendo questionado o saber sobre o objeto, prosseguimos em busca do conhecimento. Convidamos uma artista plástica, Flávia Ribeiro, para nos assessorar no prosseguimento do trabalho com as gravuras.
Sua entrada no ateliê inaugurou um segundo momento da história deste grupo, no qual o conhecimento e a experiência que ela nos trouxe, gerou ao mesmo tempo um fascínio e uma compulsão para a produção.
Flávia trazia (e ainda traz) suas ferramentas, seus livros, e para, além disso, sua experiência com o objeto artístico. Trazia seus materiais em uma grande sacola, alguns embalados por panos marcados pelo tempo e pelo uso, os livros manuseados, as ferramentas que ela própria havia criado em função da necessidade imposta por trabalhos diversos, enfim, ela nos trazia (com muita generosidade) as insígnias de seu amor por seu trabalho. O momento de ver esses objetos surgindo de sua sacola era um momento especial de deleite e admiração para todos do grupo.
A psicanalista Cristina Kupfer1 diz que a aprendizagem depende justamente de um educador em posição de desejo em relação ao objeto de conhecimento que ele se dedica a transmitir. E é justamente essa posição desejante que atrai o olhar do aprendiz para o objeto de conhecimento em questão.
A primeira técnica que Flávia nos apresentou foi a da monotipia. Os meninos (neste grupo só tínhamos rapazes) adoraram a proposta. Produziram sem parar, quase compulsivamente, durante vários encontros. Nossas intervenções buscavam fazê-los refletir e planejar, mas eles pareciam precisar experimentar o prazer de traçar livremente, simplesmente deixando que seus gestos e movimentos os surpreendessem com imagens inesperadas. Pareciam crianças pequenas em suas primeiras experiências com o traço.
Da apreciação de diversos livros que apresentavam a gravura de vários artistas e épocas, surgiu o interesse pela xilogravura (especialmente por parte de N., que tinha goivas que seu avô lhe tinha presenteado). Propusemos, então, uma atividade preparatória porque se até então, com a monotipia, a técnica e os materiais utilizados permitiam que eles fizessem suas produções rapidamente, quase sem pensar, já a xilogravura é uma técnica que se utiliza de materiais com características opostas: o manuseio das goivas sobre a chapa de madeira depende de um treino e do conhecimento das especificidades de cada ferramenta, além de ser um trabalho que exige uma maior concentração.
Dedicamo-nos, então, durante quase três meses a gravar, com instrumentos de ponta, folhas de papel cartão preto. Para esta produção optamos por estabelecer um tema de trabalho, que no caso foi o corpo humano2.
Os primeiros trabalhos foram feitos sobre "placas" de papel cartão. Flávia trouxe uma grande variedade de livros sobre este tema, livros científicos de anatomia, de desenhos artísticos do corpo humano, que ficavam à disposição para consulta. Como o desenho era feito com o instrumento de ponta diretamente sobre o cartão, ficava difícil para os meninos reproduzirem traços conhecidos, normalmente realizados com lápis ou canetinha. A própria técnica e seus respectivos materiais propiciaram que eles se aventurassem a traçar formas até então impensáveis, tanto por sua aparente dificuldade técnica, como também por se tratar de objetos que rompiam com uma produção estereotipada.
A produção mais marcante foi a de C.3, que até então ou reproduzia o desenho de um cachorrinho, quase como um carimbo, em todos os seus trabalhos, ou copiava o trabalho dos colegas, muitas vezes sem nem ao menos saber o sentido do que estava fazendo (olhando com o canto dos olhos para a produção dos outros, reproduziu formas; quando indagado sobre o que tinha desenhado, viu-se na impossibilidade de sequer arriscar uma resposta: ele tinha copiado um pulmão, uma orelha e uma língua). A partir deste fato, puxou um livro para si e passou a folheá-lo, podendo deixar-se influenciar por suas imagens. Sua produção deixou de ser uma cópia estereotipada e alienada, e ganhou vida e sentido. A aproximação dos livros, o aproximou do universo cultural, e da possibilidade de usufruir de um legado cultural, que integra o sujeito na Cultura.
Deste pequeno ensaio realizado sobre as placas individuais, passamos a uma produção coletiva de um corpo humano, em escala verdadeira. Foi N. quem deu a idéia de se deitar sobre a mesa para que contornássemos seu corpo. Feito isso, o corpo começou a ser preenchido: ossos, músculos, órgãos. Trabalhamos intensamente durante todos os nossos encontros.
Ao aproximarmo-nos do final deste trabalho, embora os meninos já estivessem mais centrados e um pouco menos "impulsivos", havia ainda uma certa ansiedade, que talvez tivesse que ver com justamente com a proximidade de uma conclusão.
E foi justamente no final desta produção que nosso homem foi batizado. Fizemos o acabamento final, colando frente e verso e fazendo os preparativos para a sua instalação. Penduramos, finalmente, nosso homem, fotografamos, apreciamos e brincamos com o nosso tão cultivado Josescrildo, e assim nos despedimos dele.
Na semana seguinte, iniciamos finalmente a apresentação da técnica da xilogravura. A proposta inicial foi reconhecer os materiais e procedimentos utilizados nesta técnica: a chapa de madeira, as goivas, a tinta de impressão, o gravar e o imprimir. Propusemos uma produção sem tema definido e, mais uma vez pudemos observar como é difícil para esses meninos se verem com tanta liberdade de escolha.
Para N. e J. foi importante escrever seus nomes em todos os seus trabalhos, não se tratava de trabalhos assinados, mas sim trabalhos que eram suas próprias assinaturas; A. queria desenhar uma casa, mas o manuseio das goivas lhe impôs muitas dificuldades, e foi difícil compreender a tarefa de traçar com as goivas os traços já marcados a lápis e C., diferentemente de seus colegas, não parece ter nada o impedindo na realização de seu trabalho: ele faz um desenho de uma casa e começa a gravar, utilizando várias ferramentas diferentes ao mesmo tempo. Logo seu desenho está gravado, mas ele quer continuar experimentando a traçar com as goivas. Faz, então, traços largos, fortes, sobre o desenho já gravado. Não parece estar muito interessado no desenho em si, mas nos gestos que realiza. É o primeiro a imprimir e é ele também quem faz o maior número de impressões. A sua primeira impressão causou em todos uma certa surpresa: porque o trabalho de C. ficou muito expressivo e bonito, e isso parecia inesperado em um menino que antes se recusava a produzir, ou que realizava suas produções sem muito capricho, levando quase sempre a um resultado "mal acabado" e um pouco tosco.
Após a primeira impressão, ele retornou para sua matriz e continuou traçando. Imprimiu novamente e mais uma surpresa: quanto mais ele traçava, mais interessante seu trabalho ficava. Provavelmente, foi a própria técnica que possibilitou que ele se encontrasse com esta surpresa: fazendo a mesma coisa, só que com outro material, como canetinha, por exemplo, o efeito final seria de rasura e de escracho, mas no caso da xilogravura, o efeito final transmitia vigor, intenção e beleza; sua impressão provocou nele e em nós uma reação de admiração e valorização. Apesar disso, ao ser indagado sobre um título para sua produção, respondeu prontamente: "O Feinho", mostrando-nos o quanto estava identificado a um lugar de não saber, de impotência e da "feiúra".
Decidimos colocar uma das gravuras de C. como capa do convite para um evento comemorativo do aniversário da instituição, no qual montaríamos uma exposição dos trabalhos realizados em nossas oficinas. Já vínhamos conversando sobre isso nos grupos e acompanhamos diferentes reações: no grupo de crianças menores, que estavam cursando o fundamental I, as crianças ficaram empolgadas e excitadas com a idéia de que seus trabalhos seriam expostos; já no grupo dos adolescentes, a primeira reação de todos foi a de dizer que não iriam e que não queriam expor seus trabalhos. Notamos uma ambigüidade em relação à exposição: vontade e medo de se expor ao mesmo tempo.
Através do traço, o sujeito saboreia o prazer e a inquietude de se ver descoberto.
Pedimos permissão de C. para usar seu trabalho como capa do convite e perguntamos o que ele achava disso. Com um sorriso esboçado no canto da boca, C. mostrou-se surpreso e orgulhoso. Esta intervenção provocou nele um sentimento de valorização e de reconhecimento.
Esperamos que tenhamos conseguido cumprir com o objetivo deste ensaio de apresentar os objetivos do ateliê de artes do Trapézio, bem como os efeitos clínicos que observamos, que amarram, justamente, o desiderativo ao cognitivo: a possibilidade de conhecer advém da capacidade desiderativa do sujeito.
Referências bibliográficas:
CHAUÍ, MARILENA (2002). Filosofia. São Paulo: Editora Ática.
LAJONQUIÈRE, LEANDRO (1992). De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. A (psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber. Petrópolis: Vozes.
MANNONI, MAUD (1995). Amor. ódio, separação: o reencontro com a linguagem esquecida da infância. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
1 Entrevista com Cristina Kupfer in Jornal do Trapézio, n. 1, veiculado através do site da instituição: www.trapezio.org.br.
2 Um dos rapazes havia feito uma seqüência de olhos com a monotipia e esta produção nos deu base para a escolha do tema.
3 Tratava-se de um rapaz de 13 anos, ainda na quarta série e quase analfabeto. Os livros representavam para ele tudo aquilo que ele não podia ter acesso e sua reação frente a eles era, até então, quase de uma ojeriza.