5Arte e psicanáliseInfância e adolescência: o tempo em questão author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Reviravoltas do saber nas sombras do desejo

 

 

Francisco Ramos de Farias

Universidade Federal Fluminense

 

 

O desejo vincula-se ao saber que o sujeito pode tomá-lo sabido ou vertê-lo em interrogante, tendo-se tanto a relação de corte, o saber apresenta um fim, quanto, comporta um enigma. Vias igualmente problemáticas, por abrirem o pórtico do saber-fazer, sensação de posse, e a trilha sinuosa do impossível na parcela de gozo, conforme a origem "sapere", de saber, a mesma de sabor. Tomar o saber sabido ou fazê-lo interrogante, significa uma não entrega do sujeito, pelo desejo, que fez dele, ao ascender à posição bípede, o escravo do "Logos", movido de perplexidade. Nos primórdios da existência, o olfato media o contato com o mundo, na presença imediata do objeto. Com a visão, pôde buscar o objeto ausente, e em razão da falta, inclinou-se ao saber, como garantia ao desejo. A dimensão do vazio, única possibilidade de realização do pleno impossível, leva o homem à produção de saber sobre o mistério do sexo, primeiro universo de preocupação da criança, pois não "pode evitar o interesse pelos problemas do sexo" (Freud, 1976, p. 214). Tem-se assim, o desejo como a pressão que arranca o sujeito da condição de ignorância na busca da verdade procurada, a qual toca a ordem do impossível, no enigma da diferença entre os sexos. O sexual põe o sujeito frente ao impossível, forçando-o a produzir na difícil caminhada pelas veredas do saber!

O homem sonha alcançar a totalidade do saber para realizar o desejo de dominar o universo, mas o acesso ao saber ocorre é sempre parcial. Não obstante, quanto mais obscuro o enigma, maior o interesse em desvendá-lo! Assim, a verdade é ocultada por um véu e, toda conquista pelo acesso ao saber, é padecer, ao se desfazer o lastro da ignorância, na perda de inocência e, ainda, face ao excesso relativo a qualquer operação de produção da verdade. O sujeito desconhece a resistência à verdade apontada pelo saber, pois querendo sabe-la, cria enredos para nunca alcançá-la. Talvez pelo temor em repetir o drama de Édipo que tragicamente arrancou os olhos diante da convergência do saber com a verdade, mas num alto custo subjetivo: o desejo. Todo padecimento adveio do fato de que seu desejo foi de saber, sem o que não há tragédia: o que faz de Édipo herói trágico é ter querido saber.

Quanto mais o sujeito dirige-se ao saber, mas fica na condição de ignorância. Como o desejo não é condescendente, impulsiona o sujeito, ao precipício da trajetória na vida, dando-lhe a alternativa de se auto-inventar e, inventar o mundo, sendo o artífice da escrita de uma história deixada, nas pegadas causadas pelo desejo. Ignorância, saber e verdade: tríade delicada ao sujeito! A ignorância, necessária à procura de saber, mobiliza o sujeito à ação. O acesso ao saber, marcado pelo abalar dos alicerces da ignorância, é a maior das conquistas possíveis. A verdade, quando produzida, leva ao padecimento: o desejo assinala um logro: há o indizível do sexo. Resta desejar e buscar soluções aos impasses da vida. O grande equívoco do sujeito em acreditar encontrar a verdade, leva-o a refazer o caminho de busca do saber, pois "o impossível da verdade é a razão de querer ter a razão" (Szpilka, 1979, p. 47).

A relação inquietante entre desejo e saber propicia a busca de resposta movida pelo desejo de saber, pois "o saber faz com que a vida se detenha em um certo limite em direção ao gozo" (Lacan, 1992, p. 16). Complexa seara exige supor que o desejo só é definível na tangência da articulação entre desejo de saber e vocação verdade, vetores que acompanham o sujeito no ingresso à trama da linguagem, dando-lhe os indicativos da condição humana. considerando a formulação kantiana sobre o tornar-se humano, vemos que o homem, é o único que, para sobreviver, precisa ser educado, pois o animal, ao nascer já é razão do instinto, numa trilha traçada, exteriormente, a ser seguida e o homem, indicação do que poderá ou não vir a ser, devendo, ao contrário, deve servir-se de sua razão e realizar a conquista do tornar-se o que deverá ser. Ironicamente, a natureza acabou todas suas obras, mas encarregou o homem de traçar as linhas de seu destino, inventando o que poderá ser "num mundo humano, pré-existente, já é estruturado" (Charlot, 2000, p. 52). Sua sobrevivência depende da submissão às injunções, visto encontrar-se no mundo estruturado pela linguagem, torna-se cônscio de seu desamparo.

Inacabamento, peculiar à cria humana, recompensado pela plasticidade, fator decisivo na escrita de uma história, a partir do legado. Assim, o determinante principal da condição humana não é o equipamento genético, mas a teia de relações sociais que lhe é excêntrica. Disso decorre que a humanização por ser incidência da história, é ausência de ser. Em seu estado de desamparo, o homem ingressa num mundo onde existe sob a forma de pactos, aludindo ao patrimônio da ancestralidade, parcialmente apropriado, pelo saber, numa relação de excentricidade. Deduz-se então que o homem, ao nascer, nada sabe de si nem do mundo, sendo o ausente em si, pela condição de ser falante, e presença fora de si, por ter se constituído a partir do Outro. São esses os aspectos a matriz dinâmica do desejo que engajam o corpo em necessária luta incessante pela sobrevivência, na incursão ao campo do saber. Desse modo, nascer é ingressar na história da humanidade e construir uma história singular, pelas andanças nas trilhas do saber.

A vereda estruturada por essa via constitui o desejo de saber, sem relação direta com a verdade, nem com algum saber. O desejo de saber, assentado na impossibilidade e na verdade, "poderá cegar quem contemple a verdade em sua nudez. Ter querido saber supõe não o olhar, senão os olhos que buscam, a causa do desejo" (Salafia, 1995, p. 24).

Saber e verdade sem se recobrirem, têm no desejo acionador que coloca o sujeito diante do Destino: nuança trágica forjada pelo desejo de saber, na árdua tarefa de buscar sua verdade, pois há verdade quando o sujeito, pelo desejo de saber, faz ato. Sob este prisma, o ato heróico que faz do sujeito ser digno da virtude e a razão de condenação é, um dia, ter querido saber e, na mais tenra idade, encarregado-se da realização descobertas por intermédio da curiosidade sexual, quando ascendeu à posição bípede, explorou o mundo pelo olhar. A partir daí, inclinou-se à busca de conhecimento, tendo a curiosidade sexual transformada em desejo de saber.

Diversos caminhos são trilhados pelo desejo: a) Inocência desejada, como modalidade de saber evitada que delimita as posições subjetivas masculino e feminino. Tal recusa decorre da inexistência de representação, no inconsciente, da diferença de sexos. A impossibilidade de representação, decorrente do recalque, "é o efeito da impossibilidade de representar da diferença" (Magalhães, 1995, p. 33), restando ao sujeito operar com os pares de opostos referidos ao lugar dessa falta. b) O saber sabido, apagado ao sabê-lo, aparece nos sonhos, atos falhos e disfarces, e outras formações do inconsciente, o impasse do confronto com a castração. c) O saber impossível coloca, o excesso não capturável, na rede significante, sendo forma de gozo. Essas modalidades têm a falta como mola decorrente do encontro da cria humana com a nudez na mulher.

Na tentativa de produzir soluções para tal enigma, a criança parte das incômodas indagações: a) qual a origem das crianças? e, b) qual o lugar do pai na procriação?, que incitam seu pensamento sendo também fontes de angústia. A primeira teorização acerca do sexo é a produção de saber que enuncia a igualdade entre os seres, negando qualquer indício de diferença sexual. Tal construção ficcional faz obstáculo à verdade, forçando a criança produzir soluções sobre a concepção do coito de natureza sádica e a origem anal excrementícia da criança. Neste processo de investigação, a criança se encontra diante do impacto conflitivo de duas realidades opostas: a cosmovisão, baseada na atribuição de um falo a todos, inclusive às mulheres e as evidências que desmentem tal suposição. Daí então, para apreender a realidade, deverá declinar da concepção narcísica e substituí-la pela simbolização, a partir da captação da diferença.

A criança, pela castração, obriga-se a admitir o estatuto da falta no Outro, aceitando as conseqüências dessa evidência, inclusive a condição de ser, também, um ser, estruturado pela falta, que quer saber. Mas, constatar a falta no semelhante é cientificar de que o outro deseja, sendo assim a falta captada como ameaça que exige do sujeito responder mediante construção de uma posição subjetiva, pela produção de saber. O projeto de querer saber, força o sujeito há uma perda, não podendo mais se esquivar das conseqüências que acenam ao impossível: o saber jamais será todo sabido. Só há saber possível quando algo fica, para sempre, insondável.

Por que então há a perda quando se quer saber? Primeiro, ao querer saber, a posição do sujeito é a de posse. Eis o grande engodo: o saber não é algo a ser possuído! Em segundo lugar, o sujeito se acosta ao saber, debruçando-se na zona constituída pelo impossível de se chegar a uma totalidade. Além disso, a verdade causa cegueira irreversível, conforme Édipo quem, negando-se a ver, contemplou a evidência da verdade diante de si, para viver eternamente nas sombras. Sua escolha deveu-se ao terror provocado pela verdade, como quem seria recompensado. Depreende-se ser, o desvelar da verdade sabida pelo sujeito, na zona de não-saber, o horror inevitável a ser vivido. Arrancar, o véu da verdade tem conseqüências. Um dos filhos de Noé, para fugir do confronto à nudez do pai embriagado, decide cobri-lo com um manto. Seu ato, sendo a negação de sua vontade de saber e que tal saber permaneça não sabido, teve-lhe alto custo subjetivo: não escapou a maldição do pai, quem constatou seu filho querendo saber.

O querer saber supõe algo estruturado além do olhar e isso, a criança, na posição de cientista, adverte-nos formulando incômodas indagações no confronto aos órgãos genitais: não quer ver para contemplar a cena, seu objetivo é o saber buscado, através do olhar, encoberto por um véu. O olhar exerce faz a travessia desse véu. Como realização, o ver é fonte de inesgotável prazer, pois "o prazer de ver e a pulsão de saber freqüentemente se enlaçam para conduzir ao campo do prazer o gozo de avançar desde o limite" (Saliba, s/d).

O olhar mostra-se e oculta-se na aparência das coisas, alcançando aquilo que, de forma visível, é insondável. Assim opera vendo o evidente e capta algo onde nada pode ser desvelado. Essas duas modalidades de olhar atreladas ao saber são o acesso estruturado pelo desejo de saber, que emerge, na criança, com o prazer de ver, próprio da curiosidade infantil. Se o não-saber coincide com aquilo que é encenado para não ser visto, o que é sabido, por remeter ao desvelar de uma verdade, deixa um ponto obscuro. Eis o ponto de disjunção entre a verdade e o saber: o que pode ser sabido e o que não pode?

Para enveredar na pista de pensar complexa questão, remetemo-nos à distinção platônica, sobre os três estados articulados ao saber que incidem sobre o homem: a) o estado de prazer organiza-se pelo saber cingido nos caminhos que conduzem à satisfação e também a própria satisfação. b) no estado de dor, a inquietude é a sensação que faz o sujeito buscar um meio, pelo saber, para a fuga e, c) no estado neutro, o saber se apresenta como harmonia, sendo, no entender platônico, o único saber elevado à categoria de virtude: a dor dissolve a harmonia, enquanto que o prazer incitaria o ser a realização de movimentos para buscá-la. Se, por um caminho, o saber é traduzido pela ruptura, por outro, traduz-se pela busca: a harmonia somente é aspirada quando irremediavelmente perdida. Se o sujeito não experimenta dor nem prazer, tampouco pensa em quietude. A harmonia só é pensada no interstício entre a ausência de dor e o esperado início de satisfação, sendo a modalidade de saber referida à perda e à busca. Tendo experimentado a dor e a satisfação e livrado-se desses sentimentos perturbadores, o homem pode encaminhar-se à realização de tarefas nobres, na via do estado neutro, de modo a alcançar a forma mais divina de vida, momento em que cessaria a busca de soluções das perturbações vividas, pois haveria o conhecimento do prazer puro, dissociado e isento da lembrança da dor, traduzida no Bem.

O prazer obtido pelo saber da experiência dor é estorvo, enquanto que o obtido pelo desejo de saber, é estado de pureza, resultado de nenhum sofrimento e tampouco de qualquer falta dolorosa, não estando atrelado ao alívio do desaparecimento da dor: modalidade de saber chamada sapiência: saber sem dor, mas todo sabor possível. Mas, a experiência do sábio não está desvinculada do desejo: a atitude de sapiência visa ao Bem e à verdade. Tal modalidade desejante aciona o sujeito à descoberta de esteios às incertezas amanhã como terreno sombrio. Assim, o desejo sobrevém da inclinação do sujeito a si ou do amor de si: eis a via gloriosa que leva ao saber, onde opera o desejo de desejar como condição do desejo de saber. São esses os processos presentes na aventura do sujeito para a garantia de sua existência: o desejo, o ato de desejar e a coisa desejada formulada num para do ato de desejar. Eis a douta ignorância que faz o sujeito mobilizar-se para inventar na sua perplexidade ante as coisas do mundo. Perplexidade, não desconhecimento, mas um modo de ser, cujo ponto de partida é a posição de não-saber, para ser produzido o que é possível saber. O não-saber mobiliza o sujeito à ação. Ao agir, acumula saber na estrutura aberta que incita a construção do impossível ao fechamento. A busca da verdade o aciona para tentar suturar o vazio originário, na esperança de encontrar que responde pela falha ôntica. Se a verdade é o centro de interesse do ser, há relação entre verdade e ser, sendo o sujeito o esforço empreendido para alcançá-la. Na tentativa de produzir soluções enigmáticas questões, o homem construiu o saber textual, condição da experiência humana, deparando-se com o saber pessoal, enunciado e transmitido pelas pegadas com as quais o homem se livra das amarras que o aproximaria a um ser sem história e sem participação efetiva na transformação do mundo.

 

Referências Bibliográficas

CHARLOT, B. (2000). Da relação com o saber. Porto Alegre: Artes Médicas.

FREUD, S. (1906). Sobre as teorias sexuais das crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LACAN, J. (1992). O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

MAGALHÃES, A. P. (1195). et. al.. Saber, verdade, impasse. Rio de Janeiro: Nau.

SALAFIA, A. (1995). et. al. Saber, verdade, impasse. Rio de Janeiro: Nau.

SALIBA, A. M. P. (s/d). As últimas coisas, entre saber e gozo. Letra Freudiana. XI, 10/11/12.

SZPILKA, J. I. (1979). La realizacion imposible. Buenos Aires: Trieb.