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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Infância e adolescência – o tempo em questão

 

 

Beatriz Cauduro Cruz GutierraI; Glaucineia Gomes de LimaII

IUniversidade São Marcos / FTS / USP
IIUniversidade Mackenzie / USP

 

 

De que tempo se fala ao se referir à infância e adolescência? Apesar da naturalização dos tempos da vida no nosso discurso cotidiano, historiadores e antropólogos, nos comprovam que as idades da vida são fruto de circunstâncias histórico-sociais. No entanto, quando estabelecidas, se apresentam com uma consistência tal, que se naturalizam para todo ser humano. Esta naturalização é de tal ordem que ouvimos as crianças dizendo "sou p.a. = pré-adolescente" ou nos deparamos com situações onde os jovens justificam seus atos insolentes dizendo-se "aborrescentes". Ser "criança" ou ser "adolescente", conseqüentemente, adulto ou da terceira idade, constituem fortes traços de identificação e representam lugares sociais diversificados, com direitos e deveres específicos.

Marie-Jean Sauret (1997) mostra a que responde o discurso da psicologia quando subdivide e naturaliza as fases da vida: "...as psicologias existentes pensam reter com a criança (acrescentamos – a adolescência) a estrutura mínima do humano. Vai se tratar de servir-se dela de alguma forma como de um "elemento experimental", permitindo validar as teorias do sujeito compatíveis com as exigências do capitalismo: medir a inteligência em Q.I. é encarar o sujeito como capaz de acumular um saber ele mesmo capitalizável; reduzir um indivíduo às suas performances cognitivas é identificá-lo quase a uma máquina programável: e os psicólogos até inventaram um nome para as doenças de acumulação, os addictions". (1997, p. 14).

A abordagem psicanalítica se afasta de uma abordagem psicogenética, que atribui sentidos a estes dois períodos da vida e estabelece ideais aos quais crianças e adolescentes devem se adequar. No entanto, a psicanálise deu asas a outras leituras sobre desenvolvimento: o desenvolvimento psicossexual. Segundo Cirino (2001), Freud nos apresentou conceitos relativos ao desenvolvimento psicossexual, com fases específicas da libido que possibilitaram os discursos sobre fixações e regressões. No entanto, em seus últimos textos, encontramos o pai da psicanálise questionando-se em relação à possibilidade de uma linearidade e de superações de fases quando tratamos dos processos inconscientes: "Nossa atitude para com as fases da organização da libido modificou-se um pouco, de modo geral. Ao passo que, anteriormente, enfatizávamos principalmente a forma como cada fase transcorria antes da fase seguinte, nossa atenção, agora, dirige-se aos fatos que nos mostram quanto de cada fase anterior persiste junto a configurações subseqüentes, e depois delas, e obtém uma representação permanente na economia libidinal e no caráter da pessoa". (Freud, 1933, p. 125).

Assim, podemos deduzir que a ênfase na cronologia não encontra tanta ressonância no final da obra freudiana, que se preocupa com processos relativos às pulsões de vida e de morte e com os organizadores lógicos do sujeito: auto-erotismo, constituição do eu, complexo de castração, complexo de Édipo e dissolução do complexo.

Segundo Lacan o que marca um certo ritmo do desenvolvimento é a relação com o desejo do Outro, que opera sobre a criança através de seu discurso. As fases pré-genitais são, então, concebidas como forma de demandas re-situadas a partir do complexo de castração. Lacan é claro ao desenvolver o conceito no Seminário 11: "A angústia de castração é como um fio que perfura todas as etapas do desenvolvimento. Ela orienta as relações que são anteriores à sua aparição propriamente dita - desmame, disciplina anal, etc. Ela cristaliza cada um destes momentos numa dialética que tem por centro o mau encontro. Se os estágios são consistentes, é em função de seu registro possível em termos de mau encontro. O mau encontro central está no nível do sexual"(1964, p. 65)

Para falarmos de castração, de respostas do sujeito a partir da linha condutora do complexo de castração, estamos diante do ser que, num momento mítico e extremamente primitivo, se defrontou a castração do Outro e, conforme sua insondável decisão, submeteu-se (ou não) ao significante entrando no jogo da linguagem, resultando na extração do objeto no campo do real e na instalação do sujeito dividido, marcado pelo significante.

É importante retomar a ênfase de Lacan (1965-66) em seu texto, "A ciência e a verdade" de que o sujeito do inconsciente não conhece idade, pois o sujeito que está em jogo no sexual é o sujeito dividido pelo objeto. Para ele, a criança não deve ser considerada como um subdesenvolvido sexual, tendo em vista que o infantil é deduzido na experiência analítica sobre a relação de um sujeito com o gozo. Lacan vai deixar claro que é importante atentar para o que acontece de original na infância, que vai ter a ver com a marca deixada pelo Outro da linguagem, resultando na definição da relação do sujeito como o objeto.

A psicanálise trata do infantil, que retorna sempre, independente da idade cronológica do sujeito. O infantil é atemporal, haverá um eterno retorno do infantil no presente, seja em que tempo da vida se esteja, esta é a grande lição de Freud. Ao falar de neurose do adulto como repetição da neurose infantil, o mestre vienense fala que, em uma análise, do que se trata é deste infantil. O infantil seria o efeito da linguagem na constituição do ser falante, na constituição do sujeito do inconsciente.

Para Gerbase (1998), o sujeito do inconsciente não coincide com as etapas da vida chamadas idades: da criança, do adolescente e do adulto. A criança interessa no nível do direito, no nível da pedagogia. A resposta da psicanálise não seria: "a criança é aquela que não pode trabalhar", ou a "criança é aquela que não é" passível da lei ", o a" criança é aquele sujeito que está a aprender. Para a psicanálise, a criança é aquela que não pode responder pelo seu gozo.

O que se chama desenvolvimento, evolução, diz respeito ao fato de que o sujeito é chamado, a cada vez, a responder a uma nova conjuntura: do desmame, do aprendizado da higiene, do aprendizado da fala, do aprendizado da leitura e escrita e do gozo do Outro sexo, que acontece na adolescência e em seguida, a conjuntura da entrada na universidade, do trabalho. O sujeito, efeito de sentido da linguagem, responderá com um rearranjo, uma nova combinatória.

Segundo Gerbase, a única divisão que pode ser feita entre a criança e o adulto é a latência, conceito freudiano para dizer que há uma etapa em que não é responsável pelo gozo do corpo do outro e uma etapa em que o sujeito passa a ser responsável pelo gozo do Outro sexo, o gozo d’A mulher. Na latência, vai se dar a amnésia e o sujeito passa a pensar que está começando tudo, quando se trata de uma reedição. A latência, o esquecimento vai marcar que o sujeito é um continuum e a única evolução que ele conhece é a passagem da possibilidade de não ser responsável pelo seu gozo para a possibilidade de se responsabilizar por seu gozo, posto que está aparelhado pela linguagem para responder ao seu gozo.

Segundo Elia (1995), infantil é a sexualidade, que é definida por Freud como traumática, inassimilável, para a qual resta um saber que lhe seja correlato. A sexualidade é impossível de uma plena representação no campo do significante. A partir da sua clínica, Freud não vai apresentar esperanças de que a sexualidade infantil seja sucedida por uma sexualidade adulta. A sexualidade infantil vai ser caracterizada pela não-inscrição da relação sexual, pela inexistência do Outro sexo, o sexo d’A mulher.

Em sua Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, Lacan (1960) vai demonstrar que a pessoa seja grande ou pequena, não passa de uma máscara. A diferença entre a criança, o adolescente e o adulto irá se apresentar na psicanálise como uma questão que insiste e que poderia ser assim formulada: é possível transformar-se em um verdadeiro adulto? O que Lacan (1968) irá afirmar na "Alocução sobre as psicoses da criança" é: "O que cheguei a acreditar, veja, no ocaso da minha vida, é que não existem pessoas grandes". Ele faz desse ponto o sinal de entrada em um mundo de segregação, ao qual vai dar o nome de "criança generalizada".

O termo impróprio à experiência psicanalítica é o termo de adultos e não de crianças. Falar de adulto é falar de um sujeito que evolui e que amadurece. Falar de infantil é falar de algo que não evolui, mas que retorna, que insiste e persiste em não se inscrever na ordem significante. O infantil é uma categoria psicanalítica e concerne a todo o sujeito, definido pelo ideal social a partir das idades da vida: criança, adulto, adolescente, idoso.

Não se pode, entretanto, negar o real orgânico, a maturação biológica, mas não se deve reduzir o sujeito ao seu real biológico, pois o verbo terá incidências sobre o organismo. O adulto não elimina o infantil. Não é possível, no entanto, negar a existência de determinantes como o organismo, a sociedade, a história, salienta Sauret. Se os determinantes existem, o sujeito é responsável pelo que ele faz de seus determinantes. Ele lembra Lacan, que incriminou psicanalistas por terem cedido à tolice reinante e não terem estado à altura da invenção de Freud, do "ser para o sexo" e passaram a ver a criança (e a adolescência) como o nome de um desenvolvimento suposto natural, que partiria do nascimento, da concepção ou de um tempo sem palavra observável até à palavra observável. A relação do sujeito com a linguagem, com o corpo e com o Outro seria regulada unicamente pela maturação. Essa concepção representaria o máximo de resistências à psicanálise.

Se Lacan fala de uma "criança generalizada" e dos seus efeitos de segregação, acreditamos que tratar a criança como um sujeito por inteiro, tal como apontam os Lefort (1991), retirando-a do lugar de  uma pessoa em desenvolvimento, é oferecer um discurso anti-segregativo, fazendo do discurso psicanalítico um discurso não redutível aos efeitos dos discursos da ciência e do capitalismo.

Acreditamos que os sujeitos têm que fazer face a quaisquer que sejam os seus determinantes (história, organismo, cultura, educação) e que a criança e o adolescente serão convocados a ocupar um lugar em relação ao ideal que dela se espera. Tais determinantes não são sem conseqüência. Determinantes que vão ter efeitos sobre as diferenças e especificidades que encontramos nas psicanálises dos sujeitos nomeados criança ou adolescente.

Sabemos que o sujeito em análise não é criança, adolescente ou o idoso. Nem o adulto fixado em fases pré-genitais que devem se desenvolver até o "genital love". Segundo Cirino, a análise tem como foco "tanto um sujeito que não tem idade – o sujeito do inconsciente – quanto uma satisfação paradoxal que não se desenvolve – o gozo". (2001, p. 50).

Apesar de o sujeito em questão, para a psicanálise, não ter relação com as fases da vida estabelecidas cronologicamente, não se há de negar que estas fases da vida sociais podem trazer conseqüências para os manejos na clínica. A condição da criança é a de não poder se responsabilizar por seu gozo. Ela tem uma condição de dependência - criança ou adolescente, geralmente, não dispõem de meios econômicos e jurídicos para sustentar seus atos, sendo apresentadas à análise através do discurso de seus responsáveis.

O analista deve realizar os manejos necessários com os pais e com a criança de tal forma a permitir o prosseguimento da análise permitindo a "tomada de palavra" por parte da criança e do adolescente. São manejos para garantir que a análise se dê visando o sujeito, como resultado da operação significante.

A adolescência, por sua vez, constitui-se como um certo tempo marcado pela angústia e pela crise de semblantes – momento culturalmente delimitado e não efeito de um desenvolvimento psicogenético. Momento que pode ter como efeito a dificuldade da entrada em análise por parte dos jovens. Isto não significa que a condução da análise se diferencie enquanto meta e nem que haja um desejo diferenciado de analista no tratamento de adolescentes. Alberti (2004) comenta sobre esta particularidade da transferência no trabalho com adolescentes, o que faz o analista "cair" mais facilmente do lugar de suposto saber. Cabe o analista responder a partir de sua falta-a-ser.

Talvez a análise de sujeitos, neste tempo da adolescência, possa nos remeter à necessidade do desejo decidido do analista e de um processo extremamente pautado no discurso analítico. Cabe ao analista reconhecer os processos do sujeito humano quando deparado à questão da sexualidade (desde a infância) e sustentar a função da análise que visa o sujeito, em suas determinações significantes, com seu infantil que sempre retorna, até mesmo na infância...

Segundo Elia (op. cit.), a criança, o adolescente, o idoso, o pobre ou qualquer outra atribuição dada pela ordem social constituem nomes do impossível do discurso analítico e convocam a psicanálise não para defini-los ou conceituá-los, mas para exigir o seu trabalho e, como tal, persistem na exigência de trabalho do psicanalista. Criança ou adolescentes são significantes e só podem representar um sujeito para outro significante, mas tal operação deixa um resto, furo irrepresentável no nível da representação significante do sujeito.

Trata-se de fazer cair a criança e o adolescente e fazer falar o sujeito e seu infantil, sustentando ferreamente o desejo de analista. Segundo André (1995)"(...) o desejo de analista possa ser o de levar o sujeito, na análise, até o ponto em que esta sujeição primária ao significante, feita do acaso de um encontro, possa se repetir e, desta vez, ser escolhida pelo sujeito".

Se há especificidade – pais, laços social que não ofertam possibilidades de identificação – nas análises das crianças e adolescentes, há certamente um lugar oferecido pelo Outro, ao qual cada sujeito tem que responder. Somente para quem encara, rigorosamente, tais questões, é possível empreender a análise de uma pequena pessoa, seja em que idade da vida ela se encontre...   

 

Referências bibliográficas:

ALBERTI, S. (1996) Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Relumé-Dumará.

ANDRE, S. (1995) A impostura perversa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

CIRINO, O. (2001). Psicanálise e psiquiatria com crianças: desenvolvimento ou estrutura. Belo Horizonte: Ed. Autêntica.

ELIA, L. (1995). Sobre cronologia e estrutura. In: Fort-da n. 3, pp. 101-111.

FREUD, S. (1933). Ansiedade e vida instintual, In: Edição Standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.), (Vol. 22, pp. 103-138).Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1980.

GERBASE, J. (1998). Entrevista. In: Carrosel n. 2, pp. 11-23.

LACAN, J.(1960). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: "Psicanálise e estrutura da personalidade". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.

_________ (1964). Seminário 11- Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

__________ (1965-66). A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998, pp. 869-892.

__________ (1968). Alocução sobre as psicoses na criança. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003, pp. 359-368.

_________(1972-73) Seminário 20 – Mais ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

LEFORT, R.e R. Um "passo a mais" entre a criança e o adulto: a estrutura do corpo. In: MILLER, J (org.) A criança no discurso analítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 17- 21.

SAURET, M-J (1998). O infantil e a estrutura. Trad. Sílmia Sobreira. São Paulo: EBP – SP, 1998.