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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
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An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
As ilusões psico(bio)lógicas do século XIX ortopedizaram o brincar infantil no século XXI?
Maria da Glória Feitosa Freitas
Mestre em educação pela FEUSP
No século XX, a Psicologia do Jogo tratou de divulgar a relevância dos jogos infantis para o desenvolvimento humano. Isso explica a insistência dos pesquisadores do tema em perceber as atividades lúdicas infantis, prioritariamente, pela ótica das ricas contribuições para um certo desenvolvimento já previsto, com grandes chances de boa execução, se bem controlado durante todo o percurso (ou seja, até certo ponto inato, passível de ser estimulado e testado).
Trataremos aqui de compreender os séculos e fatos antecedentes que condicionaram a realidade atual dos estudos psicológicos do brincar infantil. Exercitaremos a procura de elementos comuns ou discretas alianças (até mesmo não formalmente estabelecidas) entre as teorias psicológicas do jogo infantil elaboradas por Karl Groos e por Stanley Hall e algumas posturas contemporâneas em relação ao brincar infantil (mesmo quando não os citem como fonte de inspiração).
Queremos investigar a possibilidade de uma certa filiação entre as posições correntes e duas posições dentro da Psicologia do Jogo, que limitam o brincar infantil por significá-lo como algo que "prepara a criança para a vida futura (Gross) ou, ainda, representa um instinto herdado do passado (Stanley Hall)". (Kishimoto, 1994, p.10)
Iremos correr este risco, apesar de uma aparente liberdade das posições atuais em relação à Psicologia nascente novecentista, e que se expressa em opiniões (então está viva?), até mesmo do tipo: "O desenvolvimento infantil está em processo acelerado de mudanças, as crianças estão desenvolvendo suas potencialidades precocemente em relação às teorias existentes." (Lopes, 1999, p. 17)
As posições psicológicas de Stanley Hall ou Karl Groos não se diferenciam no culto às estimulações de capacidades maturacionais, se as comparamos com as demais e atuais posições hegemônicas da Psicologia. Sendo que pouca coisa mudou no discurso psicológico dominante do século XIX para cá (é isso?), defendem os manuais modernos sobre jogos, e com bastante aceitação no mercado que decide as publicações, que "as diferentes áreas do cérebro humano se desenvolvem por meio de estímulos que a criança recebe ao longo dos sete anos de vida; portanto, como os estímulos são diferentes, conseqüentemente as reações também. As crianças hoje são mais inteligentes, mais espertas do que as de algumas décadas atrás." (Lopes, 1999, 17)
Sendo assim, é possível encontrar livros que levantam propostas, usando jogos infantis, de aventurar-se no "conhecimento das características do aprendiz, para sabermos quais são as potencialidades que estão sendo desenvolvidas pelo ambiente e quais estão sendo esquecidas, quais os transtornos que este desequilíbrio pode causar dentro do desenvolvimento do indivíduo e como podemos passar conteúdos de forma eficiente e estimulante para a criança." (Lopes, 1999, p. 19) O brincar infantil resume-se a uma questão de treinar / estimular instintos inatos, sendo tão-somente um meio de atingir um fim: evitar qualquer imprevisto e fazer acontecer a programação genética comum aos seres vivos?
Assim, o próximo passo do adulto moderno é propor um uso educativo (e científico?) ao jogo infantil. E argumentar que é "muito mais fácil e eficiente aprender por meio de jogos, e isso é válido para todas as idades, desde o maternal até a fase adulta. O jogo em si possui componentes do cotidiano e o envolvimento desperta o interesse do aprendiz, que se torna sujeito ativo do processo, e a confecção dos próprios jogos é ainda muito mais emocionante do que apenas jogar." (Lopes, 1999, p. 19)
E conseqüentemente, surgem manuais que nos oferecem uma forma eficaz de educar com alegria, e algum autor a confessar suas descobertas: "um método que utilizei em clínica psicopedagógica com diferentes níveis de dificuldades de aprendizagem e com excelentes resultados, podendo, portanto, ser usado por educadores e reeducadores. Através desse método o processo ensino-aprendizagem se torna eficiente, à medida que visa um desenvolvimento globalizado, inter-relaciona diversas áreas do conhecimento e atende à demanda do aprendiz, de forma que este seja sujeito ativo do processo."(Lopes, 1999, p.23) Paradoxalmente, a proposta é deixar a criança (qualquer que seja ela) livre para criar. Só que o preço da liberdade é a eterna vigilância? É necessário recorrer a um manual programado para produzir criatividade e liberdade para aprender? Um método utilizado em determinada situação servirá para outras tantas e diversas situações e sujeitos?
E a resposta que obtemos é que se trata de "um manual prático, ao qual o educador pode recorrer a fim de obter modelos para seu trabalho dentro de um enfoque construtivista, que auxilia o educando na construção de seu conhecimento. Ao educador cabe o conhecimento dos objetivos propostos em cada jogo, a preparação prévia do material a ser utilizado e a experimentação antecipada para maior domínio da situação, que possibilite a antecipação de eventuais perguntas ou questionamentos por parte dos educandos." (Lopes, 1999, p. 24) O imprevisto ameaça? O improviso mete medo?
Parece-nos que Itard vive nesta proposta moderna e descrita como construtivista, mesmo que ele pareça bem morto! Itard era construtivista? Esse discurso rotulado de construtivista, acima descrito, revela que nada é feito em vão, com o uso do lúdico com fins educativos ou terapêuticos? Há que se treinar a concentração, a ansiedade, a atenção, as habilidades latentes e ansiosas das crianças por a estimulação de algum psicopedagogo ultramoderno e bem treinado nas técnicas contemporâneas de normatização?
Segundo relato de um trabalho psicopedagógico, descrito como emocionante, uma criança, observando o que o adulto fazia (iniciou-se o trabalho de desenvolvimento das habilidades de observação, atenção e concentração), começou depois a fazer um desenho. Em seguida, lembrei-a de que deveria fazer outro igual para formar um par (os objetivos propostos de desenvolvimento do poder de atenção, obediência a regras e a introdução de conceitos matemáticos de pareamento foram trabalhados). Só conseguimos fazer quatro pares de figuras durante a sessão, interrompendo o trabalho para continuar na próxima (isso foi muito difícil para ele, chorou, não queria ir embora sem terminar). (Lopes, 1999, p.28)
O trabalho prosseguiu na sessão posterior, o menino veio bastante entusiasmado para terminar o trabalho, e conseguimos, mas só deu tempo para jogarmos uma vez, pois ele não queria respeitar as regras do jogo, olhando as figuras antes de jogar. Comecei também a olhar as figuras, aí ele resolveu jogar dentro das regras, mas o tempo acabou e teve de, novamente, esperar a outra sessão para satisfazer seu desejo. Dessa maneira trabalhei para que aprendesse a postergar suas vontades, abaixar o nível de ansiedade, compreender que, para algumas coisas poderem ser feitas, é preciso respeitar as regras, e que se forem desrespeitadas não é possível jogar.(Lopes, 1999, p. 28)
O que fazia Itard com o seu ‘observado’, usando também jogos, a mais ou a menos do que cercear o brincar infantil e assemelhar-se a este depoimento acima? Quem é mais contemporâneo Itard ou estas técnicas devidamente testadas? O que há de mais moderno é filiado ao pensamento de Itard?
Vale lembrar que "a adoção de jogos como um recurso que o mediador pode utilizar na intervenção pedagógica com crianças deficientes mentais não é prática recente. Os primeiros trabalhos realizados, neste sentido, foram de Itard (apud Pessotti, 1984) e Seguin (apud Pessotti, 1984). Mais tarde, foram incorporados e ampliados por outros educadores como Maria Montessori. Atualmente, são amplamente difundidos em muitas escolas e por muitos educadores do mundo inteiro que trabalham com deficientes mentais." (Ide, 1996, p. 104)
Itard, este obstinado homem (amante?) das ciências e representante da transição entre os séculos XVIII e XIX, vivia frustrado com o comportamento indesejado de seu ‘objeto’ (indivíduo?) de estudo.
Chegando mesmo a desabafar e confessar em certo momento de sua trajetória, que foi "impossível inspirar-lhe qualquer interesse pelos jogos próprios da sua idade. Estou quase certo de que, se o tivesse conseguido, obteria vantagens apreciáveis, como se compreende se nos lembrarmos da poderosa influência que, para os primeiros desenvolvimentos de inteligência, exercem os brinquedos da infância, bem como as pequenas voluptuosidades do órgão do gesto." (Itard, 1988 p. 158)
Itard estimulou esta obsessão por oferecer brinquedos datados (com faixa etária apropriada), com a posologia indicada na embalagem? Ele, em nome da Ciência, usou na virada do século XIX instrumentos lúdicos em nome do progresso do pobre Victor. E nos narra que ofereceu brinquedos que o garoto tratou de queimar, quando se viu livre das técnicas lúdicas deste estudioso do século XIX ou talvez para ser poupado do insípido uso do lúdico em nome da Ciência. Portanto, desde o século XIX as crianças quebram estes jogos ‘educativos’ modernos, e este ato de destruição não significa nada para os especialistas no brincar infantil? O que leva os especialistas a só repetir a importância de doses diárias do uso de tal brinquedo como tarefa necessária a um efetivo desenvolvimento?
Montessori, preocupada em fazer agir a pedagogia científica, partindo da defesa de um espaço dentro da escola para a criança se desenvolver livremente, "organizou um conjunto de materiais criados por Itard e Seguin, destinados à educação sensorial, intelectual e moral. Tais materiais incluem exercícios para a apreensão de atividades do cotidiano, como quadros de amarrar, abotoar, mobiliário adequado ao tamanho da criança, objetos domésticos, além de materiais destinados ao desenvolvimento gradativo da inteligência e à aquisição da cultura." (Kishimoto, 1993, p. 114)
Este material não deveria ser usado de forma espontânea pela criança: "Para graduar a educação da primeira infância e evitar casualidades na formação espiritual, a desordem e a dispersão de interesse, Montessori determinou que seus materiais fossem oferecidos à criança segundo uma ordem progressiva. Cada material com uma finalidade específica: os encaixes serviriam apenas para os exercícios de encaixe, as formas geométricas para a sua distinção etc. Nunca empregar, por exemplo, as pranchas da escada longa, de progressão decimétrica, como espingardas, nem os cilindros de encaixar como eixos de carro (Soares, 1931). Montessori, na obra "L’Enfant (s.d., pp. 144-145), manifestou-se contra a utilização de brinquedos na educação infantil. Eu compreendi que o brinquedo era, sem dúvida alguma, coisa inferior na vida da criança e que (a ele) se recorre quando não há nada melhor. "(Kishimoto, 1993, p. 114)
É impressionante! Séculos passam, mas a preocupação de Itard vive em nós! O que esperamos, nesses tempos que vivemos, é encontrar, ao lado do brinquedo a ser dado para uma criança, toda a descrição das vantagens do uso deste instrumento para desenvolver capacidades perceptivas, físicas, mentais e de sociabilidade. (Esquecemos que se trata de uma coisa feita, inicialmente, para brincar?). Esperamos encontrar um vendedor ‘bem instruído’ sobre os mesmos benefícios (para não ser preciso ler a bula com os usos e precauções); e que possibilite o nosso ingresso de adultos engajados na Modernidade e, ao mesmo tempo irresponsáveis quanto ao futuro das nossas crianças – já que acabamos por delegar a responsabilidade com o brincar infantil aos comerciantes, aos fabricantes, aos teóricos que testam a eficácia das fabulosas ‘máquinas’ brincantes que, entretanto, as crianças quebram rapidamente.
Quando as crianças contemporâneas quebram os modernos brinquedos, seus pais dizem que não compreendem seus gestos, pois nada lhes falta a não ser o modelo mais avançado que em breve chegará às lojas e também será ofertado aos seus filhos (e que também serão quebrados?). Os anos passaram e aperfeiçoamos as técnicas! Itard, por tudo o que a história nos deu a entender sobre ele, ficaria encantado ao entrar em um desses "shoppings" do século XXI e ao ver as últimas novidades do mercado das ilusões lúdicas contemporâneas (pena que, sendo um cientista, não tenha criado uma máquina que o imortalizasse até os nossos tempos!)
E voltando à transição entre os séculos XVIII e XIX, tempos que influenciaram o nosso olhar psicológico sobre o brincar, se Victor não apreciava os brinquedos de Itard, tinha lá as suas brincadeirinhas preferidas! E Itard relata-as, mas não as diferencia dos seus ‘passatempos’ impostos ao menino (usando jogos reconhecidos cientificamente?) e que pouca euforia causavam em Victor. Nem de longe Itard percebeu que havia um gostar de um tipo de atividade lúdica que manifestava uma atitude de intolerância em relação às propostas do cientista.
Entretanto, vendo e não refletindo sobre o que estava diante de seus olhos, observou que no "jardim, há algum tempo que o deixam passear de carrinho. Quando deseja, se ninguém aparece para o empurrar, entra em casa, segura alguém pelo braço, leva-o ao jardim e coloca-lhe nas mãos os braçais do carro, onde se senta imediatamente; quando resistem a este primeiro convite, levanta-se, volta a pegar no carrinho de mão, dá algumas voltas e senta-se de novo, imaginando sem dúvida que só não lhe satisfizeram os desejos porque não os exprimiu com suficiente clareza."( Itard,1988, p. 173)
Itard, casando com a Ciência novecentista, está longe do que deveria ser um pai, em qualquer tempo da história. Já os pais no século XXI, apaixonados pela tecnologia, são diferentes ou parecem mais cientistas do século XIX, replicantes de Itard ou consumidores das maravilhosas criações lúdicas dos Itards atuais?
Encontrados prontos nas lojas, os brinquedos perderam aquele algo mais que nossos entrevistados de Guriú (localidade do litoral oeste aonde realizamos a pesquisa de 1996 a 1999) nos narraram (e que lá mesmo se vai também perdendo...): o amor de quem os fez e o brilho nos olhos de quem os recebe e não mais os esquece.
Por que nós, as companhias adultas das crianças, nos destituímos deste lugar junto ao brincar infantil? Por que obedecemos, tão-somente, aos ditames da Ciência? Por que julgamos que os especialistas sabem mais do que os pais, educadores e demais acompanhantes da infância? Por que acreditamos tanto nas vantagens do jogo infantil para o desenvolvimento de capacidades maturativas e do seu uso em metodologias eficazes contra o fracasso escolar, que pipocam nos quatro cantos do planeta?
A lógica que nos anima parece ser: o melhor seria que, estando tudo pronto, brinquedos testados, manuais de brincadeiras apropriadas para todas as faixas etárias e métodos lúdico-pedagógicos, não nos restasse mais nada a não ser relaxar e acreditar que o esperado aconteça: que as crianças cresçam harmonicamente e reproduzam nas crianças do próximo milênio a nossa maravilhosa e científica receita para conduzi-las: respeitar as leis sagradas da Ciência! Parece que Itard vive entre nós!
A brincadeira infantil é enlatada, encaixada, normatizada e vendida em supermercados. Livros ensinam as crianças a brincar e, aos adultos, o que deve ser um pai moderno (aquele que compra novidades? alguém que abdica do lugar de construtor de brinquedos?). Enquanto os adultos renunciam aos seus papéis, as crianças brincam para entender o mundo dos adultos que querem habitar e saber do desejo que os animam.
Referências bibliográficas:
IDE, S. M.(1996) O jogo e o fracasso escolar. In: T. M. Kishimoto. (Org.). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo, SP: Cortez.
ITARD, J.(1988) Memória acerca dos primeiros progressos de Vitor de Aveyron. In: L. Malson, As Crianças selvagens – Mito e realidade. (C. C. Rodrigues, trad.), Porto, Portugal: Civilização Ed.
KISHIMOTO, T.M. (1994) O jogo e a Educação infantil. São Paulo, SP: Ed. Pioneira.
KISHIMOTO, T. M.(1993) Jogos Tradicionais infantis: o jogo, a criança e a educação. Petrópolis, RJ: Vozes.
LOPES, M.G.(1999) Jogos na educação: criar, fazer, jogar. São Paulo, SP: Cortez.