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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
On-line ISBN 978-85-60944-06-4
An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
Antigas dramistas de Guriú metamorfoseadas em mestras de dramas cantados: C’est la vie? (ou como diria Gonzaguinha: é a vida, é bonita e é bonita ?)
Maria da Glória Feitosa Freitas
Doutoranda na UFC e Professora Assistente na Universidade Estadual Vale do Acaraú
Apresento aqui apenas uma das mais de cinqüenta ex-dramistas entrevistadas. Pela força desta corrente de filiação simbólica que se evidencia de um canto que vem de dentro delas; eis que surge nesta mulher a fala que representa todas as demais.
Lajonquière diz que "a educação, na medida em que filia, entre (os) outros, o mestre de plantão e o aprendiz circunstancial a uma tradição existencial, possibilita que cada um se reconheça no outro; isto é, que cada um reconheça que o outro porta uma marca semelhante à sua".(1997, p. 33) E julgo que assim se fez também em Guriú.
E por a lembrança de um som, de uma boa música cantada pelo Velho e sempre Chico que quero ir apresentando a minha entrevistada atriz, um das cinqüenta entrevistadas e que se unem em um passado glorioso de atriz-menina e algumas delas de renomadas mestras de drama de Guriú, no litoral Oeste do Ceará.
Chico canta Beatriz, e isso é mesmo uma cantada, é a prova do en-canto do poeta pela sua cria-ação. E auxilia o bater palmas e ir entrando na casa das ex-dramistas de Guriú.
Ele fala-cantando:
Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida...
E Chico Buarque nos embala, e nos afasta do nefasto muito de bombas explodindo e matando crianças em escola russa. Povoados de tanto terror em cenário educacional, dentro de uma escola russa ou em quantas mais, podemos encontrar em Freud recurso teórico para amparar nossa indignação diária pela propulsão de tantas violências. Freud diz que: Esse instinto agressivo é o derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com quem divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas babás tentem apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o céu. (1930, p. 81)
Já para aquietar o coração, uma música, por favor! Didier-Weil reflete sobre essa estranha absoluta que é a música, a quem ela responde, não segundo o modo freudiano da identificação: ‘Tu és idêntica a mim’, mas por essa dupla negação que corresponde a uma identificação metafórica: ‘Sim, tu não és estranha ao estranho que sou eu’. É nesse impulso a responder esse ‘sim’ à alteridade da música que observamos o primeiro tempo da pulsão invocante. (1999, p. 12)
Transcrevendo estas fitas carregadas de cantos aprendidos na infância e ainda vibrantes, outras e mais outras músicas vão habitando todo o meu ser e existir. Primeiro tempo da pulsão invocante, que é para Didier:
Tempo, inicialmente, paradoxal, já que, no instante mesmo em que eu podia crer que ia escutar a música, sou desmentido em minha pretensão descobrindo que não sou eu quem a escuta, mas que é ela o bom entendedor, ela que me ouve, que me entende. (1999, p. 12)
Pois viajei mais de quatrocentos quilômetros com a intenção de viver mais como pesquisadora do que como poeta à não menor emoção de tentar entrar dentro das casas, das vidas, do passado, do passado tão presente, dos risos e dos suspiros e do canto de antigas dramistas.
Esta dramista e mestra de drama, nascida em 1950 diz que quando começou a encenar dramas tinha "Sete, oito anos, por aí assim.E daí pronto eu não parei. Parei mesmo quando eu me casei, porque eu tinha outra criatividade, tinha outra profissão, veio marido, veio filho. Depois continuei como eu falei no pré-escolar".
Muito precoce começou a participar de drama aos sete anos, apesar de que a lei era de crianças maiores serem preparadas para dramistas. Ela justifica dizendo que era uma exceção à regra, um prodígio e nos revelou que "eu comecei criança, eu comecei criança, com sete ou oito anos, antes mesmo eu já brincava, botavam para eu fazer gracinha ali, que eu me requebrava e botavam para eu fazer graça. E mesmo o finado caboclinho Marques (que era o dono da casa e do lugar), só dava a casa, ele perguntava logo: ‘Você vai brincar?’, que era para ver eu brincar que ele achava engraçado. É, por isso que as meninas botavam eu.".
Minha entrevistada define-se como uma "Menina sapeca, toda vida eu fui criativa mesmo". E o conceito freudiano de Disposição poliforma perversa impõe-se aqui. Esta entrevistada, a menorzinha do grupo, fazia boa presença no palco.
Freud indica que devemos admitir que também a vida sexual exibe componentes que desde o início envolvem outras pessoas como objetos sexuais. Dessa natureza são as pulsões do prazer de olhar e de exibir, bem como a crueldade, que aparecem com certa independência das zonas erógenas e só mais tarde entram em relações estreitas com a vida genital, mas que na infância se fazem notar como aspirações autônomas, inicialmente separadas da atividade erógena. A criança pequena é, antes de mais nada, desprovida de vergonha, e em certos períodos de seus primeiros mostra uma satisfação inequívoca no desnudamento do corpo. (1905, p. 69)
A mestra faz o mapa do tesouro ou a sua trajetória para se fazer dramista. A preparação para ser dramista começa pela observação do espetáculo dos que já são reconhecidos pela comunidade, à sua época, como renomadas dramistas ou aquelas em processo de aprendizagem sob a orientação de um mestra.
Ela nos diz: Antes de eu participar em dramas, a minha mãe levava para os dramas destas moças mais velhas. Aí vi aquilo e fui gostando, fui indo e foi o tempo eu que fiquei e peguei em casa em imitar, eu mesma em casa imitava. Sim, tinha um circozinho que aparecia por aí, não é, aí eu via as baianas e aquelas brincadeiras de circo e quando eu chegava em casa eu ia imitar aquilo que eu via no circo, nos dramas, aí em casa eu fazia tudinho. Por isso o Finado caboclinho via aquilo, que ele gostava de andar na casa de meu pai e via eu com aquela arrumação e mandava eu brincar: ‘Brinca, menina, drama! Imita fulano de tal’. E eu fazia isso. Era a boca da noite, era a meio-dia quando ele chegava lá em casa. Era isso!
E vista assim, imitando as renomadas dramistas, olhada pelo pai e pelo dono do lugar, dono das terras, não custou a sair do lugar de espectadora e se torna dramista-aprendiz antes do lugar-comum que era a chegada da puberdade e adolescência.
Ela revela que só lembro que quando eu era criança de quatro, cinco, seis anos minha mãe levava para esses dramas. Quando eu chegava dos dramas no outro dia, eu ia imitar. Aí meu pai, o finado velho dono da terra, o velho Caboclim achavam engraçado, aí mandavam eu brincar, eu imitava, e aí as meninas viram que eu era assim e convidavam para eu brincar no drama com elas. Foi o tempo que elas pararam mais e eu continuei com meu grupo.
Tendo aprendido assim com suas amigas de palco, de tablado e mestras queridas; o que se podia fazer na hora da esperada hora da destituição das mais velhas deste lugar de atriz era não deixar o en-canto acabar. Pareço escutar a Alcione gritando: "Não deixa o samba morrer, não deixa o samba acabar". Aqui na realidade dos dramas de Guriú não acredito que alguém fizesse tal súplica. Uma geração encaminhava a outra e com alegria não havia outra saída a não ser se fazer mestra de drama. O casamento as condenou a uma só escolha: descer do palco feito com tábuas e não mais se esconder por trás das cortinas (empanados) feitas de lençóis antes do espetáculo começar.
Agora era ser mestra - a única possibilidade de ganho narcísico com os dramas. E nossa entrevistada explica que "os dramas, eu só não faço é mim representar, mas no momento em que eu estou ensinando, eu estou dançando, estou fazendo todos os gestos com elas."
E era necessário sair procurando neófitas, gente nova, sangue novo e com talento para dançar, cantar e encantar o público. Afinal os dramas não podem parar! E o elemento essencial era procurar aquelas que queriam ser dramistas e que sustentadas pelo desejo próprio e ânsia das mais velhas de cumprir a missão de quem en-sina ou seja quem mostra a sina alegre de ser dramista.
Ela vai citando os nomes das companheiras-dramistas e revela que era grande a participação de diversas mocinhas "que eram moças no meu tempo,elas eram moças naquele nosso tempo, tudo a gente brincava, um sábado uma ia, no outro sábado já era aquela era quem ia, as mocinhas naquela época do meu tempo tudo participava, que eu convidava. As que queriam, não é?! É foi até eu me casar, até na era de 72, quando eu me casei.".
Quando fui recebida para esta entrevista, após a sesta do depois do almoço, uma mania de Guriú, e quando o descanso no tucum (um jeito de chamar a rede nordestina); conseguiu dissipar dores, e permitiu o cantar desta ex-dramista. Apareceram Canções que nos seduziram...e que nos fazem concordar que:
no instante em que soa a música, uma estranha metamorfose se apodera de mim: até então eu podia passar meu tempo, na minha relação com o Outro, marcando meus limites para instruí-lo quanto ao limiar que ele não deveria violar para não pisar em meu território íntimo – e eis que agora um Outro se dirige a mim, solicitando um ouvinte inaudito a quem faz ouvir essa novidade siderante: ‘Em ti, estou em minha casa’. (DIDIER-WEIL, 1999, P. 10)
E ouvindo o cantar que continua sendo uma menina dramista não há como não lembrar de Paulinho da Viola a cantar ‘onde a dor não tem razão’:
Canto
Para dizer que no meu coração
Já não mais se agitam
As ondas de uma paixão
Ele não é mais abrigo de amores perdidos
É um lago mais tranqüilo
Aonde a dor não tem razão
Nele a semente de um novo amor nasceu
Livre de todo rancor em flor se abriu
Venho reabrir as janelas da vida
E cantar como já mais cantei
Esta felicidade ainda
Para cantar tem que ir vencendo o medo de gastar a fita do gravador alheio com versos quebrados, com buracos de palavras que não voltam. Mas vence tudo isso e canta. E diz "a Baiana de primeiro era assim" e começa a cantar...
A Baianinha quando vem chegando
Ela vem cheia de mil fantasias
Naquele tempo antigo...
Ela requebra, requebra, requebra
A baiana faceira é do Brasil
Ela vem toda cheia de renda
Vem do batuque
Vem se requebrando
Ela quebra de qualquer maneira
Com as mãos nas cadeiras
Vem se requebrando
Estas meninas, mulheres, senhoras, donas de casa cuidado da tapioca e temperando o peixe (driblando a dominação masculina que não admite ver suas mulheres em palco algum) e as idosas esperando os dias de ir à Camocim pegar o aposento aprenderam mais do que a arte de ser dramista ou ocupar um suposto lugar de quem sabe ensinar alguém que queria ser dramista a realizar seu desejo. Estes encontros de memorialistas abriram baús fechados por longos anos...
Lins prevê que quando a memória abre às suas portas e janelas, quando se deixa contaminar por outras memórias, outras recordações, outros lugares da memória – espaços grávidos de memórias, memória-esquecimento – ela faz ressurgir como por magia os odores e os sons, uma anedota, uma piada, um objeto, uma fotografia, a voz dos personagens familiares, a lembrança de seu corpo, de seus gestos, uma paisagem de um sítio da infância, um perfume, um odor quase carnal de um bolo, uma broa de milho ou...’les madaleines’de Proust! Fragrância e sons: um magma de evocação que acorda os fragmentos do passado escondido e cristaliza um imaginário, jardim secreto que se torna às vezes uma crença, um ideal, um totem mumificado que, ao contrário das aparências, uma vez provocado pelo pensamento da diferença, fere como as larvas de um vulcão ‘adormecido’. (2000, p. 9)
E o desenrolar de seus relatos abrem caminho para a certeza de que em algum momento de seus percursos se fizeram aprendizes de outras mestras e dentre muitas algum tempo mais tarde apostaram as horas no desejo de ser mestra de mais novas. E assim chegamos a concordar com Lajonquière que: todo aquele que ensina o faz, obviamente, porque, alguma vez, deve ter aprendido, ao menos, aquilo que tenta transmitir. Aquilo que o mestre ensina, embora seja dele, pois o apr(e)endeu, não lhe pertence. O aprendido é sempre emprestado de alguma tradição que já sabia o que fazer com a vida. Assim, aquele que aprende, de fato, contrai automaticamente uma dívida que, embora acredite às vezes tê-la com seu mestre ocasional, está em última instância assentado no registro dos ideais ou do simbólico.(1997, p. 27)
As dramistas de Guriú aprenderam, me ensinam e nos ensinam a engolir gota por gota com entusiasmo os versos do Gonzaguinha. Fizeram da vida algo mais do que tristeza, melancolia, repetição monótona de movimentos cotidianos e domésticos. Apostaram na alegria de dramatizar, cantar, dançar a possibilidade de momentos felizes de dramas:
Viver e não ter a vergonha de ser feliz
Cantar a beleza de ser um eterno aprendiz
Eu sei que a vida deveria ser bem melhor e será
Mas isto não impede que eu repita
É bonita, é bonita e é bonita.
Referências bibliográficas:
DIDIER-WEIL, A. (1999) Invocações : Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud. (D. D. Estrada, trad.), Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.
FREUD, S. (1905) Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. (P. D. Corrêa, trad.), Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1997.
_________ ( 1930) O Mal-Estar na Civilização. (J. O. A. Abreu, trad.), Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1997.
LAJONQUIÈRE, L. de (1997) Dos erros e em especial daquele de renunciar à educação : notas de Psicanálise e educação. Estilos da Clínica – Revista sobre a criança com problemas, 2 (2), 27 – 43.
LINS, D. S. (2000) Memória, esquecimento e perdão (Per-Dom). In. M. T. T. B. Lemos & N. A de Moraes Memória e Construções de identidades, (pp 09- 15). Rio de Janeiro, 7 letras Editora.