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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

O lugar da memória de vivências na instituição escolar e a constituição da identidade do professor: (im) possíveis conexões com a psicanálise

 

 

Inês Maria Marques Zanforlin Pires de Almeida

Universidade de Brasília

 

 

Importante observar que a memória de vivências na instituição escolar como dispositivo de pesquisa, destaca-se no contexto de mudanças paradigmáticas nas pesquisas humanas e sociais, particularmente as educacionais que vêm re-significando a proposição de alternativas para a abordagem qualitativa.

Nesta perspectiva, a memória educativa tanto pode ser reconhecida como lugar de expressão da subjetividade na constituição da identidade do professor por sua vivência na instituição escolar, pensada como um conjunto de práticas ou de relações sociais e marcada por significativas experiências assimiladas desde o período inicial da escolarização, quanto pode ser clareada a partir das (im) possíveis conexões com a psicanálise.

Assim, trabalhar com as memórias é reconhecer seus laços com a história de vida do professor pois alguma coisa do sujeito comparece, assim como as vicissitudes enfrentadas nas complexas relações entre objetividade e subjetividade, faz sentido crer que a maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente do que somos como sujeitos. Em toda sua complexidade, a memória guarda consigo a capacidade de resgatar o tempo-história como inscrito nas entranhas do atual ainda que, haja diferenciação entre o vivido e aquilo que se inscreve no psiquismo, entre a infância e sua interiorização.

Uma das principais características da memória é a sua atemporalidade. Há uma tensão produtiva entre verdade histórica e realidade psíquica, a enunciação e a própria lógica das lembranças atravessadas pela emoção. Segundo Meneses, "a própria sacralização da memória (os gregos fizeram dela uma divindade) revela, por si só, o alto valor que lhe é atribuído numa civilização de tradição oral, como foi, entre os séculos XII e VII, e antes da difusão da escrita, a da Grécia. Mnemosyne revela, assim, as ligações obscuras entre o rememorar e o inventar" (1993.p.15), a autora reconhece que esse topos fecundo tornar-se-á uma das mais arrojadas afirmações da psicanálise vinte e quatro séculos mais tarde.

Assim é possível entender os memoriais como narrativas de um sujeito-professor, um sujeito psíquico constituído em suas relações humanas e sociais, particularmente na instituição-escola, caminho este que nos introduz à teoria na qual o sujeito psíquico é rei, no dizer de Guirado (1995) : a Psicanálise (p.68).

Do fragmento de memória elaborada por uma professora (janeiro/2003) "...quando ali cheguei, apenas me acompanhava minha boneca de pano preto, único brinquedo que possuía, presente de minha tia-madrinha...eu era uma criança com oito anos e aparência de seis, magrinha de cabelos pretos...era o primeiro dia na escola e tremia de timidez, a professora nem se apresentou, eu me lembro muito bem do seu jeito mas prefiro nem dizer, era a primeira professora...eu chorava escondido"

Desde seu início, com o Freud da Interpretação dos Sonho (1900) a Psicanálise vem confirmando e significando o sujeito do inconsciente, da sexualidade, do sentido e do desejo. Desejo que se constitui na verdade fundamental da psicanálise, uma verdade que é um enigma a ser decifrado e, justamente por isso, a psicanálise constitui-se como teoria e prática do deciframento (Garcia-Roza,1998).

Desse modo, ainda que uma teoria e uma prática tenham sido criadas originalmente para decifrar um crime imaginário, mítico e genialmente introduzido por Freud (1913/1914) em Totem e Tabu, o deciframento, comparado às incursões da Arqueologia, tem na prática clínica seu setting por excelência. É possível, porém com inevitáveis ajustes teóricos e certa ousadia utilizar "migrações conceituais", termo aludido por Guirado (1995), para a leitura e decifração de um outro lugar, de outro discurso, por exemplo, de uma enunciação mínima contida nas memórias/vivências do professor.

Fundamentar-se teoricamente no aporte psicanalítico certamente é desafiador e exige esclarecer, diz Guirado " o lugar que joga a concepção de sujeito com que se trabalha, sobretudo, nessas regiões miscigenadas, nesses campos híbridos, em que os termos teóricos e metodológicos de um recorte analítico se propõem a produzir conhecimentos, compreensões e sentidos em âmbitos diversos daqueles em que eles próprios, historicamente, se produziram" (1995,p.76). Assim sendo, fica claro que o sujeito psíquico da psicanálise tem força conceitual operativa na relação analítica, podendo-se, porém, perdê-la a qualquer movimento, em outros contextos. Estes são alguns riscos a serem conscientemente assumidos no uso de ferramentas conceituais do campo psicanalítico.

Tendo em vista possibilidades de equívocos teóricos provocados por migrações conceituais, a preocupação com a demarcação teórica dos conceitos e/ou noções utilizados se faz presente, permeando todo o processo de análise da memória educativa, memória que, na própria teoria freudiana ocupa lugar central, percorrendo-a, pode-se dizer, de ponta a ponta.

Neste sentido, a tese apresentada por Freud (1925) em seu texto Uma Nota sobre o Bloco Mágico, suscitou interesse e indicou possibilidades para análises. Para explicar sua hipótese de como o aparelho mental desempenha sua função perceptual, recorreu à analogia com o dispositivo conhecido na época como Bloco Mágico: um pequeno invento em forma de prancha de resina ou cera castanha escura, com uma borda de papel; sobre a prancha está colocada uma folha fina e transparente, da qual a extremidade superior se encontra firmemente presa à prancha e a inferior repousa sobre ela sem estar nela fixada. Essa folha transparente tem duas camadas que podem ser desligadas salvo nas extremidades. Escreve-se sobre o celulóide da folha de cobertura, que funciona como escudo protetor contra estímulos, a camada que realmente recebe os estímulos é o papel.

Continuando a analogia, observa que, se levantando toda a folha de cobertura (celulóide e papel encerado) a escrita se desvanece, a superfície estará limpa para receber outras impressões, no entanto, é fácil descobrir que o traço permanente do que foi escrito estará retido sobre a prancha de cera e sob luz apropriada torna-se-á legível. Desse modo, escreveu Freud ( 1925) " o Bloco fornece não apenas uma superfície receptiva, utilizável repetidas vezes como uma lousa, mas também traços permanentes do que foi escrito como um bloco comum de papel, ele soluciona o problema de combinar as duas funções dividindo-as entre duas partes ou sistemas componentes separados mas inter-relacionados (p.258).

Não seria exagero, concluiu Freud, comparar a cobertura de celulóide e papel encerado ao sistema Pcpt-Cs (perceptual-consciente) e seu escudo protetor; a prancha de cera com o inconsciente por trás daqueles, e o aparecimento e desaparecimento da escrita com o bruxuleio e a extinção da consciência no processo da percepção. Em outras palavras, a hipótese freudiana mencionada, segundo a qual nosso aparelho mental possui uma capacidade receptiva ilimitada para novas percepções e, não obstante, registra delas traços mnêmicos permanentes, embora não inalteráveis, tornou possível encontrar respostas para questões suscitadas pelas leituras e análises das vivências na instituição escolar e registradas pelo professor.

Garcia-Roza (1998) salientou a importância concedida por Freud à memória, retomando dos escritos freudianos suas abordagens mais significativas. Iniciou com a afirmação contida na Comunicação preliminar ([1893-1895] 1996), segundo a qual os histéricos sofrem principalmente de reminiscências (p.43), passando pela declaração no início do Projeto ([1893-1895]1996) de que toda teoria psicológica que se pretenda digna de consideração tem que fornecer uma explicação para a memória, chegou à Carta 52 ([1886-1899] 1996) da correspondência à Fliess, onde afirma que o reordenamento de traços mnêmicos responde pela própria formação do aparelho psíquico (p.281). Concluiu assim que Freud nada mais fez do que assinalar o lugar central que a memória ocupa em sua construção teórica (p.44).

Do mesmo modo, ressaltam-se as três noções, que desempenharam importante papel na teoria freudiana, resenhadas por Garcia-Roza (1998), em torno das quais gravitaram as primeiras considerações teóricas e clínicas de Freud

- não é a experiência vivida pela criança que é considerada traumática, mas a sua lembrança. São as representações reinvestidas num aprés coup que vão produzir um efeito traumático e não o acontecimento na sua forma original (p.50). À semelhança da metáfora do fragmento de cerâmica descoberto pelo arqueólogo, os pequenos signos de nossa história oculta valem pelo seu caráter indicial, pelo que apontam para um passado arcaico e não pelo que são em si mesmos (p.10).

- as lembranças encobridoras são recordações de acontecimentos infantis que se caracterizam pela insignificância dos seus conteúdos mas que, apesar disso, não apenas não foram esquecidos como permaneceram na memória com uma nitidez surpreendente. A tese de Freud é de que tais lembranças encobrem outras, estas sim importantes, numa solução de compromisso semelhante à do sintoma (p.51).

- um terceiro fato que atesta a importância da memória na teoria psicanalítica, é a amnésia infantil, responsável pelo esquecimento de quase todos os acontecimentos dos primeiros anos de vida de um indivíduo (pp.50-51). Para Freud (1913): somente alguém que possa sondar as mentes das crianças será capaz de educá-las e nós, pessoas adultas, não podemos entender as crianças porque não mais entendemos a nossa própria infância. Nossa amnésia infantil prova que nos tornamos estranhos à nossa infância. A Psicanálise trouxe à luz os desejos, as estruturas de pensamento e os processos de desenvolvimento da infância (p.190).

Esses aspectos assinalados seriam suficientes para caracterizar a originalidade da concepção de Freud sobre a memória, memória do inconsciente. Se ocorrem semelhanças com as teorias psicológicas e até mesmo filosóficas, são apenas superficiais. A noção fundante da relação psíquico e memória é a de que não é o aparato psíquico pré-condição para a memória, mas esta é pré-condição para que se forme o aparato psíquico, ou seja, não há psíquico sem memória (Garcia-Roza,1998,p.45).

O esforço anunciado sobre as questões teórico-metodológicas referentes ao dispositivo utilizado pretendeu perscrutar e/ou decifrar os signos do enigma-memorial. À semelhança da palavra que dissimula, que mente, que oculta, mas também palavra portadora da verdade presente na clínica, onde verdade e engano estão indissoluvelmente ligados (daí o enigma), pode-se pensar a memória do professor como um enigma a ser decifrado e que através dela alguma verdade pode se insinuar.

Este é um dos pontos fundamentais do trabalho: como o passado na instituição escolar se constituiu em matéria-prima de uma verdade que se insinua. Para Freud (1900/1901) " é perfeitamente verídico que os desejos inconscientes permanecem sempre ativos. Representam caminhos que sempre podem ser percorridos, toda vez que uma quantidade de excitação se serve deles. Na verdade, um aspecto destacado dos processos inconscientes é o fato de eles serem indestrutíveis. No inconsciente, nada pode ser encerrado, nada é passado ou está esquecido". E continua : "uma humilhação experimentada trinta anos antes atua exatamente como uma nova humilhação ao longo desses trinta anos, assim que obtém acesso às fontes inconscientes de afeto" (p.606).

Refazendo o longo percurso de Freud em sua criação, caminho feito de avanços e recuos, por vezes até de descaminhos na prática clínica, depara-se dentre outras com noções como a de transferência, que não se restringe à exclusividade da clínica. É possível identificar trabalhos sobre o fenômeno da transferência produzidos não apenas por autores e pesquisadores vinculados à prática clínica, como também por aqueles que têm se dedicado à investigá-la em outros contextos favorecedores de relações transferenciais, como é o caso da instituição escolar, especificamente da sala de aula, setting por excelência do encontro e/ou (des) encontro professor-aluno.

Nesta perspectiva, o artigo de Almeida ressalta que "a afetividade e o desejo pouco têm sido teorizados na sua vinculação com o processo de aprendizagem, ainda mais, que a importância dos fatores relacional e afetivo implicados no ato de ensinar-aprender são descartados e a influência dos processos inconscientes na aquisição e elaboração do conhecimento é negada" (1993, p.31).

A relação inter-subjetiva professor-aluno pode (re)produzir, segundo as leis do funcionamento do inconsciente, uma relação transferencial imaginária. Freud, (1914) no texto Algumas Reflexões sobre a Psicologia Escolar, escreveu sobre a relação entre o afeto dirigido ao pai com os relacionamentos posteriores, obrigados a arcar com uma espécie de herança emocional, como primeiros protótipos (p.249).

Apropriando-se dessas noções, através de migrações conceituais, poder-se-ia pensar que, assim como no tratamento o paciente ligará a figura do analista com os afetos anteriormente dirigidos a outras pessoas, nas relações entre as pessoas em geral e mais especificamente na instituição escolar, em sala de aula (relação professor-aluno) ocorrerá a chamada atualização da realidade do inconsciente.

Este processo não é intencional e consciente. Morgado chama a atenção para " a estruturação do próprio contexto escolar que reforça os vínculos transferenciais, os integrantes da estrutura não têm essa consciência, ou talvez, mantenham-se inconscientes dessas mazelas por conveniência" (1995, p38). A partir da proposta psicanalítica, podemos afirmar que as memórias levam por destacar os reconhecimentos/desconhecimentos dos vínculos e das relações que se estabelecem na instituição/escola.

Neste sentido, compartilhando com princípios sustentados por Lajonquière (1996) sobre as relações do adulto com o seu passado, permite-se dizer da necessidade de saber do passado para não morrer subjetivamente, ou seja, é preciso sustentar-se numa história. Freud jamais abandona a questão das origens (Ur). Em outras palavras, conclui-se que a dimensão histórico–infantil ( vivências ) não apenas é a argamassa da construção teórica da psicanálise, quanto da própria constituição da subjetividade/identidade do professor com implicações no cenário da sala de aula e registrada nas memórias:

"... na condição de professora penso que se meu trabalho é com o aluno, se meu trabalho é o ser humano, eu tenho que passar muita coisa para esse aluno, principalmente assim na vida dele...o aluno não precisa de matriz, precisa criar a sua maneira de trabalhar para dominar o conteúdo" (janeiro/2003)

 

Referências Bibliográficas

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MORGADO, M. A ( 1995). Da sedução na relação pedagógica. São Paulo,SP: Plexus.