5Reflexões acerca das inscrições significantes na dinâmica da aprendizagemA direção do tratamento em instituição pública com adolescentes autistas e psicóticos author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

"Do meu pai não quis nem herança": o caso de uma criança psicótica1

 

 

Jeanne Marie de Leers Costa Ribeiro

Psicanalista, mestre em Teoria Psicanalítica pelo Instituto de Psicologia da UFRJ

 

 

"Do meu pai não quis nem herança" é o que me diz Seu João, nas entrevistas preliminares para tratamento de seu filho, Pedro, de 9 anos. O relato que faz de sua história e da relação com seu pai, avô de Pedro, é marcado por este dito que, veremos, não será sem conseqüências.

Pedro é encaminhado ao Núcleo de Assistência Intensiva à Criança Autista e Psicótica (NAICAP), do Instituto Philippe Pinel, depois de um longo percurso em instituições para crianças deficientes. É reencaminhado de uma instituição para outra devido a seu comportamento, considerado "anti-social". É agitado, agressivo e fala "bobagens", segundo o pai.

Desde as primeiras sessões com Pedro, evidencia-se sua posição frente ao Outro, que se constitui para ele como um Outro sem lei, que faz dele objeto de seu gozo. É assim que sai da sala, em nosso primeiro encontro, entre assustado e excitado, dizendo a todos que passam: "Essa doutora é maluca. Quer me beijar!" O que vai se delineando, na relação comigo, é uma transferência do tipo erotomaníaca. As "bobagens" que fala, descritas por seu pai, parecem referir-se, muitas vezes, a relatos de alucinações. Ele me conta, por exemplo, que bateu no trocador de ônibus, na sua vinda para o hospital e se explica: "ele só ficava falando: Pedro bichinha, Pedro bichinha", diz sussurrando.

Nas várias situações em que é expulso das escolas, ou em que briga com vizinhos, o que está em jogo, segundo o que aos poucos vai me revelando, são essas vozes que lhe falam injúrias sempre referentes ao fato de ser "mulherzinha", "bicha" ou "burro".

As alucinações e a transferência que estabelece comigo, desde o início, bastante intensa e ambivalente, me fazem pensar tratar-se de um paranóico.

Entra na sala querendo me beijar, beija com volúpia os objetos da minha sala, assim como a sua própria imagem no espelho. Quando digo não a alguma demanda sua, fica extremamente agitado e agressivo.

A qualquer demanda do Outro, sua interpretação é sempre única. O Outro quer agarrá-lo, fazer dele mulherzinha ou persegui-lo.

Em um congresso sobre a psicose na criança (1967) Lacan cita uma observação de Cooper a respeito das crianças psicóticas, que considera pertinente: "para se obter uma criança psicótica é necessário, ao menos, o trabalho de duas gerações. A própria criança é o fruto deste trabalho na terceira geração".

No caso de Pedro, a partir do enunciado de seu pai, "do meu pai não quis nem herança", e da história dessas três gerações de homens, podemos nos perguntar: qual é esse trabalho a que se refere Lacan, citando Cooper?

O que se herda de um pai? O que não foi possível ser transmitido, na linhagem dessas duas gerações de homens, que fez com que na terceira geração pudéssemos, através de Pedro, testemunhar os efeitos da foraclusão do Nome do Pai?

Freud elucida a noção de pai para a psicanálise em vários momentos de sua obra. Em todas essas versões do pai, sua função está sempre ligada à noção de lei e à transmissão dessa lei para as sucessivas gerações.

Em Totem e tabu, a partir da análise do sistema totêmico, Freud constrói um mito: o mito do assassinato do pai da horda primitiva, que possuía todas as mulheres, expulsando os filhos à medida que cresciam. O violento pai primevo fora temido e invejado por cada um dos filhos. Mas os filhos expulsos retornam e, juntos, matam e devoram o pai, num banquete totêmico.

A culpa pelo assassinato do pai amado e odiado leva ao arrependimento e a uma dívida para com o pai. "O pai morto tornou-se mais forte do que fora vivo" (Freud,1913:171). O que até então era interditado pela existência real do pai passa a ser proibido pelos próprios filhos, a partir de um pacto entre eles.

Os membros do clã reforçam assim os laços de identidade entre eles. O pai é, portanto, a expressão de uma falta (o pai morto) e é esta falta que engendra a cultura, a moralidade e a religião. É por isso que Lacan fala em Nome do Pai, um significante, um nome para um vazio, uma falta. O Nome do Pai barra o acesso ao gozo absoluto e institui uma lei: a lei da interdição do incesto.

A dívida para com o pai será, então, honrada mediante o culto rendido à instituição simbólica da proibição do incesto e será transmitida de geração em geração. Ou seja, o que deverá ser transmitido é a lei do desejo, da interdição do incesto e da castração.

Ainda em Totem e tabu, Freud se pergunta: "quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte?" (Freud,1913:188). Cita, então, as palavras de Goethe: "Aquilo que herdaste de teus pais conquista-o para fazê-lo teu" (Goethe, Fausto, Parte I, Cena I).

Esta conquista, para os sujeitos neuróticos, se faz através da trajetória edípica, que lhes possibilita encontrar seu lugar na partilha dos sexos e na ordem geracional.

E no caso de Pedro? O que não foi possível ser transmitido de uma geração para outra e que acabou não permitindo que ele aí se localizasse?

A história de Pedro, contada por Seu João é a história de um "sobrevivente". Segundo relato do pai, Pedro passou os três primeiros anos de vida sendo constantemente internado para tratamento clínico em diversos hospitais, tendo tido, por isso, pouco contato com a mãe, que faleceu quando Pedro tinha por volta de três anos. Descreve Pedro como uma criança que sofreu muito e diz compreender muito o filho porque ele também "sofreu, lutou e se fez sozinho".

A história da vida de Seu João é contada, por ele, como uma saga. Filho primogênito, morava na roça. "Para pobre uma vida farta; nada faltava, a não ser carinho e atenção por parte de meu pai. Ele era um animal e tratava os filhos como os animais". Bebia, batia na mãe e surrava os filhos. "Plantava em duas roças", me diz. "É assim que se fala na minha terra quando um homem tem duas mulheres, duas famílias".

A construção que Seu João faz de seu pai é bem próxima do mito freudiano do pai da horda. Um animal, violento, tirânico e gozador. Se amar é dar o que não se tem, a queixa de Seu João, quanto à falta de carinho por parte de seu pai, é procedente. O que lhe faltou, por parte do pai, foi a transmissão de uma falta, já que a este nada faltava. Gozava de duas mulheres e impunha à toda família sua lei caprichosa.

Seu João era ainda um menino, quando seu pai abandonou os filhos e a mulher, indo morar com a outra. "Passei a ser o chefe de família, a tocar a roça".

Alguns anos depois, seu pai retorna trazendo com ele os filhos de sua outra mulher. Seu João decide então sair de casa. "Não havia lugar para nós dois naquela casa. Era ou eu ou ele. Do meu pai não quis nem herança". No entanto, me diz, vendeu um pedaço da terra do seu pai ao pior inimigo deste e veio para o Rio de Janeiro como bóia-fria. "Aqui me fiz sozinho. A partir de minha própria luta".

A afirmação: "do meu pai não quis nem herança" e seu desmentido, através do relato da venda de parte das terras de seu pai a um inimigo deste, apontam a direção de sua saída edípica. Na impossibilidade de uma saída simbólica para o embate imaginário com esse pai rival, sai de cena deixando um rival para o pai (seu pior inimigo) e constrói-se então como aquele que não tem dívidas: Fez-se sozinho a partir de sua própria luta.

Em um primeiro momento do tratamento de Pedro, este passa as sessões batendo num boneco e quando eu pergunto em quem ele bate, me diz: bato no "seu pai". Embora não fale de forma ecolálica, como as crianças autistas, nunca fala: "meu pai", não inverte o pronome sempre que se refere ao próprio pai. Só muito mais tarde, num outro momento de seu trabalho comigo, vou entender esta seqüência inicial, quando Pedro me mostra as marcas do cinto do pai nas suas pernas e me faz um apelo, pedindo que, naquele dia, eu o atenda junto com seu pai. Seu João parece repetir com o filho as cenas em que era objeto de gozo de "seu pai", avô de Pedro.

Lacan (1969) sustenta que a função do pai na constituição de um sujeito implica no irredutível de uma transmissão. A transmissão da lei no desejo, ou seja, a transmissão da castração.

Neste caso, a herança do pai, recebida por Seu João, sob a forma de um desmentido, será recusada por Pedro na terceira geração, como veremos mais adiante. Seu João, em sua função de pai, não se apresenta como representante da lei, mas no lugar da lei insensata e caprichosa de um pai gozador, repetindo com o filho as cenas de violência em que era vítima de seu próprio pai.

A primeira questão que se apresenta, na direção do trabalho com Pedro, é como lidar com a transferência intensa e erotomaníaca que ele estabelece comigo.

Retrospectivamente, é possível localizar um momento de virada em seu tratamento, a partir de uma intervenção minha. Trata-se de uma situação que se repete, com algumas variações, durante um longo tempo de trabalho. Numa de suas primeiras sessões, Pedro me pede para levar para casa um resto de brinquedo quebrado. Deixo que ele o leve, mas esse pedido de levar alguma coisa para casa vai se estendendo a tudo que se encontra na minha sala. Quando lhe digo não, as cenas de desespero e ódio são incontornáveis. Tornava-se difícil encontrar uma posição que escapasse ao embate dual que se colocava na transferência. Digo-lhe um dia que eu também não posso levar nada dali para minha casa, já que há uma lei no hospital que não permite que nem crianças, nem adultos levem o material de trabalho das salas.

Pedro interrompe a cena de desespero, me olha espantado e rindo me pergunta: "não é tudo seu, doutora?" Sai sem levar nada, parecendo muito aliviado.

Quando digo que também tenho que me submeter a uma lei que está para além de nós dois (uma lei do hospital), apresento-me como um Outro barrado. Posso agora lhe dizer "não", já que não se trata agora de um capricho meu.

Depois desta sessão, Pedro mostra-se bastante apaziguado. Negociações e substituições são possíveis quando demanda algo. Após uma outra sessão em que preciso faltar, Pedro me diz, triste e deprimido como nunca tinha se apresentado antes, que sentiu muito minha falta.

A partir daí, começa a introduzir novas brincadeiras nas sessões, que parecem possibilitar o estabelecimento de alguma mediação entre ele e o Outro sem lei, como no dia em que, rindo muito, chama pela janela o segurança do hospital, para que venha me prender porque quero roubá-lo, ou agarrá-lo. Esse segurança passa a ser um importante personagem nas brincadeiras, que agora consegue inventar e que lhe permitem esvaziar esse Outro excessivo. Numa dessas brincadeiras, Pedro é um gerente de banco. Senta-se na minha cadeira e eu tenho que lhe pedir meu salário. Ele é bastante cruel comigo, me pede meus documentos, diz sempre que está faltando algum e depois me diz que eu não tenho dinheiro nenhum para receber. Ri e se diverte muito frente à minha decepção e ao fato de me deixar sem alguma coisa, sem salário.

A partir desta brincadeira começa a se interessar por documentos. Pede para ver minha carteira de identidade e diz que também quer ter uma. Proponho, então, a brincadeira de confeccionarmos, juntos, um documento de identidade para ele. Numa ficha escrevo seu nome, mas Pedro recusa-se a colocar o sobrenome de seu pai, não permitindo que eu o escreva em sua identidade.A recusa atesta o fato de que ele tem um nome, mas o Nome do Pai é rejeitado, foracluído.

 

Referencias bibliográficas:

FREUD, S. (1913) Totem e Tabu. Obras Completas ESB v.XIV. Rio de Janeiro: Imago,1987.

LACAN, J. (1967) "Alocução sobre as psicoses da criança". In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003.

LACAN, J. (1969) "Nota sobre a criança". In Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003.

 

 

1 Este caso foi trabalhado também em A criança autista em trabalho. Ribeiro, Jeanne Marie. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2005.