5"Do meu pai não quis nem herança": o caso de uma criança psicóticaA criança fetiche: uma posição discursiva ou um novo sintoma social? author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A direção do tratamento em instituição pública com adolescentes autistas e psicóticos

 

 

Katia Alvares de Carvalho MonteiroI; Mariana Mollica da Costa RibeiroII

IPsicanalista. Fundadora/Coordenadora do NAICAP (1987-2004)
IIMestranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ

 

 

Este trabalho1 trata das questões envolvidas no atendimento de adolescentes com grave sofrimento psíquico que buscam tratamento na rede pública de assistência em saúde mental do Município do Rio de Janeiro. A partir da Psicanálise, busca-se interrogar a direção do tratamento dos sujeitos atendidos em instituições públicas, particularmente no NAICAP - Núcleo de Atenção Intensiva à Criança Autista e Psicótica - do Instituto Philippe Pinel.

Era peculiar a trajetória que as crianças e adolescentes autistas e psicóticas percorriam ao buscar tratamento na rede pública de assistência à saúde: circulavam entre os serviços e nenhum atendimento lhes era oferecido, a não ser a atenção exclusivamente medicamentosa. Na maioria das vezes, estas crianças, tomadas sob uma vertente de déficit, eram aprisionadas num discurso médico-pedagógico, cuja resposta aos estranhos comportamentos pautada-se em intervenções classificatórias, punitivas e corretivas. O cenário era, então, o da exclusão, restando-lhes testemunhar a condição de objeto dessas práticas.

O NAICAP surge, no final dos anos 80, como um dispositivo clínico-institucional de forma a oferecer recursos técnicos de caráter diário e intensivo, distintos da atenção ambulatorial. Utiliza a Psicanálise como diretriz de trabalho, considerando a escuta da criança, do adolescente e de seus pais, como fio condutor do tratamento. Através da psicanálise essas crianças encontram a condição de sujeito, imersas na linguagem, submetidas desde antes do nascimento à ordem simbólica.

O que se propõe no trabalho clínico com as crianças e adolescentes no NAICAP não é a massificação dos cuidados ou a normatização do comportamento, mas uma postura ética onde o mal-estar, inerente à condição humana, tenha lugar de endereçamento. A aparente "bizarrice", as estereotipais e as auto-mutilações da criança autista e psicótica são consideradas, nesta clínica, manifestações de um sujeito em trabalho.

Como é possível realizar um trabalho institucional, cujos balizamentos se ordenam a partir da psicanálise, com crianças que não falam e rechaçam a iniciativa do Outro?

No trabalho clínico com a criança autista, verificamos que o Outro é intrusivo e que tal criança se empenha em mantê-lo à distância; sofre do excesso de Outro, que se apresenta caprichoso, desregrado e sem lei (BAIO, 1999). Para esta criança, a ausência da inscrição simbólica da falta no Outro, determina a maneira como este se apresenta: excessivamente compacto e pleno de gozo, impedindo que a criança estabeleça uma distância em relação a ele. Capturada por este Outro tirânico, resta-lhe a tentativa de barrá-lo: é o que testemunha a criança autista em suas estereotipas e auto-mutilações.

Se o Outro para a criança psicótica se constitui como invasor e intrusivo, como operar um dispositivo institucional? A resposta encontrada pelo NAICAP foi organizar um funcionamento clínico orientado pela "prática entre vários" (BAIO, 1999), que consiste em colocar em ação o tratamento do Outro, condição necessária para o tratamento da psicose.

Tal prática é uma tentativa de resposta ao saber na transferência que se coloca como impasse na clínica da psicose. Visa ao esvaziamento do gozo do Outro a que essa criança está submetida. Trata-se, então, de conformar os princípios que orientam a prática de modo a situá-la no campo da psicanálise aplicada à terapêutica em instituição.

O tratamento do Outro (ZENONI, 1991) consiste no trabalho que a criança já realiza para tratar seu Outro invasor, descompletando-o para produzir-se enquanto sujeito. As estereotipias no autismo bem traduzem o trabalho dessa criança, bem como as auto-mutilações que se mostram tentativas em "fazer furo" no Outro, de uma maneira extrema, em seu próprio corpo. O tratamento do Outro não tem como propósito tratar a instituição, a equipe ou os pais. Cada membro da equipe deve colocar-se em posição de se fazer parceiro da criança, deixando-se regular pelo trabalho do sujeito, esvaziando-se de todo saber prévio, acompanhando-o em suas construções.

A problemática envolvida no período que sucede o aparecimento da puberdade, apresenta uma particularidade nos casos de psicose e autismo. A adolescência é comumente conhecida através de fenômenos observáveis: a identificação do indivíduo ao grupo, o despertar da sexualidade, a revolta para com o casal parental, entre outros comportamentos.

Para a psicanálise a adolescência é formulada em outros termos, na medida em que não é reduzida às transformações físicas e comportamentais. Na puberdade o sujeito é confrontado, de maneira muito particular, com sua sexualidade, com o impossível da relação sexual, na perspectiva do encontro com o outro sexo, em um trabalho de reconstrução de sua imagem corporal; um momento lógico e não cronológico.

No desencontro entre os sexos, imposto pela castração, o adolescente depara-se com a impossibilidade de completude entre ele e o Outro, em um trabalho psíquico de assumir que o Outro é faltoso e elaborar o desligamento da autoridade dos pais.

No caso dos adolescentes recebidos no NAICAP não observamos condutas próprias à adolescência. O que marca, nestes sujeitos a passagem da infância para a idade adulta?

Na psicose, verificamos que o sujeito não realiza o trabalho de elaboração da perda da autoridade dos pais em razão da foraclusão do Nome-do-Pai, que sustenta a autoridade. Na impossibilidade de lançar mão deste significante que vem em substituição ao desejo materno, numa amarração edípica reeditada na adolescência, resta ao psicótico o lugar de submissão a um Outro absoluto. Na psicose e no autismo, onde não há o recurso fálico, para organização do novo circuito pulsional, observa-se a irrupção freqüente de crises ou a intensificação de quadros clínicos na adolescência. Estas crises, muitas vezes, sob violenta agressividade, se manifestam das mais diferentes formas: auto-mutilações, crises convulsivas, passagens ao ato, alucinações; um excesso no real do próprio corpo que, sob a forma de um gozo sem mediação, busca uma via de escape. Contudo, o trabalho dessas crianças constitui tentativas de inscrição de uma barra frente ao Outro invasor.

É no encontro com aquele que ocupa o lugar de quem recolhe os efeitos desse trabalho como construção, que tais tentativas poderão ter para o sujeito efeitos de simbolização. Na singularidade de cada caso, observa-se que alguns adolescentes vêm a circunscrever, com o tratamento, o gozo que retorna no real.

Uma intervenção realizada com um adolescente do NAICAP, que passava por um período de intensificação delirante, marca na instituição a sua passagem da infância para a idade adulta, a partir da comemoração de seus 18 anos. Como efeito da escuta analítica, o adolescente passa agora a ocupar um lugar de adulto no laço com Outro. A intervenção partiu da construção que ele fazia da representação de sua carteira de identidade. A escuta que possibilitou este efeito teve também um importante desdobramento com relação ao trabalho de saída deste paciente da instituição, algo que lhe parecia anteriormente insuportável.

Considerando os fenômenos observados no autismo como um trabalho do sujeito para barrar a invasão insuportável que vem do campo do Outro, respondemos em relação a essas crianças e adolescentes à convocação feita por Lacan: não ceder diante da psicose (LACAN, 1958).

Tomando esta convocação como direção, a equipe do NAICAP se impôs o trabalho de interrogar o lugar possível do analista na direção do tratamento de adolescentes psicóticos e autistas na prática psicanalítica em instituição. O NAICAP se viu obrigado a repensar sua prática diante dos impasses clínicos, já que os adolescentes demandavam nova especificidade no manejo clínico, re-situando cada caso a partir das discussões na equipe.

Roberto é um dos adolescentes que participa da oficina de Música. Nesta atividade se faz presente cuspindo e empurrando quem dele se aproxima e com barulhentos tapas em suas próprias costas. Num dos encontros semanais, todos os integrantes da oficina foram surpreendidos pela masturbação intensa de Roberto no meio da sala. Diante de tal situação, as estagiárias sugeriram que ele o fizesse atrás de um palco de teatro de fantoches existente na sala. Atrás do palco, além de ter interrompido sua masturbação, Roberto olhava por entre a cortina o que as outras crianças estavam fazendo, num jogo de presença/ausência. Logo depois, Roberto decide se juntar a elas na atividade. Tomando a atitude de Roberto como endereçada ao Outro e acolhendo sua demanda, a intervenção das estagiárias teve efeito de barra e gerou o apaziguamento de Roberto. A direção tomada pelas estagiárias neste caso, para além de convocar as regras próprias ao discurso institucional, presentificou um Outro que respeita a lei, estando ele mesmo submetido a ela.

Evitar que o saber do Outro anule a dimensão subjetiva do dizer do autista e do psicótico, fazendo-se parceiro das construções destes adolescentes, foi a direção de trabalho desenvolvida pelo NAICAP.

Antonio, hoje com 13 anos, viu suas transformações corporais da puberdade serem tomadas por sua mãe como perda do lugar de "meu bebê", que ele teria para ela. A presença de um pêlo pubiano a atormenta de tal forma que a resposta dada por Antonio à posição da mãe é construir músicas com palavrões que escuta e masturbar-se diante de todos. Durante o período que está no NAICAP, Antônio mantém esta atitude. Em casa, nunca quis usar cuecas, fato que deixa sua mãe muito apreensiva, com receio de que o pênis do filho ficasse ereto o tempo todo. A discussão nas reuniões de equipe e a escuta dada à sua mãe permitiram que Antônio pudesse construir um contorno ao seu gozo desenfreado, tornando sua masturbação restrita ao espaço do banheiro e ao uso de cuecas no NAICAP.

Da escuta da mãe, pôde-se ouvir um ato falho: "(...) eu falo para ele que não é para ficar com as cuecas" e recolher as conseqüências disso. Verificamos as tentativas de Antônio em situar "esse pênis" no campo do Outro. Antônio se masturba apenas no banheiro e com menor freqüência; participa agora das atividades com outras crianças. Começa a escrever algumas letras de seu nome e da analista, se interessa pelo computador e por músicas no rádio. Certa vez vestiu-se com um roupão, uma capa e óculos escuros e se dirigiu ao espelho, fazendo poses "bem de adolescente".

Na equipe também ocorreram mudanças: diante das situações que geravam mal-estar e pareciam sem sentido, os técnicos puderam lançar mão dos recursos disponíveis em cada um, na solidão de seu ato, para lidar com os imprevistos, assegurando a Antônio o sentido de seu trabalho de endereçamento ao Outro.

Recentemente, a equipe interveio através da escuta da construção de um adolescente, cuja mãe psicótica, apresenta uma história de várias internações psiquiátricas. Uma estagiária presenciou a mãe pedir ao filho que beijasse o seu seio, ordem que ele obedeceu prontamente. Ao ver uma bóia na piscina na forma de um sapo, batizou-a de "sapa tarada". Nesta fase, Ricardo, passou a urinar pelos espaços da instituição. Uma das pessoas da equipe trouxe uma reportagem de jornal sobre os "mijões" da cidade, que sugeria que estes fossem fotografados. A iniciativa se pautou num recurso bastante utilizado pelo adolescente: a leitura de jornais. Este adolescente, em seu trabalho de endereçamento ao Outro, afixou numa sala, batizada por ele como "seu banco Banerj", o recorte de jornal, estabelecendo um jogo com os profissionais da equipe. Com um gozo exibicionista, urinava em público mostrando seu pênis e pedia para ser fotografado até que uma pessoa da equipe lhe aplicou uma multa por estar "mijando em lugares proibidos", semelhante àquelas utilizadas por ele, no atraso do recebimento das contas de seu banco. Como efeito da intervenção, Ricardo contou para sua "técnica de referencia": "estou mijando em lugares indevidos!" Ao ouvi-lo esta pôde apontar para a interdição presente em sua própria fala: "então você sabe que são indevidos".

Ao parar de urinar em público este adolescente passou a falar de sua sexualidade para a técnica de referencia, numa tentativa, talvez, de se situar na partilha dos sexos. Ao mencionar uma noite em que assistia a um programa de Miss Brasil comentou sobre uma namorada da escola. Perguntou à técnica de referencia se homem podia ser mãe.

Verificamos, então, que cabe à equipe escutar esses sujeitos, de modo a extrair a lógica de suas condutas aparentemente estranhas, não para lhes dar um sentido, mas para partir da construção de um sintoma, próprio a cada caso, que permite ao sujeito barrar a intrusão abusiva e devastadora do Outro.

Tal como as excitações físicas, as freqüentes manifestações de agressividade também impuseram à equipe um trabalho de discussão que exigiu uma mudança no manejo clínico frente à entrada na puberdade das crianças que, apresentavam agora, uma nova dimensão para o gozo.

Alguns adolescentes, seja os que chegaram ainda crianças e cresceram ao longo do tratamento no NAICAP, seja aqueles que já chegaram com idade avançada no serviço, apontavam, cada um a sua maneira, para o momento de saída da instituição. Este foi um outro impasse que se colocou para a equipe. Manoel chega ao NAICAP com 8 anos de idade. É um menino que não fala, recusa qualquer contato com o outro, gira em torno de si e, durante as refeições, vomita os alimentos que come. De uma posição inicial em que rechaçava ao Outro, ao longo de seu tratamento, Manoel dá mostras de maior abertura. Com a chegada do momento de sair do NAICAP seu quadro piora e obriga a equipe a repensar a direção clínica dada, até então, a sua saída.

Da mesma forma que a saída de Manoel exigiu um re-posicionamento quanto à direção dada ao seu tratamento, a equipe vem se confrontando com outras dificuldades quando chega o momento de encaminhar os adolescentes para outros espaços de acolhimento. Constata-se grande deficiência na rede de serviços de saúde mental no Rio de Janeiro quanto ao oferecimento de dispositivos de trabalho para a clientela proveniente do NAICAP. Os serviços para adultos encontram dificuldades para receber os jovens oriundos de serviços para infância e adolescência, na medida em que a dinâmica terapêutica oferecida baseia-se em atividades exclusivamente coletivas, exigindo um grau de autonomia da clientela.

Em vista disso, o NAICAP se colocou em trabalho na tentativa de interromper à peregrinação dessa clientela mais grave, lançando mão de projetos que viabilizassem um atendimento mais resolutivo. Privilegiando aquilo que era apontado pelas crianças que cresciam no serviço, fez-se imprescindível re-situar o trabalho oferecido aos adolescentes. Tomar a criança e o adolescente autista e psicótico como sujeito, conferindo às suas produções um estatuto de invenção, é a conseqüência que o NAICAP vem retirando de sua experiência clínica.

 

Referências bibliográficas:

BAIO, V. (1999). Une pratique à plusieurs genéralisée. In Preliminaire nº 11, Bruxelas: Antenne.

LACAN, J. (1958). De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In Escritos. Rio de Janeiro: Campo Freudiano no Brasil/Zahar, 1998.

ZENONI, A (1991). "Traitement" de l’Autre. In Preliminaire nº 3. Bruxelas: Antenne.

 

 

1 Inserido no projeto de pesquisa estabelecido através do convênio entre o IPP e a Teoria Psicanalítica/UFRJ, procedemos à investigação de dados quantitativos da população de adolescentes atendidos no NAICAP, no período de 1986 a 2003. Ampliamos a análise com considerações de natureza qualitativa acerca da experiência clínica com a referida população.