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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
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An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
A criança fetiche: uma posição discursiva ou um novo sintoma social?
Leandro dos Santos
Mestre em Psicologia pelo PSA
Qual o lugar destinado à criança nos dias atuais? Desde Áries (1978), sabemos que a noção de criança é um construto socialmente forjado, influenciado pelo imaginário de uma época, atravessado pelos discursos que imperam hegemonicamente em um determinado momento histórico e cultural, além de ser, também, cada vez mais, objeto de interesse de alguns campos específicos do conhecimento. Mas, e em tempos de pós-modernidade, como ressaltariam os filósofos, como pensar o lugar destinado aos pequeninos? Afinal, se estamos tentando aqui responder a isso partindo de um ponto de vista da Psicanálise, de um referencial que caminha em direção oposta à homogeneização, que privilegia o particular em oposição ao generalizante e, especialmente, que leva em conta a subjetividade dos sujeitos que são alvos de suas investigações, cabe-nos pensar inicialmente sobre a imbricação entre essa subjetividade do sujeito e o lugar destinado a ele na cultura de sua época. É sempre bom lembrar do famoso aforismo lacaniano, que nos alerta sobre a necessidade do psicanalista estar conectado com a subjetividade de sua época. Pensemos nisso, então...
Detendo-se no enunciado que abre o texto, podemos dizer que a própria tentativa de responder à questão proposta colabora para desvelar alguns aspectos interessantes acerca desse lugar destinado à criança e, principalmente, das condições "exigidas" a quem eventualmente ocupe este lugar na contemporaneidade.
Iniciemos então por uma gravidez que, quando ocorre, sabemos não se tratar apenas de um acontecimento biológico, afinal esse ser já é, de alguma forma, imaginado e falado dentro do núcleo familiar. Em outras palavras, um filho nasce de um desejo, ainda que muitas vezes não bem sabido. E, como bem apontam as hipóteses dos pesquisadores lacanianos, um filho é algo que serve a um propósito especial, como nos mostram Farias e Lima (2004 p.19): "A criança é tratada como uma solução para a falta feminina, já que o falo é o significante que faz da mulher um ser sem falta. Ser mãe é correlato da falta do objeto essencial para a mulher: o falo". Trocando em miúdos; uma mulher mais um filho/falo = ser completo. Essa é a ilusão que encontramos por repetidas vezes no imaginário, a mulher só se completa com a experiência da maternidade, só se ocupa o lugar de mãe após a "obtenção" desse filho/falo!
Com isso, configura-se um cenário no qual a criança é, antes de tudo, um lugar – discursivo, por excelência, se pudéssemos assim dizer – e, quando pensamos em lugares, queremos dizer posições discursivas, que imediatamente nos traz à mente o nome de Lacan (1969-70, p.11) que, no seu Seminário XVII, ao anunciar sua noção dos quatro discursos e tratá-los como "uma estrutura necessária, que ultrapassa em muito a palavra", lança uma visão inovadora acerca das relações entre seres falantes: "Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe que as enunciações efetivas".
O que nos leva conseqüentemente a pensar, portanto, que, nas relações, esse algo mais amplo, estrutural, merece ser objeto de nossas considerações, de um olhar mais detido e que nos ajude também balizar nossas estratégias de intervenções, de como nos posicionamos na clínica cotidiana.
Quando recebemos crianças em nosso consultório particular, em instituições ou até mesmo quando estas são alvos de uma atuação profissional distinta – qualquer que seja o "psi" que nos denomina – não devemos relegar a um segundo plano este aspecto estrutural da qual a criança faz parte ainda que, algumas vezes, na condição de objeto-fetiche para os adultos que compõem a cena. E por quê estamos utilizando o termo "fetiche" para designar a criança dos dias atuais? Freud (1927, p.181) já pontuava em seu texto Fetichismo algo interessante: "Podemos perceber agora aquilo que o fetiche consegue e aquilo que o mantém. Permanece um indício do triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela".
Ou seja, o fetiche serve para velar a castração, e segundo nossa proposição inicial, poderíamos estender essa pergunta: e a criança-fetiche, o que vela? Jacques Alain Miller (1998, p.21) corrobora nossa hipótese e, ao tratar da mãe, nos recorda que "a perversão é, de certa forma, normal do lado da mulher e é aquilo que se chama de amor materno que pode chegar até a fetichização do objeto infantil". Em outras palavras, a criança pode velar a castração da mãe, mas e em termos discursivos, o que e como velaria?
Vários saberes se ocupam da criança, tais como a Medicina, a Pedagogia, a Psicologia e outros tantos, cada qual tentando dar conta do Real que a criança encarna, fazendo uso de uma certa aparelhagem de gozo na investigação do suposto "objeto". Mas, de maneira geral, qual lugar é reservado à criança nesses campos? Afinal, como diria Fink (1998): "O fato é que a ciência é um discurso!". Então, onde se daria à castração desses discursos, especialmente se pensarmos analogamente ao dito anterior, referente à relação entre a mãe e objeto que supostamente tamponaria sua falta. Aqui reside o cerne da questão; esses discursos – que atualmente poderiam ser pensados como uma contundente mistura entre os discursos da mestria e o da universidade – tomam a criança como um ser ideal, que obedece a fases do desenvolvimento e que supostamente deveria se adaptar aos ditames de cada um dos saberes que a ela se dirigem. Enfim o sonho que parece existir é de que a criança, com sua existência, aceite ocupar passivamente esse lugar de fetiche, com conseqüências que clamam por uma mais profunda problematização.
Quando ocupamos uma posição discursiva, no laço com o outro, quer seja na posição de agente ou de outro, inevitavelmente há que se pensar num certo quantum de responsabilidade subjetiva pela aceitação e manutenção em um desses lugares, afinal há algo do gozo que sustenta essas posições. Portanto, na posição de analistas, ou orientados pela psicanálise, devemos nos perguntar: tratamos esse ser chamado pela cultura de criança como um sujeito, ou negamos a ele a experiência de se defrontar com algo de seu gozo no laço com o outro, algo que fazemos sem pestanejar com os ditos adultos. Isso vale igualmente para a criança? Marie Jean Sauret (1998, p.63) nos diz: "Por quê não?... O sujeito relacionado com a criança pode ser questionado efetivamente quanto à sua relação com esse gozo que ele encarna e quanto a seu consentimento em encarná-lo. O encontro com esse desejo o confronta com o seu próprio desejo".
Interrogando o sujeito sobre o gozo poderíamos estar com isso subvertendo algo dessa ordem estabelecida, escutando esse sintoma social (Askofaré, 1997) que produz uma criança ora em êxtase, ora em depressão, que é condenada a reafirmar não apenas o narcisismo dos pais, mas também o narcisismo de uma época. Vale reiterar o que foi dito no início do texto, sobre a necessidade do psicanalista estar conectado com a subjetividade de sua época.
À guisa de conclusão, fica-nos uma indagação acerca da necessidade de re-pensar a estratégia e a tática que deve vetorizar nossa direção do tratamento frente aos encaminhamentos de crianças que nos chegam, tendo sempre em vista um olhar acurado sobre o particular do sujeito que "habita" a criança, no anelamento com o sintoma social que a captura. Com isso estaríamos nos posicionando de uma forma mais crítica frente à demanda que vem do tecido social, deixando de fornecer mais elementos para esse contínuo processo de fetichização da criança.
Referências bibliográficas:
ÀRIES, P. (1981) História social da criança e da família. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara.
ASKOFARÉ, S. (1997) O sintoma social. In: GOLDENBERG, R. (Org.) Goza!: capitalismo globalização e psicanálise. (pp.164-189) Salvador, BA: Ágalma.
FARIAS, C. N. F. & LIMA, G. G. (2004). A relação mãe-criança: esboço de um percurso na teoria psicanalítica. Estilos da Clínica: revista sobre a Infância com Problemas. São Paulo, 9 (16), 12-27.
FINK, B. (1998) O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Tradução de Maria de Lourdes Sette Câmara. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
FREUD, S. (1927). O fetichismo. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad.). (Vol. 21, p.175-187). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1987.
LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1992.
MILLER, J. A.(1998) A criança entre a mulher e a mãe. In: Opção Lacaniana, nº 21.
SAURET, M. J. (1998) O infantil e a estrutura. São Paulo, SP: EBP.