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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A impostura do mestre

 

 

Marcelo Ricardo Pereira

Doutorando da FE/USP e psicanalista

 

 

O discurso docente atual é permeado por produções imagísticas e amplamente alardeadas de como os professores e as professoras, principalmente em tempos de nossa modernidade tardia, sentem-se "desvalorizados", "desautorizados", "desrespeitados" ou, sobretudo, "desmoralizados". Esse discurso, com efeito, é ressonante junto aos teóricos da profissão docente que entendem que a função de professor em nossa história próxima sofreu considerável desgaste intelectual, social, cultural e econômico. No imaginário social, ao que parece, o "mestre" nostalgicamente idealizado de outrora cedeu lugar a um profissional sucumbido à atual massificação industrial, comunicacional e tecnológica, bem como à inabilidade em lidar com as manifestadas identidades e diversidades culturais emergentes e ingressas nas instituições educativas.

A desautorização docente é tema recorrente. Professores e professoras se vêem às voltas com o ostensivo desgaste de seu ofício. A fortiori, um rosário é desfiado e exposto livre de censura. Queixam-se, com efeito, das condições de trabalho, do pouco reconhecimento profissional obtido, da sobrecarga de tarefas e do exíguo tempo livre para dedicarem-se aos planejamentos, do desconforto patente das salas de aula, do reduzido expediente didático para o trabalho cotidiano, dos ínfimos recursos destinados à pesquisa e à extensão acadêmica, do pouco tempo dispensado para investimento em formação e aprimoramento, da baixa remuneração percebida, da necessidade de multiplicar empregos para manutenção de despesas, da proletarização da profissão, bem como da entropia política e gerencial das estruturas e dos sistemas de ensino pelos quais são gestados.

Soma-se a isso, outra queixa recorrente: "os alunos não querem saber de nada". O desinteresse pelos estudos de boa parte do alunado é tido como assombroso. Os estudantes são reputados como agentes de desautorização e sobretudo de desrespeito à figura do professor e da professora, que se vêem impossibilitados em dar cumprimento ao seu exercício de mestria ou de domínio. Há sempre um escárnio, uma zombaria, um boicote, uma afronta ou uma omissão discente, que induz ao que se vem denominando como um ‘sintoma social’ atual que atinge a maior parte dos processos educacionais, qual seja, um dissenso na relação professor-aluno. Evidentemente, o termo dissenso não pode ser tomado como peremptório, mas deve ser interpretado como um sinal substitutivo que diz da estrutura de um sintoma ou de uma marca de impossibilidade.

A contingência pedagógica forja um docente que tende a desaparecer não tanto devido a sua permanência a priori fugaz, por ser uma consciência dividida que substitui o que realmente sabe por uma prática negadora de seu saber efetivo, mas devido a um apagamento de si como índice de autoridade ou de governo. Um professor ou professora precisa fazer um esforço cotidiano para que seu lugar permaneça inteiro, antes de vazio. Há diariamente um exercício severo de restituir um lugar discursivo apagado pelo escárnio, pelo desinteresse ou pela indiferença de uma parcela de alunos e alunas, bem como de boa parte das políticas institucionais que os orientam. O trabalho docente, antes mesmo de se fazer falta para tornar possível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estão dele excluídos e que por ele aspiram, a saber, os estudantes, é investido de inúmeros estratagemas a fim de recobrar algum ponto estável, que se imagina nostalgicamente ter havido em um passado evocado como crepuscular.

Nesse sentido, muitos professores e professoras desdobram-se para estudar novas prescrições formativas; instituir outras modalidades de planejamento; desenhar metodologias e estratégias de ensino menos tradicionais, capazes de satisfatoriamente garantir aprendizagens sob condições mais adversas possíveis; buscar aquecer as aulas com novas tecnologias educacionais e novas "criações" dos tentáculos psicopedagógicos; bem como estabelecer práticas avaliativas menos ortodoxas, de acordo com alguma teoria efêmera, que contagia de tempos em tempos o discurso pedagógico. Mas a realidade é precária. O fato é que muitos docentes não dominam completamente o que ensinam e nem têm tempo e estímulo para se aprofundarem em questões acerca do conteúdo que ministram. No decorrer do tempo letivo, não conseguem cumprir todo o programa previsto nos "planos de curso", ministrando aulas sem muitos recursos ou inovações. Em grande parte, avaliam mal o que foi ensinado, improvisando "provas", repetindo exercícios ao longo dos vários anos e corrigindo superficialmente os inúmeros "trabalhos" e "avaliações" acumuladas no decorrer dos períodos. Alguns revelam dificuldades de manter disciplina e uma rotina de trabalho que envolva seus alunos e alunas. São profissionais que tendem a transformar suas tarefas em meras rotinas e, boa parte desses, consideram sua profissão como um complemento de subsistência, por possuírem outros empregos em áreas diversas e revelarem outros interesses.

Disso, resulta uma aporia que convém pontuar. De um lado, instaura-se um laborioso exercício de vivificação da mestria, induzida por novas mentalidades pedagógicas referentes à concepção de planejamentos, de didáticas, de avaliações, de recursos tecnológicos entre outras. Do outro, um desvalor histórico e uma realidade precária se impõem. Os tempos exíguos, o domínio de conhecimento cada vez menos ostensivo, os repetidos estratagemas forjam um certo declínio docente cuja vivificação não parece ser suficiente para reverte-lo.

 

Declínio do pai

De modo análogo ao bramido declínio docente, o prenuncio nietzchiano "Deus está morto" tem se repetido em grande parte da literatura acadêmica dos campos da filosofia, da sociologia, da antropologia, da história, como também da psicanálise, quando se debruçam sobre temas afins. Teorias sobre a falência de instituições sociais, o aumento da violência urbana e da criminalidade, a perplexidade de projetos educacionais ante a diversidade cultural, entre outras, em regra, vêm associadas a uma crise de autoridade, a um declínio de um deus-pai ou a uma deposição da sociedade eminentemente patriarcal. Somos marcados hoje por evidentes indícios de uma vatersehnsucht (nostalgia do pai1). Soma-se a isso as idéias sobre fratria concernentes ao vínculo social da pólis, que entendem a civilização humana instaurada sob princípios de uma ética fraterna. Tal ética é revivificada na modernidade pelos ideais revolucionários e liberais da insurreição francesa de 1789, quais sejam: liberdade, fraternidade e igualdade.

O Pater Pantôcrato (pai onipresente) de Platão ou o Zeus, pai de todas as coisas, ordenador do cosmos, que se tornou o Deus do destino na revelação judáico-cristã, parece ter perdido seu fôlego em tempos modernos. Será mesmo? Será que esse Deus – mestre e pai – foi morto pelos revolucionários ao reinventarem o homem na liberdade, fraternidade e igualdade?

Penso que não. Mas o fato é que o declínio do pai é impudentemente anunciado pela mística modernizadora. Há de se reconhecer que sua autoridade mesma, como símbolo de domínio, desgastou-se em nossos tempos. Podemos suspeitar que a crise do mundo atual de natureza política consiste também, e fundamentalmente, numa crise da autoridade. Eis um espectro da derrocada de uma sociedade regida pelo pater, que assiste o solapamento das fundações políticas e das instituições sociais. Então, as revoluções da época moderna parecem gigantescas tentativas de reparação. Visam, se assim for, renovar o fio rompido da tradição e restaurar essas instituições mediante a fundação de novos organismos políticos. Ora, mas em que consiste uma reparação senão o íntimo desejo de restituir a Coisa, lá onde ela é miticamente fundante!

Na sociedade contemporânea, o poder do pai foi deposto. A imagem paterna torna-se cada vez mais frouxa, vaga, desnaturalizada e desacreditada. Do ponto de vista da experiência, quanto mais os denominados pelos historiadores de ‘pais sociais’ forjam-se tirânicos, mais eles se vêem intimidados e desautorizados. E quem são esses pais sociais destituídos senão as autoridades educativas, religiosas e de governo! O problema é que tanto prática como teoricamente não estamos mais sequer em posição de saber o que a autoridade realmente é, como nos alerta Arendt (2002). A autora chega a asseverar, categoricamente, que a questão da autoridade desapareceu do mundo moderno. Note-se, o significante ‘desapareceu’, empregado em sua narrativa, é no mínimo instigante. Suas idéias convergem também para o ponto nodal, a saber, a tese do declínio da imago paterna, já apontada por outros autores, inclusive por Lacan, no início de seus trabalhos (1938).

Mas é Freud quem salva o pai ao manter até o fim de sua vida um enigma tão impenetrável quanto impreciso: O que é um pai?

O autor de "Moisés e monoteísmo" reconhece que os historiadores de nossos dias falam do envelhecimento da antiga civilização tanto paterna, quanto deificadora. Disso, deriva-se uma suspeita de que esses mesmos historiadores aprenderam apenas causas acidentais e contribuintes desse humor deprimido dos povos. Talvez Freud estivesse mesmo preocupado com o crescente aspecto de desilusão deixado no rastro das instituições contemporâneas. Ao invés, porém, de fazer coro com pensadores de nossa época em anunciar um pai decaído como a grande razão para tal desilusão, Freud parece ter revivificado o pai ao instituí-lo como morto. Aqui temos, pois, uma aporia tão sublime, quanto categórica, ressonante do desejo de reparação da tradição, encontrado no seio dos intentos das revoluções modernas. Como é isso?

"No princípio foi o ato". Freud aposta na fórmula de Goethe para asseverar que o assassínio do tirano de "Totem e tabu" inventa o gênero humano ao instituir o pai enquanto morto – fundamento da imagem providencial de Deus. Não existe pai a não ser morto, somente revivificado em nível simbólico. Isso institui a cultura, bem como uma antropologia da origem do humano.

Seguindo numerosas pistas de análise antropológica de sua época, Freud recoloca a problemática dual da natureza-cultura no centro dos debates sobre nascimento do homem e da mulher como tal – e, notadamente, o ponto de origem do sujeito psicanalítico. Sob a forma de mito, o autor apóia-se na concepção darwiniana de um tirano sexual, violento e enciumado, que guarda as fêmeas e expulsa os machos, suas crias, à medida que cresciam. Daí, para além de Darwin, narra-se toda uma cena dramática em cujo filhos, revoltados, matam o tirano, canibalizam-no irmamente e passam a gozar todas as suas fêmeas, incestuosamente. O rito de antropofagia gera poder e culpa. Agora, não se trata apenas de se desfazer de um estorvo, mas de incorporá-lo. A prole revolta renega seu ato ao edificar um totem proibitivo e simbólico como substituto de um morto, que não é um qualquer, mas um pai inventado. Ninguém pode substituí-lo, sob o risco se ser igualmente morto. Para isso, o bando fraterno precisa de um esforço cotidiano para que seu lugar permaneça vazio, pois sua instituição é tornar possível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estão excluídos dele, que aspiram por ele e pelo qual não poderiam aspirar se já estivesse preenchido por um pai, mestre ou Deus. Porque existe o lugar do pai, sob a signo de metáfora, inventado pela ordem fraterna, mas existe como lugar vazio, todos podem desejá-lo e ninguém pode preenchê-lo senão sob o risco de destruí-lo, bem como de se autodestruir. A sociedade fraterna passa, pois, a se impedir em virtude de uma "obediência adiada". O pai morto, como salienta Freud, torna-se mais poderoso do que jamais fora em vida.

Todavia, esse pai morto parece ser tomado com visível embaraço pelo valores modernos, que o vêem muitas vezes apenas como o tirano encarnado, vivo e atuante, subordinando todos à sua lei opressora. De Moisés a Cristo, dos Genghis Khans aos imperadores romanos, de Napoleão a Hitler, de Tiradentes a Vargas ou mesmo de Piaget a Freud, cada um a seu modo, todos impuseram suas leis, suportaram por alguns instantes ser idênticos ao pai morto, e sofreram eles mesmos constrangimentos sociais sob a pena de uma impostura: revolta, renegação, ostracismo, perseguição ou morte.

Daí, é curioso perceber como quase toda essa literatura, da filosofia à história, da antropologia à psicanálise, induz à idéia de que o declínio paterno e, consequentemente, do mestre – como aquele que encarna a sua lei – é sucedido por uma fraternidade revelada. Será mesmo que o pai ou o mestre foi morto pelos modernos? Ou será que, desde sempre morto, assim como instituiu Freud, ele atualmente travestiu-se de novas modalidades traduzidas e pós-modernas e permanece sendo mesmo o grande estofo da vinculação social?

Em nossa esfera educacional, o dilema do declínio docente parece se alinhar ao dilema do declínio do mestre ou do pai ou, ainda, mais precisamente, da imago paterna. Isso recoloca o debate do conceito de mestre no epicentro dessa causa. Ao que parece, a idéia de mestria vem sendo tomada pela tradição do pensamento contemporâneo, talvez desde Santo Agostinho, como aquele elo comum que fundiria o Deus-pai à sublime abnegação do homem e da mulher ordinários. De um lado, temos o Deus-mestre, guardado e glorificado como tal. É um mestre per si, livre de suspeita ou dúvida. Do outro, temos o homem-mestre, como aquele que, mesmo terreno, abnega-se de sua banalidade e eleva-se à condição de semelhança àquele que É. À diferença do primeiro, esse mestre só o é à custa de esforço e de demonstração. Tornam-se, em regra, governantes de pessoas, exemplo a se seguir, o mesmo exemplo que se reclama à docência de nossos tempos. Ainda que a modernidade seja marcada pelo signo do pensamento raciocinante, estabelecido por Hegel (1999), considero que os valores românticos se estendem até aos nossos dias e empresta às nossas professoras e professores vis e terrenos as mais altas exigências de sublimação para que galguem o elevado lugar de mestre como sublime imagem e semelhança de Deus.

Ora, mas um professor, uma professora, ao conservarem-se mestre, só o fazem ao forjarem-se um deus, o que é da ordem do impossível. Seus esforços se voltam sempre ao intento de assemelhar-se à imagem do pai morto Em outras palavras, o ato de educar, como uma exigência descomedida de uma sociedade fratria, reinaugura em si a metáfora paterna.

Eis aqui algumas de minhas apostas sobre as quais me debruço em meu trabalho de doutoramento – que se encontra em etapa de conclusão. Em verdade, minha suspeitas iniciais são de que professores e professoras sempre serão pequenos tiranos escarnecidos. Ao encarnarem como mestre o pai em nível real – ainda que seja tão-somente possível em nível simbólico –, assim como tantos outros tiranos contados pela história, é possível que esses docentes reais e terrenos mereçam efetivamente ser desmoralizados, desvalorizados ou desautorizados, uma vez sendo eles meros impostores daquele que jamais pode ser encarnado por ser a priori morto.

Este desgaste imaginário daqueles que professam a educação reflete como tal o próprio declínio do mestre, numa sociedade que se diz supostamente não mais estar sob um significante paterno. Entretanto, de acordo com a antropologia psicanalítica que me orienta, jamais a sociedade deixou de ser regida pelo pai, ainda que ela seja realmente fraterna. O mestre é mais um dos vigilantes de uma horda de irmãos, mesmo que, seduzido por uma nostalgia de poder, ele pague o preço de uma impostura.

 

Referências bibliográficas:

ARENDT, Hannah (2002). Entre o passado e o futuro. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva.

FREUD, S. (1913). Totem e tabu. [Edição Standart Brasileira das Obras Completas, vol. XIII, Rio de Janeiro: Imago, 1980].

___. (1921). Psicologia dos grupos e análise do ego. [idem, vol. XVIII].

___. (1923). O ego e o id. [idem, vol. XIX].

___. (1930). Mal estar na civilização. [idem, vol. XXI].

___. (1939). Moisés e o monoteísmo: três ensaios. [idem, vol. XXIII].

HEGEL, G. (1999). A fenomenologia do espírito. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural.

LACAN, J. (1938). Os complexos familiares na formação do indivíduo. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

___. (1969-70). O seminário. Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

 

 

1 Termo de Freud – cf. Totem e tabu, 1913, p. 176 e Ego e id, 1923, p. 52. Vale examinar vários outros trabalhos do autor que aborda, como instituinte cultural da humanidade, uma possível vatersehnsucht, também traduzido como anseio ou saudade do pai. Entre eles merecem menção, ainda, a Psicologia de grupo e a análise do ego, 1918; Mal estar na civilização, 1930 e Moisés e o monoteísmo, 1939.