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On-line ISBN 978-85-60944-06-4
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An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
Psicanálise e educação: pensando a relação professor-aluno a partir do conceito de transferência1
Marcia Regina Mendes Nunes
Mestre em educação e cultura pela universidade do Estado de Santa Catarina
Este texto é um resumo derivado de dissertação de mestrado realizado na Universidade do Estado de Santa Catarina. Essa pesquisa teve como objetivo sugerir uma contribuição da psicanálise para a área da educação, no sentido de destacar a importância de o professor conhecer acerca da relação transferencial, da função de saber que ocupa nesta relação perante o aluno. Pretendeu-se, a partir daí, demonstrar a possibilidade de intervenção do professor no processo ensino-aprendizagem ao ocupar ou deixar de ocupar a posição de interlocutor para o educando, contribuindo de maneira mais singular, mais efetiva na educação desse aluno, uma vez que o fenômeno da transferência, mesmo que seja ignorado, não deixa de estar presente nas relações professor-aluno. Visando elucidar acerca da transferência na relação professor-aluno e o poder que o professor tem nas mãos como um interlocutor privilegiado, destacou-se a obra de O banquete, de Platão, pela possível analogia com relação amante-amado, exposta através do diálogo de Alcebíades com Sócrates. Ressaltando ainda, a implicação do método socrático na educação.
Frente às exigências da sociedade atual, a reflexão acerca da formação e a atuação do professor, elemento fundamental para a educação do aluno, precisa englobar aspectos como a necessidade de maior comprometimento dos educadores em relação às questões educacionais.
Diante de um quadro de violência nas escolas, evasão e fracasso escolar, falta de motivação, entre outros fatores, que compõem o cenário em que nos encontramos, a relação professor-aluno constitui uma das grandes polêmicas nos meios educacionais.
As políticas educacionais da atualidade parecem partir do pressuposto de que um bom conhecimento sobre o desenvolvimento da criança e um bom conhecimento de um método educativo sejam garantias suficientes para combater o fenômeno do fracasso escolar. Entretanto, raramente privilegiam a singularidade do aluno, aspecto que deveria merecer atenção central.
É diante deste cenário que se ressalta a importância do reconhecimento do sujeito do inconsciente nas práticas educativas. Para a psicanálise, é de fundamental importância, no intento de entender o que norteia o processo educativo, considerar o sujeito do inconsciente na educação, sujeito este que não segue o modelo científico e os ideais da ciência.
Assim, decorre que, enquanto na educação o sujeito contemplado é o do conhecimento, cognitivo, passível de mensuração, o sujeito do qual ocupa-se a psicanálise é o sujeito do inconsciente enquanto manifestação única, singular, não mensurável e que, por isso, não pode fazer parte do concretamente observável.
Neste contexto, tratar do processo educativo pode implicar destacar a figura do professor como aquele que, inevitavelmente, numa visão psicanalítica, é convocado a ocupar um ‘lugar’ que transcende a prática pedagógica. A noção de transferência – mola mestra do processo psicanalítico – poderá contribuir para entender a relação professor-aluno, enquanto um processo correlato.
A transferência não é um termo específico da psicanálise. É um vocábulo utilizado em diversos campos, denotando sempre uma idéia de transporte, de deslocamento, de substituição de um lugar para outro. A teoria freudiana reconhece nesse fenômeno um elemento fundamental no transcorrer do tratamento e do processo de cura. Trata-se de um fenômeno psíquico presente em todas as relações humanas: médico e paciente, professor e aluno, mestre e discípulo etc.
O fenômeno da transferência é por Freud apontado como sendo um fenômeno psíquico que se encontra presente em todos os âmbitos das relações com nossos semelhantes. De acordo com Laplanche & Pontalis (1992, p. 514), "[...] a transferência é entendida como uma repetição de protótipos infantis vividos com uma sensação de atualidade acentuada".
Nessa relação, está implicada uma relação de amor, uma relação afetiva. Portanto, um professor pode ser um suporte dos investimentos de seu aluno, porque é objeto de uma transferência. Então, mais além da figura pessoal do professor, o educador vai representar, para o aluno, uma função, substituindo, nesse momento, as figuras parentais e/ou pessoas que lhe foram importantes, representando então esse lugar de ‘saber’, de idealização, de poder.
A posição em que o professor se encontra, como se pode ver, não é um lugar fácil de sustentar, pois nele estão depositadas projeções alheias a ele enquanto pessoa. O professor ignora sobre esse lugar que lhe é outorgado pelo aluno, pois é o desejo inconsciente desse aluno que está determinando o lugar a ele conferido. Em decorrência disso, ao professor é atribuído um poder que caracteriza a sua autoridade, ou seja, a autoridade do professor não é imposta ao aluno, mas outorgada ao professor pelo próprio aluno.
A autoridade não é algo consciente, que dependa do querer do professor, é algo da estrutura mesma do encontro entre duas pessoas. Ou seja, quando se tem uma desigualdade entre os elementos, principalmente em relação ao saber, tem-se uma relação de elementos em que um está na posição de saber para o outro. Nesse sentido, lida-se com o fenômeno da transferência.
Logo, se o professor se colocar na posição de que ‘tudo sabe’, não restará outra alternativa ao aluno a não ser submeter-se à posição de objeto diante desse professor. No entanto, para que o aluno possa se constituir como um sujeito ‘desejante do saber’, o professor deveria reconhecer-se um sujeito faltante, castrado. Na mesma medida, o professor deveria sustentar a sua posição como representante do conhecimento.
Com o intento de privilegiar uma melhor compreensão acerca da relação professor-aluno, julgou-se relevante um pequeno desvio à obra "O Banquete", de Platão, a fim de demonstrar a questão da transferência, e ainda ressaltar a implicação do método socrático na educação.
Sócrates inaugura um foco de interesse que tem a ver com a implicação de seu método para a educação: a ironia e a maiêutica. Por meio dos diálogos de Sócrates, pode-se ter uma idéia a respeito desse método. Ele interrogava seu interlocutor, levando-o a cair em contradição, percebendo em seguida sua ignorância (ironia), pois ao confrontar-se com seu não saber, poderia então, dar luz às próprias idéias (maiêutica). Enfim, a essência do método socrático consistia em confrontar argumentos através do diálogo, levando ao reconhecimento da ignorância, com humildade, demarcando sua célebre frase: "sei que nada sei!". Saber que não se sabe é o que mobiliza o sujeito em direção ao conhecimento.
Tomando como base esse pressuposto, qual pode ser a posição do professor frente ao seu aluno? A posição de Sócrates na pólis era a de muito amado. Por quê? Pelo seu saber. Ele detinha um saber que lhe era delegado pelos seus discípulos. Os discípulos vinham até ele com suas verdades prontas, partindo de sua realidade, e Sócrates questionava-os, instaurando a dúvida, a incerteza, levando-os, com isso, à busca do conhecimento.
A palavra de Sócrates tinha um valor muito precioso. A posição em que se encontrava era a de ideal da pólis, o ideal do sujeito do conhecimento. Essa reflexão sobre a posição de Sócrates frente aos seus discípulos remete ao fenômeno da transferência, ocorrido na relação analista-analisante, mestre-discípulo e, igualmente na realidade aqui pretendida, professor-aluno.
Na relação professor-aluno, o conhecimento só pode ser suscitado, no processo ensino-aprendizagem, através do desejo – desejo daquele a quem o conhecimento falta e desejo do professor de ensinar, pois, conforme Lajonquière (1999, p. 141, grifo do autor), "todo adulto educa uma criança em nome do desejo que o anima". Assim, se tem no professor a figura que supostamente sabe e no aluno a figura que deseja, ou não, aprender, decorrendo daí afirmar que, o primeiro sujeito, em tese, possui aquilo que ao segundo falta e, por isso, tem um grande poder nas mãos. Percebe-se, então, a interligação entre a noção de desejo e a noção de falta, posto que se deseja aquilo que não se tem.
Foi nesse sentido, objetivando situar a transferência entre o desejo e o amor, ambos regidos pela falta, que se optou pela obra "O Banquete", privilegiando mais especificamente o discurso de Alcibíades, proferido em direção a Sócrates, como analogia possível, no que se refere à relação transferencial (amante-amado), com a relação professor-aluno. Como afirma Lacan (1992, p. 71), "[...] alguma coisa que se assemelha ao amor, é assim que se pode, numa primeira aproximação, definir a transferência". Essa analogia talvez se faça significativa para situar, ainda mais, a responsabilidade que um professor tem frente ao seu aluno.
Os detalhes d‘O Banquete’ foram dados a conhecer por Platão, que dá conta dos diálogos neste ocorridos:
Agatão, no dia seguinte às comemorações de um prêmio literário, do qual saíra vencedor de um festival poético, oferece, em sua casa, um jantar para os amigos.
Após o jantar, Erixímaco sugere que cada um dos convidados exponha o que sabe sobre Eros. Ao findar da proclamação dos discursos, Sócrates é o último a falar. Sobre o amor, de acordo com Monteiro (2000, p. 70), Sócrates estabelece alguns questionamentos "‘O amor é ou não amor de alguma coisa?’, ‘Amar e desejar alguma coisa é tê-la ou não tê-la?’, ‘Pode-se desejar o que já se tem?". A partir daí, Sócrates introduz, segundo Peña (1986, p. 26), a função de falta: "Eros, sem dúvida, deseja o objeto de que ele é amor, mas quando deseja e ama ele não possui a coisa que deseja e ama. Só pode ser desejado aquilo que não se tem".
A partir do discurso de Sócrates sobre Eros, pode-se perceber a questão da ‘falta’, que é constitutiva da relação de amor. Em suma, o amor para Sócrates é o desejo de algo que não se possui.
Após o discurso de Sócrates, um grande barulho indica a chegada de arruaceiros, dentre eles Alcibíades. Ao perceber a presença de Sócrates, inicia um discurso com tom de ironia, reconhecido por Sócrates como resultado do ciúme do outro (Agatão). Alcibíades diz que tentará louvá-lo a respeito de sua sabedoria. Sócrates, nesse momento, se encontra na situação de amado e Alcibíades na situação de amante.
Alcibíades, enquanto amante, "[...] necessita saber sobre o desejo do amado, para ajustar-se a ele", ressalta Monteiro (2000, p. 70). Ele sabia que era amado por Sócrates, mas precisava de uma confirmação. Porém, "[...] Sócrates recusa esse lugar de possuidor de algo desejável: ‘Aqui onde você vê alguma coisa, eu não sou nada’" (MONTEIRO, 2000, p. 70). E, logo em seguida, Sócrates se volta a quem está à sua direita e faz um elogio a Agatão. . .
Então, é nessa recusa "[...] de ser o objeto amado (de ser e/ou possuir o ágalma, alguma coisa visada pelo desejo) que Sócrates mantém o desejo de Alcibíades, porque lhe mantém a falta" (MONTEIRO, 2000, p. 70-1). Se a transferência se assemelha ao amor, o amante se aproxima do outro pela falta.
Direcionando essa linha de pensamento para o universo escolar, um professor, sabendo disso, talvez possa atentar para esse ‘lugar’ em que se encontra na relação transferencial. Nesse ‘jogo de amor’, ora ele está no lugar de amado, (o qual é outorgado a ele pelo seu aluno), ora no lugar de amante (momento em que se põe como um ser faltante), ou seja, em duas posições que o colocam em xeque. Dois lugares que deverão ser dosados na mesma medida; ‘lugares’ que causam um certo mal estar.
Percebe-se então, que um professor pode estar bastante imerso na dinâmica do amor pelos alunos. O educador é aquele que, em muitos momentos, poderia estar influenciando, significativamente, na história de seus alunos.
Neste sentido, a palavra passa a ter um significado muito forte na educação. O professor só vai poder ser reconhecido nessa posição de saber pelo aluno se a palavra do professor não for uma palavra qualquer, ou seja, se a palavra do professor for reconhecida e autorizada como, realmente, um "lugar de saber".
Sabendo disso, um professor poderia se colocar como um interlocutor qualificado, no sentido de reconhecer essa dimensão que está relacionada com o fenômeno da transferência, e participar de modo mais consciente na educação do aluno, sem deixar de exercer a sua função, que é a de ensinar, visto que, cada vez mais, a escola passa a ser um lugar em que a criança-aluno permanece a maior parte do seu dia.
Sob a ótica da psicanálise, é de fundamental importância ouvir o aluno na sua individualidade para que a palavra seja resgatada em toda a sua autenticidade a partir das diferenças. Obviamente, o professor, diante da realidade cotidiana, não poderá se tornar um clínico, nem poderá escutar o aluno como faz o psicanalista, dando lugar ao inconsciente. Mas poderá, através de uma ética, que leva em conta os fenômenos inconscientes presentes na sua relação com os alunos, ajudá-los a avançar diante das muitas questões que os mesmos encontram no curso de sua trajetória escolar.
Em outras palavras, o saber do professor sobre a importância da palavra proferida pelo aluno poderá levá-lo a dar ensejo à fala deste, deslocando a palavra do educando para um lugar extremamente significativo. Esse movimento do professor poderá possibilitar um lugar para o aluno e, conseqüentemente, para a sua própria escuta. O aluno "[...] precisa dirigir sua fala a alguém para que esta retorne e ele a ouça. Não se ouve se não usar esse recurso" (KUPFER, 2000, p. 138). Talvez aí resida uma segunda chance da criança-aluno poder encontrar um interlocutor depois da família. Isso poderá fazer uma diferença na sua vida.
É, também, muito importante que o professor demonstre que gosta do que faz, que seu semblante revele ser a sala de aula um lugar em que ele se sinta bem. Para isto, entretanto, é crucial que a escolha de ‘ser professor’ esteja marcada pela paixão de formar. Este perfil de professor é tomado pelos alunos como um líder, um referencial, conseqüentemente, sua palavra também é tomada como a de alguém respeitável, digna de ser ouvida. Um professor sensibilizado possibilita espaços para que haja a circulação da palavra, apostando na possibilidade discursiva de seus alunos, favorecendo para que o aluno possa se implicar no seu processo de vir a ser.
Há que se salientar aqui que a pretensão deste estudo não é dar um modelo de técnica para ajudar na relação professor-aluno, mas, como já enfatizado, colocar a função do professor como aquele que, para além do seu conteúdo programático, sem abdicar de sua função, enquanto alguém responsável pela transmissão de conteúdos formais, possa ser também aquele que escuta o que a criança-aluno tem a dizer, apostando na possibilidade discursiva de seus alunos.
Referências bibliográficas:
A Obra Prima de Cada Autor – Platão. (2001). São Paulo: Martin Claret.
KUPFER, M. C. M. (2000). Educação para o futuro: Psicanálise e Educação. São Paulo: Escuta.
LACAN, J. (1992). O Seminário, livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Zahar.
LAJONQUIÈRE, L. (1999). Infância e Ilusão (psico) pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, R.J: Vozes.
LAPLANCHE, J. & Pontalis, J.-B. (1992). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
MONTEIRO, A. E. (2000). A Transferência na Ação Educativa. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.
PEÑA, J. F. (1986). Platão e Banquete. Letras da Coisa nº 3. Curitiba, PR: Coisa Freudiana – Transmissão em Psicanálise.
1 Artigo, publicado na íntegra pela revista de Psicologia Encontro. Unia, Santo André- SP, jul- dez 2004.