Services
On-line ISBN 978-85-60944-06-4
On-line ISBN 978-85-60944-06-4
An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004
A infância, o professor e a inclusão: histórias sobre outro tempo
Maria Eugenia Capraro de Toledo
Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida
Cena I: A Professora
"Não sei ensinar esta criança!" – diz uma professora com as faces avermelhadas e os olhos arregalados, num misto de raiva e desespero. Não pede ajuda, não expõe uma dúvida, não murmura uma queixa. Diz que "não sabe"; não sabe ensinar; ensinar uma criança. Agencia um discurso que a coloca diante de seu interlocutor como quem impõe um desafio. Caso não obtenha alguma resposta aparentemente apaziguadora, mesmo que momentânea, até que outra afirmação avassaladora irrompa; continuará como a esfinge: "Decifra-me ou te devoro".
Não se trata aqui da promoção de uma discussão a respeito da realidade educacional brasileira, a má formação dos professores ou a falta de recursos humanos e materiais para atender a uma enorme demanda de alunos que engrossam as estatísticas dos fracassados escolares, dos indisciplinados e das crianças com necessidades educativas especiais. Trata-se de recortar uma fala particular e fazê-la promover uma reflexão a respeito da inclusão do professor como artífice de uma modalidade de intervenção que subverte os paradigmas da (psico)pedagogia hegemônica, que ditam uma estrutura de escola pautada em padrões de adequação e enquadramento.
Os trabalhos de reflexão sobre a inclusão escolar de crianças com vicissitudes na subjetivação, como as psicóticas, pressupõem uma escuta atenta dos discursos agenciados pela e na escola, uma vez que ela é a instituição por excelência para outorgar a insígnia de uma criança na modernidade. O enodamento dos conceitos de infância, família e escola se traduz em uma modalidade de relação entre crianças e adultos: a educação. Através de atos educativos, um adulto pode assujeitar a criança ao campo da palavra.
A psicanálise comparece como uma das possibilidades de leitura do discurso escolar vigente sem, no entanto, deixar-se capturar como uma metodologia aplicável fora de seu enquadre específico.
A proposta de educação inclusiva evoca uma nova implicação do professor no ato educativo, pois incluir crianças que não demandam um saber daquele que ensina pode produzir paralisação, queixa, culpalização e até mesmo a enfermidade do professor. A inclusão de uma criança deve levar em consideração a inclusão do professor no sentido de oferecer-lhe um espaço de escuta.
Cena II: Primeiros Passos1
Ainda sob o turbilhão que aquele encontro com a professora Norma provocara, deparei-me, certamente não ao acaso, com uma tela em que predominam tons de verdes suaves, entrecortados por pinceladas azuladas, rosadas e avermelhadas. Sutis.
Ali, numa naturalidade comovente, apresentam-se um homem, uma mulher e uma criança que encarnam pai, mãe e filha, enlaçados por uma trama que transborda a imagem. Algo da dialética educativa se revela pelas cores de Van Gogh.
À esquerda, o pai, numa pausa do trabalho, agachado, de braços abertos para antecipar e amparar os passos da filha. À direita, a mãe, sustentando a posição paterna, separando a filha do próprio corpo para então entregá-la ao caminho que traçará com seus passos.
A criança, vacilante, desliza no espaço cênico produzido pelo desejo de seus pais.
Nas tramas da tela, o tempo funciona como alinhavo. Tempo de colher, denunciado pela enxada e a carroça próximas ao homem, metáfora do mundo do trabalho. Tempo de plantar, anunciado pela casa e a figura da mãe, que abraça a infância. Tempo de desejar, oferecido pelo compasso dos passos da pequena criança que desliza do colo da mãe para os braços do pai, que espera, dando tempo ao tempo.
O que há entre os adultos e a criança na cena é algo da ordem da educação; o possível entre adultos e crianças. De um lado a insuficiência materna, aquilo que a mãe teve que perder de seu narcisismo. De outro lado, o pai, antecipando, apresentando um Ideal do Eu. No caminho, uma brecha, produzida entre a antecipação e a posição inicial. No espaço, a criança cria, deslizando das marcas do passado, colocadas na mãe, para buscar os instrumentos do futuro, no pai.
A espera cautelosa pelo tempo dos passos da criança busca a semelhança e inscreve a diferença. Filiar-se e separar-se comparecem na cena como substratos da constituição de um sujeito que habitará a linguagem que o antecipa. A criança de Van Gogh desliza na hiância deixada entre os adultos que a precederam.
Cena III: Histórias sobre outro Tempo
A Educação não pode confundir-se com paradigmas pedagógicos, uma vez que aquela transmite marcas de desejo que humaniza o que outrora não era um corpo, como nos diz Kupfer (1999): "Quando um educador – um professor ou um pai – opera a serviço de um sujeito, abandona técnicas de adestramento e adaptação, renuncia à preocupação excessivas com métodos de ensino e com os conteúdos estritos, absolutos, fechados e inquestionáveis. Nessa direção, a Educação pode ser entendida como uma prática social que visa à produção de bordas no Real, bordas capazes de colocar um anteparo contra o assédio constante do retorno desse Real, bordas que se fazem com a construção do Simbólico e que permitem a emergência de um sujeito".E continua: "Quando os pais de uma criança lhe ensinam coisas, quando dizem "não", quando lhe mostram como proceder no cotidiano, não estão apenas realizando uma instrução. Estão, ao contrário, pilotando a construção de um sujeito, produzindo com seus atos a montagem de uma borda, dando-lhe um contorno, fazendo surgir algo que anteriormente não estava, um jardim no deserto da pura carne".
A criança psicótica, que vai passar a ocupar um lugar de aluno, carece justamente de bordas, pois sua constituição subjetiva mancou. Esta criança não demanda saber do Outro. Comparece como pura marca, solidificada em significantes que a impedem de desejar.
Norma, a professora que "não sabe ensinar", não está simplesmente usando uma força de expressão. Realmente não sabe como ensinar a quem nada demanda. Não sabe ensinar a quem não aprende, ou não o faz do modo e no tempo convencional. A escola, tal qual o Leito de Procusto, quer receber hóspedes que se encaixem, fiquem adequados a um molde pré-estabelecido pela (psico)pedagogia dominante, correspondendo a um ideal desenvolvimentista. Aos que excedem a borda, o sacrifício.
Quando Norma enuncia seu "não saber" denuncia sua desvalia. Essa criança, que comparece por vezes "desmanchada" como uma poça d’água em sua sala de aula; que por outras, grita e gargalha, come as "melecas de nariz" e se masturba, realmente a subtrai do lugar de professora. A destitui daquele lugar de onde ela sabia responder; a "demite" do lugar de professora. Seus saberes não podem dar conta da invasão de um corpo sem bordas, Real, sem mediação. A fala desnuda o assombro diante da impotência e da solidão que aquela criança produz. Chega até mesmo a dizer que "aquilo não é uma criança!"
A precipitação poderia sugerir que uma ação profilática teria impedido a erupção daquela crise. Alguma explicação sobre o diagnóstico da criança, alguma antecipação do que poderia promover uma situação como aquela; algum "manual de instruções" de como pilotar um psicótico, deveria ter sido posto à disposição da professora. Mas nada disso seria capaz de prevenir aquilo que pôde ser lido só no depois, no après coup, e que fora produzido no interior da relação entre aquela professora e sua aluna.
Procurar ajuda foi uma maneira de buscar respostas para um problema enunciado como particular. A professora não podia ler que ali se tratava de um mal estar implícito na educação, um dos impossíveis de Freud, e então, como diz Bastos ,"(...) preocupa-se em marcar sua posição de integrante de uma estrutura escolar que dita normas e funcionamentos diante dos quais ele (o professor), muitas vezes, se sente impotente e incapaz de operar mudanças".
Bastos teoriza sobre as produções discursivas dos professores, nas quais, muitas vezes, o que se dá a ver é uma pergunta sobre o que fazer. O professor busca um conhecimento prático, algo exeqüível que não ponha em xeque seu saber sobre como ensinar uma criança.
No caso de Norma, isso fica claro: diz não saber como ensinar aquela criança que não estabelece vínculos, que faz uma leitura fora do ritmo da turma, que fala coisas desconexas da realidade, que cola no corpo dela e dos colegas. Em certo momento, diz que "não consegue saber o que a aluna já sabe".
A “não resposta”, o silêncio, a escuta do dizer da professora, podem produzir o que Bastos (2003) enuncia como um “giro discursivo”, ou seja, a professora pode produzir algo novo quando se vê diante da “(...) confrontação com seu próprio dizer”. Isso não acontece sem conseqüências, pois produz uma dúvida sobre “como aprende aquela criança” e “que professora eu posso ser para ela”.
Norma diz "Sou professora; só sei ser professora!" Nesse excesso de "professora", nesse maciço de demanda de um Outro, que invadia o corpo da menina de modo a dissolvê-lo, Norma não poderia fazer operar nenhuma aprendizagem. Então, diz a seguir: "Ela produz quando estou a seu lado". A menina naquele momento precisava de um "corpo emprestado" que lhe desse consistência. Era necessário que se dispusessem ofertas sem produzir demandas, ficando-se ao lado. A professora reconhece ali uma possibilidade, pois já experimentou isso em algumas ocasiões. Falando sobre isso, Norma pode encontrar uma nova posição perante sua aluna.
Antes de sair, a professora pede um tempo: "Preciso de um tempo para pensar se quero ou não ser professora desta criança". Aqui não se dá algo da ordem da certeza como "Não sei ensinar esta criança!" Norma coloca "em suspensão" sua decisão. Faz como que uma pausa para escolher, decidir sobre seu desejo.
O quadro de Van Gogh aparece depois disso. Os pais da cena banal, da trivialidade campestre recortada por Millet e relida pelo holandês, também não sabem como educar uma criança. Fazem uma escolha, deixam o desejo abrir brechas entre a antecipação e a posição inicial. A criança perderá algo no primeiro passo e capturará algo no ponto seguinte. Aqui se configura o tempo que abre o espaço cênico. A vida do sujeito é a experiência do tempo. As crianças não precisam que sejam satisfeitas suas necessidades, pois a educação não revela alguma coisa da ordem da necessidade, mas alguma coisa da ordem do desejo, como nos diz Lajonquière.
Norma, quando fica capturada no registro da necessidade, sabe sempre de antemão o que um aluno precisa, e toda a intervenção é feita neste registro. Como ela já sabe sobre como ensinar uma criança, por que vai esperar? Por que vai aguardar que a criança dê novos significados aos significantes ofertados? Supõe sempre o que está de acordo com a sua expectativa. Aquilo que regressa já existia nela, não é nada novo e se não é novo, em última instância, ela não pode reconhecer ai a operatividade do sujeito do desejo da criança. Não há mistério.
Quando uma professora se depara com crianças que apresentam "(...)um funcionamento intelectual absolutamente atípico"(Kupfer, 2000) pode responder de um lugar que desconsidera o tempo, que não antecipa um sujeito e que não promove nenhum esticamento dos sentidos produzidos pela criança diante dos saberes escolares ofertados.
Norma fica impotente diante de uma criança que não pode responder aos ideais do eu que enuncia quando se remete a ela, uma vez que não pode colocar sua professora no lugar da identificação. O que parece insuportável para Norma é sustentar o lugar do não saber, da não operatividade da intervenção pedagógica, da suspensão, mesmo que provisória, de uma demanda de professora.
Norma pode escolher ficar com aquela criança se puder implicar-se com seus atos educativos e estabelecer um novo tempo, alargando o espaço para que sua aluna possa dar o primeiro passo, uma vez que nos casos de inclusão de crianças cuja subjetividade foi trincada, esperar, agachado e de braços abertos, pode ser a melhor forma de acesso a ela.
Referências bibliográficas:
BASTOS, Marise (2003). Inclusão escolar: Um trabalho com professores a partir de operadores da psicanálise. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.
KUPFER, Maria Cristina M. (2000). Educação para o futuro: Psicanálise e educação. São Paulo, SP: Escuta.
KUPFER, Maria Cristina M. (1999). A psicanálise na clínica da infância: o enfrentamento do educativo. In Anais do i Colóquio do Lugar de Vida /LEPSI (p.99 e 100). São Paulo, SP: Universidade de São Paulo.
KUPFER, Maria Cristina M.; Petri, R.(2000) "Por que ensinar a quem não aprende?". Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com problema, 5 (9), 109-117.
LAJONQUIÈRE, L. (1999). Infância e ilusão (psico)pedagógica. Petrópolis, RJ: Vozes.
1 Referência ao quadro homônimo de Vicent Van Gogh, datado de 1890 e inspirado em uma pintura de F. Millet.