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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Vínculo mãe-bebê: a especularidade e o espaço potencial

 

 

José Paulo Naiberg NaslavskyI; Marianne Carvalho Bezerra CavalcanteII

ICurso de Psicologia FAFIRE
IIUniversidade Federal da Paraíba

 

 

Neste trabalho gostaríamos de refletir acerca da relação dialógica mãe-bebê, direcionando nosso olhar para aqueles processos constitutivos do "Eu". Para essa observação tomamos de empréstimo alguns conceitos fundamentais propostos por Winnicott e Lacan, na medida em que acreditamos haver em tais conceitos proximidades ou, ao menos, referencias cruzadas.

A díade que se estabelece entre o bebê e quem exerce a maternagem coloca-se para psicanálise como lugar privilegiado para observar este momento constitutivo. A partir do olhar sobre a relação da dinâmica dos movimentos da mãe em direção ao bebê e do bebê em direção à mãe, objetos de desejo um do outro, que o novo ser irá se relacionar com o mundo.

Considerando a díade como um vértice de um triangulo, vamos pensar o funcionamento destes dois autores, Winnicott e Lacan, como observadores a partir dos seus pontos de vista conceituais.

O funcionamento da díade para Winnicott (1993) parece estar pautado na busca em compreender como esta dinâmica relacional possibilita a construção do aparelho psíquico da criança. Assim, ele a toma enquanto algo concreto. Detendo-se na caracterização do que envolve tal dinâmica, como o processo de holding, que envolve o cuidado adequado ao bebê no seu momento. Como destaca o autor:

"O holding tem muita relação com a capacidade da mãe de identificar-se com seu bebe. Um holding satisfatório é uma porção básica de cuidado, só experimentada nas reações a um holding deficiente. O holding deficiente produz extrema aflição na criança". (Winnicott, op. cit.: pg. 26-27).

Em Lacan (1953-1954) este funcionamento diádico se coloca enquanto possibilidade de refletir acerca da subjetividade. Isto é, a díade não é tomada enquanto uma concreta interação mãe-bebê, mas sim possibilidade de teorização acerca do nascimento sujeito. Para isso, ele vai se basear na noção de especularidade, que permeia o par.

"A Urbild1 que é uma unidade comparável ao eu, constitui-se num momento determinado da história do sujeito, a partir do qual o eu começa a assumir suas funções. Isso equivale a dizer que o eu humano se constitui sobre o fundamento da relação imaginária...No desenvolvimento do psiquismo aparece algo novo cuja função é dar forma ao narcisismo. Não será marcar a origem imaginária do eu?" (Lacan, op cit. : 136).

A partir desses olhares singulares, os autores vão construindo o estatuto desta relação em suas teorias.

Ao tomar como objeto de observação uma díade real2, trazemos um recorte que nos parece relevante à luz do que já foi exposto até momento:

Recorte 1

Contexto: Mãe brincando com o bebê (5 meses) após a refeição. O bebê está sentado numa cadeirinha e a mãe sentada à sua frente.

(cheira o pé do bebê e fala sorrindo)
qui catinga de chulé minina. Chulé di novu. Enquanto a mãe fala com o
Vichi Maria, qui catinga di chulé.
bebê, este sorri e mexe o corpo e os pés , durante todo o tempo do diálogo materno.
(beija o pé do bebê e fala
sorrindo com voz em falsete)
é é, beijinho no pé.  
qui catinga, Vitória! Vô compá pó de 
chulé pa tu visse! Vô compá pó di chulé pa você! 
Qui você tá com chulé. É. Você tá com chulé 
Vitória. Tá com chulé minina! 
(cheira o pé do bebê) 
Cheu vê, cheu vê ! Vichi malia!  

Para Winnicott (1993 p. 153) , a leitura deste recorte interacional remete à

"adaptação da mãe às necessidades do bebê (...) e demonstra que ela começa com uma grande capacidade para conhecer as necessidades do bebê, através de sua capacidade de se identificar com ele".

No fragmento isto se coloca no dialógo que a mãe estabelece com o bebê, percebe-se um bebe gratificado com a atençao e cuidados que recebe da mãe, através da movimentação corporal e sorrisos. Numa relação prazerosa em que não se percebe nem a mãe, nem o bebê e sim uma fusão.

Em Lacan, este momento se coloca como um atendimento materno à uma demanda orgânica do bebê, o bebê aparentemente convida a mãe a esta interação. O bebê ao responder à mãe com os movimentos corporais gera na mãe uma leitura prazerosa e um convite ao prolongamento deste momento relacional.

Podemos dizer, concordando com autores como Klautau (2002) que enquato Winnicott vê nesta relacional um momento fusional em que mãe e bebê são UM, Lacan vai conceber este momento enquanto intersubjetivo, o bebê se colocando como demanda e a mãe dando resposta a esta demanda, ou seja uma relação a DOIS.

O processo de diferenciação da díade, nestes autores, vai se estabelecer na constituição e suas conseqüências de uma hiância a ser preenchida nesta relação, necessária para o aparecimento do EU. Apesar de ambos tratarem desta hiancia, a natureza do que vem a ser isto, nos autores, vai modificar o olhar sobre a díade.

Para Lacan, tal hiancia se constitui através da falta criada pelo que nomeou objeto a, ou seja, o representante do desejo não preenchível. É assim via relação especular, que mãe e bebê se oferecem como objeto de desejo um do outro o que, para o bebê instaura o processo de diferenciação eu/não –eu. Como podemos observar no recorte apresentado.

Em Winnicott, a hiancia que se coloca entre mãe e bebê constitui um momento de passagem entre o que ele denominou de apercepçao para percepção. O recorte que analisamos há pouco, dá conta do momento fusional, pela leitura de Winnicott, momento da apercepçao.

A passagem deste momento fusional para separação entre mãe e bebê se dá naquilo que o autor nomeia como espaço potencial. Espaço no qual não há dentro nem fora, onde se realiza a primeira possessão do bebê – o não-eu – o objeto transicional. É o primeiro uso simbólico da criança que se constitui através do jogo de presença/ausência criado pela mãe, em que a dimensão subjetiva vai sendo instalada. O fragmento a seguir ilustra isso:

Mãe e bebê ( 9 meses e 10 dias) estão no quarto brincando no chão. Vitória engatinha ao redor da mãe enquanto quando esta tira sua chupeta.

1 não, não// me dê, me dê  
2   bebê vai para junto da
  mãe querendo de volta a chupeta adijá: ar:  
  (choramingando)  
  (falsetto)  
3   A mãe dá a chupeta
  Hum (inc.) ela tá com sono. ao bebê, que a pega e
    afasta-se da mãe
  (inc.)deixa eu pegar sua fralda.  
4   Balança a chupeta e
  balbucia ritmado, enquanto mãe sai do quarto (3s)  
5 (volta ao quarto e chama Vitória de babona  
  limpando sua boca)  
  (falsetto)  
  bababa:  
6   babaÈba: (começa
  a gritar e olha para câmera)  
  (enfático)  
7 Esqueça Mariane, ela está invisível.  
8   aÈaaaÈaa (com a
  chupeta na mão e olhando para câmera)  

Como podemos observar, à luz da perspectiva de Winnicott, o objeto externo, a chupeta, teria uma função de objeto transicional, nesse caso, substituto aparente do lugar materno, uso simbólico primeiro da criança. Que demarcaria a entrada da criança no processo de separação de sua mãe. Winnicott, ao falar da constituição do sujeito se ampara num processo de descentração, isto é, da apercepção para a percepção.

Em Lacan, este objeto real não existe para relação, o que há é aquilo nomeado por objeto a, enquanto representante da falta, nele simbolizável. O que estaria representado no gesto do bebê ao apropriar-se da chupeta e dirigindo-se para a câmera (pesquisadora) balbuciando um trecho da cantiga de ninar? Não seria este um movimento metonímico no qual um significante remete a outro significante, levando a um deslocamento interminável do objeto de desejo, tal como coloca Lacan?

Nessa perspectiva, é possível inferir um momento anterior, no qual a partir de uma experiência de necessidade, o mundo externo propõe ao bebê um objeto de satisfação – o seio/a chupeta que ele antes não buscava, junto com a sensação de satisfação transformar-se-á numa marca mnêmica, constituída pela experiência de necessidade, ligada à representação do objeto que satisfaz (Bleichmar & Bleichmar, 1992).

No fragmento acima, ao oferecer a chupeta a um outro (a câmera/pesquisadora) o bebê oferece o falo ao Grande Outro, como diz Lacan, na relação especular o bebê se apresenta ao outro como lhe oferecendo o falo nele mesmo, se identificando com o falo ou como portador do falo. Ele se oferece como objeto, como lugar da falta. É aquilo que Lacan concebe como alienação. A alienação ao desejo do outro.

A partir do interjogo de presença/ausência da mãe, o bebê vai instaurar a falta e a construção do desejo. Isso o coloca gradualmente num outro campo que não é o da alienação à mãe. Ainda incapaz de perceber as bordas do seu eu/corpo, aos poucos vai ganhando estatuto de objeto à medida em que se torna imagem. É a isto que Lacan metaforizou como estádio do espelho: quando o bebê capta a imagem do outro unificada ele antecipa o que desconhece de si: a gestalt de seu corpo, concebida enquanto imago. Constituindo assim um duplo – eu e objeto – ao mesmo tempo semelhante e diferente (Klautau, 2002).

Temos aqui, um processo de centração, isto é da fragmentação para o eu. Da alienação ao outro/Grande Outro para a separação do eu se constituindo enquanto falta.

Finalizando, gostaríamos de apresentar um último fragmento da mesma díade. Chamamos a atenção para o papel exercido pelo bebê neste recorte.

A mãe e o bebê (10 meses e 19 dias) estão sentados no chão do quarto. O bebê está embaixo de uma mesa e a mãe lhe oferece uma boneca.

(coloca a boneca na posição de ninar e canta a cantiga)
  (baixo)  
1 Áa áa áa áá. Tome nê (entrega a boneca)  
2   aaá: (estende a
boneca para a mãe e para a câmera) permanece olhando para câmera e sorrindo
3 Áaáaáá (1s)  
  (põe a boneca junto de si)  
  num é nenê  
  Áa áa áa á  
4   aaá: (nina a
    caixa da fita)
5 (a mãe ri e mexe na boneca e estende a boneca pro bebê)  
  Áaáaá. Bota nenê pra durmir.  
6   Vira para a câmera
    e bate na caixa
7 Essa caixinha é uma história.  
8 (a mãe aproxima a boneca de si e volta a Olha a mãe ninar a
  niná-la) boneca
9 Áa áa áa á  
10   aaá: (ninando
    a caixa)

Num olhar Winnicottiano, o bebê aqui parece ter se apropriado de um outro lugar que não aquele fusionado com a mãe. Curiosamente, estabelece uma relação de holding dirigida a um objeto eleito como um bebê que passa a ninar. Tal relação aponta para o reconhecimento de lugares diferentes: o de mãe e o de bebê, destacando uma separação.

Numa outra dimensão teórica, o olhar Lacaniano poderia apontar um movimento de um eu que se constitui metaforizando o Grande Outro. Pois o bebê, ao se colocar como se fosse instância de alteridade, atribui identidade ao objeto, ao se colocar como objeto do desejo do pequeno outro, assume, dessa forma, o papel do Grande Outro nessa relação.

 

Referências bibliográficas:

KLAUTAU, Perla (2002). Encontros e Desencontros entre Winnicott e Lacan. São Paulo. Ed. Escuta.

WINNICOTT, D. (1993). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago.

LACAN, J. (1953-54) (1986). O seminario Livro I: Os escritos técnicos de Freud. Jorge Zahar.

BLEICHMAR N. & BLEICHMAR C. (1992) A psicanálise depois de Freud. Porto Alegre. Ed. Artes Médicas.

 

 

1 Palavra alemã que significa a primeira imagem do eu (Klautau, 2002)
2 Corpus de pesquisa do LAFE (Laboratório de Aquisição da Fala e da Escrita, em João Pessoa)