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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A(s) instituição(ões) da infância: mistificação e desmistificação

 

 

Mercedes Minnicelli

Facultad de Psícologia Universidade Nacional De Mar Del Plata, Argentina

 

 

Em nossos tempos, assistimos a uma desvalorização do poder da palavra. Os atos a substituem emergindo sob a forma de violência, chegando inclusive ao não reconhecimento da dor própria e alheia, ao não reconhecimento do outro como semelhante. Entre o desejo e o ato não há mediação. Se esta é a experiencia dos "adultos", como pensar que as crianças não refletirão de algum modo estes efeitos?

Quando está ausente a sustentação da demanda do Outro, sujeito à linguagem e à lei da cultura, um não lugar está garantido. Encontramo-nos com corpos de crianças expressando descargas motoras em muitos casos desenfreadas. O sujeito infantil expressa um desvario pulsional próprio a esse tempo inicial dos humanos, sem encontrar fluxo psíquico; sem achar um modo de organizar-se em torno da operação simbólica que o institui como sujeito.

A proposta é de nos interrogarmos sobre este silenciamento que assume a forma de renúncia à filiação simbólica do filhote humano, à sujeição à cultura, ao acesso ao intercâmbio de seus bens.

A população infantil transita aparentemente sem rumo. Dizer aparentemente implica que, de um modo ou de outro, a busca por algum rumo pareceria ser inerente ao humano. Esse sem rumo é um modo de dizer que sugere que o lugar para onde se dirigem não é aquele que esperaríamos, é dizer que o rumo da infância seria a possibilidade de perdê-la e a passagem ao estado adulto. Não demanda social deste tipo, de imaginar-se "quando for grande". Por um lado, as estatísticas de desnutrição são muito eloqüentes. Por outro, e esta é só outra forma de desnutrição, que se soma e agrava a primeira, a ausência de nutrição de palavras, de narração da experiência, da transmissão intergeracional.

Não há desejo no qual alienar-se quando o Outro se apresenta ao filhote humano fragmentado.

Lacan estabelece como o novo integrante da espécie humana será precipitado na tensão entre o real e o simbólico. Ingresso possível mediante ser considerado objeto do desejo materno ou de alguém mais. Ser investido como objeto de desejo é o modo de ingresso no universo simbólico que o Outro carrega, tesouro de significantes, sujeito à legalidade da cultura. A partir desse lugar se inicia o processo de alienação – separação, habilitando-se entre presença-ausência (e a experiencia mítica da satisfação freudiana) o jogo entre demanda e desejo.

Duas questões coexistem e é minha intenção trazê-las para a discussão com vocês

1 Sobre o rebaixamento, ou dissipação, ou frouxidão que apresentam os laços intergeracionais. Tanto entre pais e filhos, como entre crianças e adultos, qualquer que seja o lugar social que ocupem em relação à infaâcia, o lugar do Outro se apresenta disipado, pálido, não podendo oferecer-se como sustentação ou suporte para a tensão intergeracional, na diferença entre os modos de desamparo de uns e outros.

2 Sobre o descrédito – de discursos e práticas sobre a infância – do valioso lugar que ocupa o imaginário na infância, como instância favorecedora da conexão possível entre o real e o simbólico, possível pela operação de castração, veiculada pelo significante do nome do pai. Como resultado, dificulta-se a operação de inscrição simbólica na legalidade da cultura.

Efeito das transformações que vivemos em nossos tempos, asistimos a um problema que precisa revestir-se de algum modo. A criança foi desinvestida pelo discurso social como objeto de transmissão geracional. O adulto cada vez mais renuncia o investimento do tempo de criação como passagem para o estado adulto.

Desterradas e passíveis de sofrer uma espécie de infanticídio tolerado, as crianças buscam arranjar-se sozinhas. A frátria é um refúgio. A proximidade e derivados afasta-os da tomada de contato com a dor de cenas intramitáveis.

Assistimos a um tempo de descrédito na necessidade de sustentar as criançzas em sua infância. Não demos a nossa por perdida? Curioso efeito em tempos da Convenção Internacional pelos Direitos das Crianças.

As histórias de vida, as condições nas quais transita a infância de muitas crianças, são verdadeiramente subumanas. Desalojados, expulsos ou exilados, igualmente seus corpos habitam o mundo. Corpos pulsionais que atuam sem palavras, sem qualquer possibilidade de freio.

Esse tempo, ao qual Freud outorgava especial relevância, a saída do primeiro tempo edípico e o ingresso no período de latência, pareceria ser algo a ser lembrar com saudades. O real se faz presente em sua crueza. Não há tempo de latência, porque não há passagem anterior pela operação na qual os diques psíquicos (vergonha, pudor, nojo) possam instalar-se. Sem véu algum, o real se apresenta da mesma forma que o obsceno.

Quer se trate de crianças crescendo em condições de vida paupérrimas, quer se trate de crianças com ditas condições medianamente organizadas, uma constante se encontra em muitas delas e é a descrença na palavra do adulto. A não resposta ao olhar, à voz, ao gesto. Se seguirmos a linha de pensamento iniciada, sua não resposta não deveria nos surpreender. É a demanda do Outro que retorna invertida, não há olhar sobre elas, não há palavra, não há gestos de adultos que sustentem esse corpo pulsional com a palavra, o gesto, a voz.

Mesmo assim, o tema merece ser abordado, já que o que atrai minha atenção é como de um modo ou de outro as crianças buscam amarrar-se a algo. As formas não são as convencionais.

Retomemos um das imagens de nossa análise: aquela que fala da renúncia à nutrição do imaginário das crianças. Um dos efeitos disso é o excesso de "realidade", que implica que não há lugar para a ilusão, não há lugar para as crenças míticas, outrora sinônimo de infância. Ainda assim, o interesse que despertam certos jogos virtuais "na rede" não pode passar inadvertido.

O resultado disso, crianças incrédulas. Crianças que não são crianças, precipitadas na realidade em seus excessos de sexo, de violência, de trabalho; não podem enlaçar-se socialmente. Crianças invadidas pelos excessos de informação que não encontram modo algum de se transformar em saber fazer com a vida, "desprendidas" da legalidade organizadora da cultura – aquela que assinala o lugar do permitido e do proibido, além da lei de proibição do incesto, detonadora do jogo de permuta inerente à genealogia, necessária renúncia pulsional em troca de ser parte da cultura.

Certos discursos sociais – inclusive o legislativo e o judicial – omiten a consideração do desamparo próprio da infância. Outorgam à infância maiores possibilidades do que podem. A economia das crenças têm sua face. Freud (1905) elabora uma lei em princípios do século XX que comove a opinião pública de então e continua comovendo hoje em dia. Ao falar da sexualidade infantil e outorgar-lhe caráter de lei produz uma ruptura epistemológica nos saberes sobre a infância. Dois termos são importantes em Freud, o sujeito infantil – o infantil do sujeito. A ligação entre dois momentos subjetivos, o da infância em tempo de constituição, de organização libidinal ou subjetiva e a riqueza das experiências ou posições da infância, promotoras de sintomatologias diversas na vida adulta.

A "descoberta"das diferenças e a construção das "teorias sexuais infantis"1 aparecem no discurso infantil sob diferentes formas e, aparentemente, representam um passo inevitável no trajeto, que nunca é linear, pelo qual transita a subjetividade, assinalando um marco importante na vida da criança, representando a abertura imaginária e em certo sentido "fantástica" para explicar aquilo para que não se encontra explicação. Momento em que o pensamento mágico infantil se encontra em seu apogeu; as crenças sobre a sexualidade e a diferença entre os sexos se traduzem em pares antitéticos: ter ou não ter; em que as perguntas infantis investigam a origem da vida e seu fim, a morte; momento de desdobramento no devir subjetivo de outra cena possível.

A função do mito é, neste tempo subjetivante, tão constitutiva como foi o estádio do espelho e a brincadeira de fort-da, possibilitando à criança a operação simbólica que habilita o imaginário onde o real se faz inapreensível.

Esta instância é possível se e somente se… há sustentação presentificada, se há presente a damenda do Outro. Como se brinca com a ausência quando ela se prolonga? Como se sustenta a tensão com esse Outro quando este se desvanece? Aí não há jogo possível, o vazio captura a subjetividade, e torna-se uma questão de sorte o que se faz diante do desvario pulsional que encontra satisfação em um círculo vicioso e desmedido.

Pois bem, se temos que trabalhar com crianças quase desenlaçadas, quase numa deriva subjetiva, quase sem presença alguma de adultos que lhes dêem suporte, qual é o tratamento clínico possível? Como fazemos quando temos que intervir na projeção coletiva destas crianças desvairadas? É possível dar lugar ao Terceiro Social da Palavra, onde só verbalmente há um Outro? A terafa é complexa, mas não podemos renunciar à tentativa de realizá-la.

As instituições têm todavia um lugar relevante como o Terceiro Social da Palavra. O problema se instensifica quando também esse lugar de terceridade se desvanece. O tema não é simples. Como vemos, trata-se de um problema político (Agamben, G. 2000).

Se partimos destas hipóteses e o requerimento de sustentar a criança em sua própria fragilidade subjetiva, protegê-la da voracidade pulsional de tal modo que ela encontre possibilidades de organizar-se, de produzir as operações subjetivas necessárias, percebemos que a fragilidade da infância encontra, de algum modo, proteção na narrativa mítica, que transmite artifícios para saber o que fazer com o Outro, inclusive com o Outro desbotado.

Interessa-me que nos detenhamos em torno dos efeitos das narrativas míticas (as primeiras desalojadas do discurso psicológico na década de 60), começo de uma paulatina e permanente descrença da infância. Desilusões do pós-guerra que arrastaram – obviamente – as novas gerações. Acreditava-se, então, que as crianças tinham medo do tipo de histórias que se lhes oferecia. Falar às crianças com a "verdade" foi confundido com evitar a ficção. Mentira/ocultamento e imaginação ficaram ligados indubitavelmente. Hoje sabemos que certos medos infantis são constitutivos, que a narrativa de ficção só lhes oferece um lugar a partir do qual as crianças podem projetar-se e transformar-se imaginariamente.

Os contos fantásticos continuam capturando e outorgando um lugar de proteção às fantasias e medos infantis, ao mesmo tempo em que oferecem alguma saída.

Aliada privilegiada das fantasias e dos medos infantis, a ficção permite que a imaginação ofereça uma saída, permitindo – simbolicamente – que se aloje em algum personagem imaginário esse real para o qual não se pode encontrar qualquer modo de sujeição.

A narrativa de tradição popular avisa à criança sobre o mundo e suas misérias. Permite-lhe estabelecer uma distância entre suas teorias e as do mundo. A legalidade, o permitido e o proibído transmitem-se simbolicamente nos personagens que o mito suporta.

Que esta narrativa se reinstale, implica dar lugar a um rito social que legitime o momento do relato.

Para que a desmistificação possa ser possível, primeiro é necessário que se possa construir uma teoria que brevemente será desacreditada. Tempo de mistificação, engodo que requer um segundo tempo, desmistificador... que só pode suceder à experiência do primeiro tempo.

Parece-me necessário, a esta altura, diferenciar os personagens da narrativa mítica tradicional, fantástica, dos personagens que alguns adultos – inclusive comunidades – utilizam como aliados de sua autoridade, incrementando o temor infantil, sutentando seu poder sobre a culpa infantil.

O temor que a criança experimenta diante destes personagens, cuja existência conhece porque acredita no que dizem seus pais ou adultos responsáveis por sua criação, realça a autoridade que estes sustentam sobre a criança, alimenta a culpa pelos próprios desejos e o devir da onipotência em que seu pensamento se baseia. A invocação da presença destes personagens imaginários é enunciada operando em ausência. O poder adulto sobre a criança é garantido pela via do medo. Se se comportar mal, vai ver o que te acontece.

Não é exatamente nesta direção que vai meu pensamento, mas nos suportes necessários à credulidade infantil na palavra do adulto, inclusive a ilusão que cria socialmente o fato de se acreditar em certos personagens como os Reis Magos ou Papai Noel, ou mesmo o Ratão Perez. Personagens que habilitam o intercâmbio de dons, a renúncia em troca da promessa de um presente. A criança aceita a perda de seus dentes em troca de um presente. Metáfora da castração por excelência.

A desmentida que os dados da realidade lhe oferecem é por demais evidente. Exemplo de conivência entre pais (e outros adultos) para mistificar as crianças. Essa mistificação se impõe de maneira muito rigorosa e ninguém se arriscaria a denunciá-la (Mannoni, Octave {1969} 1997: 13).

Mistificação e desmistificação representam dois tempos, o primeiro de transferência à crença na palavra do adulto. Este, por sua vez, trasnfere a uma terceira instância seu poder: Papai Noel, os Reis Magos, representantes paternos, maternos dos pais – sem sê-lo. Via social, rituais de instalação da lei como simbólica.

As crianças logo chegam à descoberta do engodo adulto. Ilusão-desilusão. Certamente, Octave Mannoni pregunta-se o que faz a criança com a descoberta de que "mamãe me engana". As vias de tramitação dessa desilusão farão as diferenças subjetivas.

No melhor dos casos, a criança admite ser portadora, agora, de um segredo que o diferencia dos que não sabem. Segredo que conserva e assinala a diferença entre os que sabem e os que não sabem. Passagem que se faz quando se sustenta a credulidade infantil. Passagem que assinala a diferença, ligando generacionalmente a uns e outros e detona esses dois estados da vida. Os efeitos deste ato que operam instituindo uma ordem simbólica habilitando o vazio próprio ao Pai como significante, ao Nome do Pai, metáfora fundadora; o Real como território estranho à possibilidade de simbolização serão diferentes de acordo com a singularidade de cada caso.

 

Referências Bibliográficas:

AGAMBEN, G. 2004 Estado de excepción Adriana Hifalgo Editora, Bs. As. Argentina

DOLTO, Francoise (1981) "Los Derechos del Niño" en La Dificultad de Vivir Editorial Gedisa, Bs. As. Argentina, 1986.

FREUD, S.. 1921 "Psicología de las masas y análisis del Yo" en Obras Completas

Amorrortu editores, Tomo XVIII, 1993

................ 1950 [1895] "Proyecto de Psicología" en Obras Completas Amorrortu editores. Tomo I, 1994

................. 1927 "Fetichismo" en Obras Completas Amorrortu editores, Tomo XXI. 1994

................. 1905 "Tres Ensayos de una Teoría Sexual Infantil" en Obras Completas Amorrortu editores, Tomo VII, 1995.

 

 

1 Freud, Sigmund: Obras Completas (1905) Tres Ensayos de una Teoría Sexual Infantil. Tomo VII Amorrortu editores, 1995.