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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Funções parentais? Reflexões sobre a infância, a estrutura e a história

 

 

Michele Kamers

Psicóloga e mestranda em psicologia e educação na Feusp

 

 

O recurso à história faz-se fundamental para se pensar a importância dada discursivamente aos cuidados oferecidos à criança, assim como do lugar dado aos pais na educação dos filhos. Desde Ariès (1981) sabemos que a modernidade inaugura um novo discurso sobre o infans.

Segundo Postman (1999) a noção de infância é uma das grandes invenções da Renascença. "Ao lado da ciência, do estado-nação e da liberdade de religião, a infância, como estrutura social e como condição psicológica, surgiu por volta do século dezesseis e chegou refinada e fortalecida aos nossos dias. Mas como todos os artefatos sociais, sua existência prolongada não é inevitável" (p.12). O argumento acerca da artificialidade produtora da infância apresentada pelo autor nos parece sumamente interessante, já que nos permite assinalar o fundamento discursivo produtor da infância, tal como se apresentou na modernidade. Desse modo, em se tratando de uma produção discursiva, portanto, artificial e não natural, implica na tensão relativa às noções de história e estrutura no interior da estrutura1 familiar.

A Modernidade se define através de uma nova clivagem entre público e privado. O privado torna-se o lugar da conjugalidade, enquanto ao público estaria reservado a parentalidade. Assim, a parentalidade assa a depender desse terceiro social, representado pelos peritos chamados a intervir e dizer sobre como se deve "educar" uma criança. Então, quanto mais a conjugalidade é privada e íntima, mais a parentalidade se torna pública (Julien, 2000). Ou seja, se a conjugalidade pode ser exercida de qualquer forma, a parentalidade passa a ser um dever público, cabendo ao Estado o bem-estar, a segurança e a proteção da criança.

A crescente privatização do espaço público produziu um novo ideal doméstico, primeiramente utilizado pelas mulheres como uma tentativa de afirmação de sua própria autoridade através da influência materna. Nesse processo, elas passaram a ter como aliados os especialistas - tributários de um "suposto" saber sobre a vida doméstica. Entretanto, foi justamente essa aliança que produziu uma desautorização da mulher e uma crescente dependência em relação aos médicos e terapeutas. "A tendência para a privatização da família foi acompanhada de uma invasão completa da mesma, permitindo o triunfo de um ethos terapêutico que funciona como um sustentáculo da nação-estado liberal" (Lasch, 1999, p.21).

A modificação da sexualidade e do olhar dirigido à mulher e à criança precedeu uma grande transformação das relações de aliança, na qual a mulher, ao invés de ser reduzida ao papel de esposa ou de mãe, vai se individualizando na medida em que ia se dissociando prazer e procriação a partir da contracepção.

Esse novo ideal doméstico trouxe o pai de família para dentro de casa. O que de fato colocou em questão antigas crenças sobre masculinidade e feminilidade circunscritas em torno da idéia de que ao público estaria reservado a masculinidade - associada a uma visibilidade do "homem público" - enquanto à mulher estaria reservado o espaço doméstico (Kehl, 2004).

Essas transformações na ordem pública e privada deram origem a um "neopaternalismo", na qual os sujeitos passaram a depender da ajuda de profissionais especializados para viverem o seu cotidiano (Lasch, 1999). Sobre esse aspecto, a medicina higiênica teve um papel preponderante, na medida em que criou mecanismos de tutela familiar que colocaram a figura do especialista como encarregado de reeducar terapeuticamente a família, denunciando cotidianamente os supostos excessos e deficiências dos pais (Costa, 1999).

Finalmente, o amor entre pais e filhos, sonhado pela higiene, concretizou-se. Na família conjugal moderna os pais dedicam-se às crianças com um desvelo inconcebível nos tempos coloniais. No entanto, e este é um aspecto fundamental, de maneira permanentemente insatisfatória. Perante os novos técnicos em amor familiar, os pais, via de regra, continuam sendo vistos como ignorantes, quando não "doentes" (Idem, 1999, p.15).

Por outro lado, acentuada as reivindicações feministas, primordialmente no que se refere à libertação das mulheres por meio da igualdade de direitos de competitividade com os homens, assistiu-se a uma introdução da mulher no campo do trabalho produzida a partir da Revolução Industrial. Essa transformação foi acompanhada pela necessidade da criação de creches, que aos olhos das mulheres, seria a única forma de competir igualmente com os homens e progredir realmente em suas carreiras.

A partir do exposto, queremos destacar que é somente a partir desse novo cenário que se abre a possibilidade para se pensar em novas exigências imaginárias relativas às funções parentais. Exigências imaginárias, já que recorrem a todo tipo de aforismos psicológicos e higiênicos, conferindo-lhes estatuto de verdade em nome de uma suposta cientificidade.

Entretanto, desde a história apreendemos que a relação entre pais e filhos sofreu profundas transformações, sobretudo no que se refere ao lugar conferido discursivamente para a criança e para a família na sociedade. Não obstante, apesar das diversas transformações que sofreu, a família é um fenômeno universal presente em praticamente todos os tipos de sociedade. Segundo Lévi-Strauss (1980) é sobre a estrutura da família que repousa tanto a ordem social, quanto a constituição psíquica dos envolvidos, já que pressupõe um "não anonimato" na relação entre as funções parentais e a criança.

A família é uma estrutura caracterizada por um sistema de parentesco que delimita lugares simbólicos e que pressupõe um discurso organizador destes lugares. Implica em lugares estruturalmente determinados, entretanto, que necessitam de pessoas "concretas" para ocupá-los (Tanis, 2001). Todavia, nos parece fundamental ressaltar, que na estrutura do parentesco estas pessoas não precisam corresponder a pai, mãe e filhos. "O máximo que podemos pensar é que, se existir em algum lugar um pai que faça esta função, e uma mãe idem, a família estrutura edipicamente o sujeito; é nessa estrutura chamada família que a criança vai se indagar sobre o desejo que a constituiu, sobre o desejo do Outro;" (Kehl, 2001, p.30). O que difere radicalmente de uma fenomenologia relativa aos personagens.

À vista disso, "A cultura por certo precisa da natureza, mas para superá-la. Com efeito, se a sociedade tem por condição biológica a família, é para negá-la e perpetuar-se assim de geração em geração. Que a família não cesse de morrer, para que a sociedade se perpetue" (Julien, 2000, p.31). É somente a partir da lei do interdito do incesto que uma sociedade pode se instituir,na medida em que designa aqueles com quem a aliança conjugal é possível ou não. Trata-se de uma interdição que distribui os membros da estrutura familiar em diferentes categorias, de forma que a categoria dos pais defina direta ou indiretamente a categoria de filhos (Lévi-Strauss, 1980). Por isso, "(...) a conjugalidade, ao fundar a parentalidade, permite à geração seguinte abandonar pai e mãe e fundar publicamente uma nova família" (Julien, 2000, p. 57).

Então, se por um lado a estrutura familiar não pode ser confundida com o protótipo da família conjugal e nuclear, já que esta implica numa variabilidade histórica, por outro, partimos do pressuposto de que há condições estruturais imprescindíveis para a inscrição da criança na ordem simbólica. Sobre esse aspecto, constatamos que, se por um lado há um inflacionamento imaginário em torno das "figuras" parentais, por outro, há uma espécie de relativização do lugar que os pais ocupam junto aos filhos.

Trata-se de uma relativização que, se por um lado "esvazia" o sentido imaginário contido no discurso sobre como os pais devem se posicionar junto aos filhos, por outro os isenta completamente da responsabilidade ética do seu lugar junto à criança. Pois, em se tratando de "funções", portanto, lugares vazios inscritos no discurso, qualquer um poderia vir a ocupar. É justamente esse pressuposto que gostaríamos de questionar. Isto é, que se trata de lugares vazios inscritos no discurso, mas, que não podem ser ocupados por qualquer um, já que isso implicaria na negação das próprias condições estruturais que instituem o outro como Outro para a criança.

Atualmente, nos parece sintomático o modo como se tem produzido uma série de relativizações em torno do lugar da família e da função dos agentes parentais na constituição da criança. A primeira diz respeito a uma série de considerações realizadas em trabalhos recentes acerca da função materna, na qual os autores, supostamente inspirados na noção lacaniana de Outro Primordial - Outro encarnado por um outro que realiza a função materna – organizam suas idéias a ponto de afirmar que a função materna será realizada independente de quem encarne esse outro para a criança.

O que de fato produz uma total isenção da posição subjetiva desse outro em posição tutelar, assim como confirma a exclusão do sujeito de uma posição discursiva, portanto, desejante. Dito de outro modo, um discurso que transforma os avatares da constituição subjetiva da criança passível de ser reduzido a uma questão de técnica!

Não obstante, vemos essa relativização como uma tentativa de se separar disso que durante muito tempo foi tomado como "instinto materno" ou amor materno inato que dependeria do nascimento de uma criança para "desabrochar". Parece-nos que tanto o instinto materno quanto uma função materna "anônima", insistem num mesmo ponto: manter a ilusão cientificista de controle e isenção da implicação do adulto frente à criança. O que não deixa de produzir seus efeitos.

Sobre isto, Elias (1994) nos adverte que "A historicidade de cada indivíduo, o fenômeno do crescimento até a idade adulta, é a chave para a compreensão do que é a "sociedade". A sociabilidade inerente aos seres humanos só se evidencia quando se tem presente o que significam as relações com outras pessoas para a criança pequena" (p.30). O autor afirma que para se constituir subjetivamente, a criança não pode prescindir da relação com seres mais velhos e mais poderosos, assim como Arendt (2001) nos diz que do ponto de vista da criança, o que quer que o mundo adulto possa propor de novo para a ela, o novo é sempre o ingresso num mundo velho.

À vista disso, em se tratando de um instinto materno2 ou de um amor materno, é inconcebível biologicamente e moralmente o "não amor" da mãe para com a criança. E por outro lado, em se tratando de uma "função", a mãe estará isenta de amar sua cria. O que abre as possibilidades para se pensar numa lógica onde "qualquer outro" - já que se trata de uma função – a realize. O que permite pensar num certo anonimato desse outro, com a condição de que a função seja realizada! Aliás, qualquer outro não, já que "ainda" há a preferência pela ocupação feminina desse lugar!

É curioso notar que apesar de atualmente assistimos a um inflacionamento imaginário circunscrito em torno das funções parentais, como freqüentemente podemos observar a partir da vasta literatura que circula socialmente, "Inteligência Emocional", "Múltiplas Inteligências", "Guia para pais", etc., cada vez mais vemos proliferar um exército de pais desesperados que não sabem seus lugares junto aos filhos. Conforme Lajonquière (1999), podemos daí retirar uma lei: Quanto mais inflacionado está o imaginário em torno das supostas capacidades parentais, menores serão os efeitos de transmissão.

Apesar da insistência dos especialistas da ciência genética nas supostas determinações biológicas relativas ao laço parental, não nos surpreende a proliferação do uso do termo "função materna" e "função paterna" por especialistas de diversas áreas. Pois, se de fato os pais não estão ou não podem estar presentes, parece que o termo "função" justifica e tranqüiliza tanto pais quanto especialistas para que "outros" possam exercê-las. Lógica que aponta para uma espécie de desautorização do lugar dos pais junto aos filhos, sustentada pela ilusão de que aperfeiçoando as teorias e as técnicas seria possível intervir de modo adequado junto à criança.

Afinal os adultos também querem se recuperar narcisicamente à custa de seus filhos; na cultura do individualismo e do narcisismo, os filhos são nossa esperança de imortalidade e de perfeição. Ninguém quer errar, ninguém quer se arriscar; portanto, poucos pais sustentam o ato necessário para fazer de seu filho um ser de cultura, um sujeito barrado em seu gozo (Kehl, 2001, p.37).

Não obstante, desde a psicanálise sabemos que se ninguém está disposto a pagar o preço de se arriscar junto à criança, não há subjetivação que se faça possível. E poderíamos nos perguntar se este excesso de imaginário em relação ao termo função, não seria justamente a tentativa de dar conta disso que atualmente assistimos, e que poderíamos pensar como uma fragilidade da posição do agente tutelar junto à criança?

Um exemplo ilustrativo dessa "vulgarização" dos conceitos psicanalíticos no discurso atual pode ser observado a partir do tão enfatizado "declínio da função paterna". Esse termo tão disseminado tem sido utilizado por profissionais de diversas áreas - pedagogos, psicopedagogos, educadores, psicólogos, etc. como sinônimo de fraqueza do pai real! Aqui o termo função paterna é totalmente destituído de seu valor teórico e epistemológico no interior da psicanálise.

Nesse sentido, nos parece preocupante isto que se apresenta como uma espécie de delírio acerca da possibilidade de exclusão das "figuras" parentais na constituição psíquica de uma criança. Pois, tratando-se de funções parentais, portanto, simbólicas e inscritas na cultura, implica necessariamente na reflexão acerca das condições estruturais que permitem o exercício da função por um outro de "carne e osso". O que não se confunde com uma fenomenologia relativa aos personagens.

Esta questão nos parece fundamental para pensarmos o estatuto das funções parentais, já que "A tarefa especial que a família poderia executar, a manutenção daquele que é desamparado, acabou por ser considerada como função "natural" da família" (Sennett, 1988, p.125). Entretanto, a função enquanto lugar vazio inscrito no discurso, só pode ser pensada como produção artificial, portanto, desde seu estatuto simbólico. Deste modo, aponta para a diferença radical entre as condições estruturais que permitem ao outro o exercício da função parental e a ilusão cientificista de isenção, prescrição e controle da posição do adulto junto à criança.

 

Referências bibliográficas:

ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. RJ: Zahar, 1981.

ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo : Perspectiva, 1979.

COSTA, J. F. Ordem medica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

JULIEN, P. Abandonarás Teu Pai e Tua Mãe. Rio de Janeiro: Companhia de Freud: 2000.

KEHL, M. R. Lugares do feminino e do masculino na família. In: A Criança na Contemporaneidade e a Psicanálise. Vol. I Família e Sociedade: Diálogos Interdisciplinares. Comparato e Monteiro (orgs.) São Paulo: Casa do psicólogo, 2001.

_______.A Impostura do Macho. Palestra proferida na Jornada de abertura da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. POA, 2004.

LAJONQUIERE, L. de. Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

LASCH, C. A Mulher e a Vida Cotidiana: Amor, Casamento e Feminismo. RJ: Civilização Brasileira, 1999.

LÉVI-STRAUSS, C. A Família. In: A Família: origem & evolução. Coleção Rosa-dos-ventos. Porto Alegre: Editorial Villa Martha, 1980.

POSTMAN, N. O Desaparecimento da Infância. RJ: Graphia, 1999.

SENNETT, R. (1943-). O Declínio do Homem Público: As Tiranias da Intimidade. SP: Companhia das Letras, 1988.

TANIS, B. A família atual a constituição subjetiva da criança e a psicanálise. In: A Criança na Contemporaneidade e a Psicanálise. Vol. I Família e Sociedade: Diálogos Interdisciplinares. Comparato e Monteiro (orgs.) São Paulo: Casa do psicólogo, 2001.

 

 

1 Utilizamos o termo estrutura no sentido cunhado por Lévi-Strauss.
2 Apesar de muitos autores terem refutado o tema do instinto materno,pensamos que atualmente, essa idéia foi "retomada" e "justificada" pelas neurociências, assim como pela genética, cujas teorias tentam explicar as relações parentais a partir da carga genética dos pais. Do mesmo modo que as teorias evolucionistas explicam o instinto materno como necessário à manutenção da espécie.