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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A psicanálise e as instituições: um enlace ético-político

 

 

Prof. Dra. Miriam Debieux Rosa

Professora-Doutora no Instituto de Psicologia da USP; Professora Titular da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. Coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade no IP-USP; Psicanalista

 

 

O tema desta mesa redonda - Psicanálise, Saúde Mental e Instituição - é provocativo, pois convida enlaçar três termos que usualmente se apresentam como campos distintos e inconciliáveis, principalmente no que diz respeito à relação da psicanálise com a instituição. Pode-se situar a questão destacando a psicanálise como o excluído necessário para pensar deste ponto de vista a instituição e a saúde mental. É um modo problemático pois recalca a problemática das instituições psicanalíticas.Volnovich (2002) apresenta duas perguntas como desafio: A psicanálise pode viver fora das instituições? A psicanálise pode viver (se por "viver" se entender produzir conhecimentos) dentro das instituições? Iniciamos, portanto, esta reflexão demarcando que este tema inscreve-se numa esfera incômoda na medida em que vai se entrelaçar aos fios da teia conceitual da psicanálise e incita a enunciar sobre o que constitui o seu campo e a sua prática. Nesta visada, entram em jogo questões de ordem ética e política e... institucionais.

Uma vez que não se trata de esgotar, ou mesmo desenvolver, todos esses aspectos do tema, comecemos por nos interrogar sobre o que convoca de imediato a psicanálise para a tarefa de debater problemas relativos à instituição. Dentre os vários níveis de incitação a esta reflexão – muito diferentes, mas entrelaçados – destaca-se a constatação de que os psicanalistas estão migrando para as instituições, buscando levar com eles sua posição e suas concepções. No entanto, algumas vezes apenas transportam as práticas sem levar em conta o contexto institucional. Esse contexto é diferenciado quando se refere às propostas psicanalíticas de instituições de tratamento, às instituições sociais de intervenção em saúde mental, em educação, jurídica, entre outras. Em cada uma das situações há necessidade de fundamentar e debater os processos, concepções e políticas que regem tais instituições, assim como o modo peculiar de intervenção psicanalítica. Outra faceta dessa convocação diz respeito aos impasses trazidos para a prática psicanalítica pelo sujeito da contemporaneidade (Rosa, 2002). O sujeito contemporâneo incita uma crise produtiva para a psicanálise e nos convoca a refletir sobre a instituição, tanto como cenário da produção discursiva e de sintomas, como de seu tratamento. Ambos os eixos remetem à interface política da psicanálise, seja quando trata de modalidades de laço social, seja quando se trata da dimensão política do gozo e do sintoma.

O pano de fundo dessa convocação esbarra na impropriedade da mera transposição de um modelo de tratamento para outros contextos ou para as problemáticas do sujeito contemporâneo. Ou seja, tais situações explicitam os limites do tratamento psicanalítico e nos incitam a propor novas formas intervenção. E aqui quero diferenciar os limites do modelo de tratamento, tal como conduzido nos consultórios, dos limites da Psicanálise como teoria, método, prática e ética para a condução destas questões. O que está em debate são as estratégias de intervenção frente às atuais manifestações sintomáticas, assim como as modalidades de sua extensão na prática psicanalítica extramuros.

A interrelação desses problemas pode ser ilustrada a partir dos limites da prática psicanalítica frente ao sujeito contemporâneo e das modalidades de expressão do sofrimento que nem sempre se apresenta sob a forma de sintomas ou são acompanhadas de uma demanda de tratamento – como acontece com as patologia dos ato, entre outras manifestações. É a toxicomania, por exemplo, que interroga a psicanálise e as possibilidades e limites de sua prática em contexto caracterizado pelo esgarçamento do laço social fundado na dimensão simbólica.(Rosa, 1999 e Rosa, 2004a).

A complexidade destas manifestações permitem uma constatação: é o campo em que a psicanálise fracassa constantemente. Pode-se usar o artifício de responsabilizar certa estrutura do sujeito por esse fracasso: a estrutura perversa. No entanto, a instauração do dispositivo analítico nos indica, em vários casos, que não há uma estrutura prévia ou única que balize esses sintomas, visto que podem se instalar em qualquer estrutura. A despeito das elucidações que permitem um avanço quanto a esse ponto de impasse, constata-se que, mesmo quando o trabalho analítico se efetiva, os seus efeitos não se mantêm. As intervenções consideradas eficazes no caso, por exemplo, das toxicomanias, privilegiam as instituições que promovem o anonimato, como é o caso dos alcoólatras anônimos e suas extensões - narcóticos anônimos, neuróticos anônimos, etc. Aqui está o ponto de fracasso que sugere a hipótese de que a sustentação do sintoma esteja no discurso social e institucional.

Na esteira desses sujeitos, inserem-se várias instituições e seus discursos, que perpassam o sujeito e apontam outro risco e outro limite. A problemática do sujeito passa a ser nomeada como entidade: evasão escolar, delinqüência, toxicomania. É transformada em fenômeno universalizado e/ou definido por circunstâncias históricas e ideológicas que excluem sua participação – em curiosa inversão, faz-se um sintoma sem sujeito.

Destacado de seu sintoma, o sujeito é ainda segmentado entre várias instituições, com perspectivas muito diferentes e independentes entre si, perpassadas por vários discursos como o da ciência, o da medicina, o do direito e, mais sutilmente, o da religião. As instituições tomam forma de escola, creche, centros de saúde, hospitais, atendimento em saúde mental, medidas judiciais. O psicanalista é chamado, então, como um especialista da instituição dedicado aos aspectos emocionais, intelectuais ou comportamentais do problema, em geral instado a se adaptar ao sistema que comanda a forma de encaminhamento das questões. O quadro aqui apresentado, todavia, exige uma posiçãosobre em que perspectiva tais manifestações interessam à psicanálise, para que esta não se torne uma especialidade a caminhar na direção de uma ética da moderação e do bem, buscando refrear o gozo em nome da convivência, do prazer ou da realidade. Distinguimos as especialidades ( parte de um todo) das especificidades (da ordem do singular).

As instituições têm buscado avançar em suas propostas, mas continuam caracterizadas por trazerem um enunciado de seus princípios discordante da história da formação das instituições e das práticas efetivamente adotadas. Doris Rinaldi (2002) demonstra (em trabalho sobre o Instituto de Psiquiatria do Rio de Janeiro) como, apesar dos novos dispositivos propostos pela reforma – tais como Capes, Hospital-dia, Centros de Recepção – que rompem com o paradigma médico dominante para a "doença mental", essa hegemonia não se abalou (veja-se que a lei do Ato Médico é apoiada maciçamente pela Psiquiatria), gerando uma organização marcada pela hierarquia e divisão de territórios: enquanto o discurso médico atravessa toda a instituição e, especialmente, a enfermaria, o discurso da Reforma limita-se ao Centro de Atenção Diário, e o discurso da psicanálise centra-se no ambulatório. Mais uma vez, observa-se o poder de regeneração da cultura e prática manicomiais, mesmo em ambientes que têm o objetivo explícito de superá-las, mostrando como as inovações criativas facilmente se degeneram em técnicas a serem aplicadas de modo padronizado: à medida que as práticas se burocratizam, os papéis se cristalizam e as teorias se tornam abstrações e modos de perpetuação ideológicos. Essa experiência também ocorre nos locais onde é o discurso jurídico que impera.

Como não recuar diante dessas questões? Penso que a dimensão política do gozo não pode ser deixada de lado, na medida em que é um fenômeno que captura o sujeito em um determinado laço social. Este é um ponto de partida para pensar a questão: tecer uma articulação entre o sujeito e o discurso social estabelecendo um paralelo com a articulação tecida por entre Sade e Kant (Lacan, 1963), e indicar o modo como o sujeito comparece articulado a Outra cena, desta feita, além da cena familiar: a cena social. Essa perspectiva leva-nos a incluir, na escuta e prática psicanalítica, as cenas institucionais – família, escola, empresas, mídia – que contêm em sua organização mecanismos de proteção, mas, principalmente, de submissão do sujeito aos seus domínios, com discursos que o alienam em seu gozo. Afirmar a articulação à Outra cena corre na contramão da proletarização crescente, no sentido lacaniano, referente a sujeitos individualizados, fora do laço social. O discurso capitalista que impõe a recusa à castração e implica na presentificação de gozo superegóico, deixa exluída a dimensão da Outra cena. O imperativo de gozo da lei do mercado se presenta como correlativo da inexistencia do Outro. Inclui-se na prática psicanalítica tomar posições quanto a vários aspectos: as políticas de tratamento; os efeitos das clínicas especializadas; a produção e os efeitos da institucionalização; a prevenção e, principalmente, a construção de estratégias alternativas.

Frente a este quadro, o desafio é construir uma prática clínica que considere os laços sociais, expressos como laços discursivos na instituição: uma prática psicanalítica movida não pela concepção de indivíduo, mas pela de sujeito, na dimensão dos discursos. A prática psicanalítica desloca-se, então, entre dois âmbitos: elucidar o discurso e as práticas sociais – a fim de problematizar os modos como esses discursos afetam a subjetividade – e escutar o sujeito, elucidando os modos pelos quais é afetado. A psicanálise dispõe de elementos para essa prática (Rosa, 2004b); podemos, a título de ilustração, destacar alguns destes elementos no trabalho de diversos psicanalistas, a começar por Freud e Lacan.

Analisando duas grandes instituições: o exército e a igreja, Freud (1921) nos indica os modos de formação de grupos, expõe as modificações psíquicas que as instituições impõem ao indivíduo e considera que a entrada na vida social determina modificações ao sujeito. Na análise freudiana estão em jogo a construções de ideais, que articulam narcisismo e sociedade, e referências que articulam o sujeito no laço social, inserindo-o em todos os âmbitos da cena social. No bojo dos enunciados sociais, novas operações se processam, operações de construção de lugares que indicam a qualidade de pertencimento e reconhecimento do sujeito como membro da sociedade, e que dependem das formas, condições e estratégias oferecidas por esse grupo - trata-se de análise política de atribuição de lugares sociais. Em Mal Estar na Civilização (1929), Freud retoma questões narcísicas e institucionais, visando a relacionar a constituição psíquica e formas de enlaçamentos sociais.

Roudinesco (1994, p. 478) destaca três dispositivos apontados por Lacan para sua crítica da sociedade, distribuídos nos registros do simbólico, imaginário e real: o mito edipiano, como o fundador das sociedades modernas; a função da identificação, presente na Psicologia das Massas e problema para a formação das sociedades de psicanálise; e, por fim, neste século, o advento do sujeito da ciência, fenômeno fundamental, segundo Lacan, cuja irrupção foi mostrada no nazismo. Em Kant com Sade, Lacan (1963), como já foi dito, indica outro dispositivo, uma vez que demonstra que a verdade de Kant só se faz ver em outra cena, em Sade.

Birman (1994) afirma que algumas temáticas de outras disciplinas como o poder, a crença, o valor, a ética, a violência, a cientificidade, assumem certa singularidade quando se lhes imprime um recorte psicanalítico "que retoma estes temas a partir do lugar da função sujeito em psicanálise". O autor exemplifica vários pontos, dos quais destacamos a leitura pulsional do poder, "recorte que remete para a oposição guerra e política, entre força e retórica, de maneira a buscar com estas equivalências um diálogo possível da psicanálise com a filosofia política" (p.10). Trazemos ainda para ilustrar o ponto de vista, Plon (1999), para quem a psicanálise extramuros ou aplicada (como prefere) pode isolar os elementos da subjetividade empregados nas práticas sociais e esclarecer o que dessas práticas enriquece o conhecimento das engrenagens da subjetividade (caso, por exemplo, dos alemães no nazismo). No campo dos processos políticos, sugere a investigação dos modos de relação transferencial e organização pulsional utilizados para governar e os modos de evitação da castração a serviço da boa gestão empresarial.

Retomando os fios de que nos valemos para entretecer os dois âmbitos em que se produz a prática psicanalítica, podemos destacar que a articulação entre o sujeito, as instituições e o campo sociopolítico ocorreu tanto em Freud como em Lacan, pondo a nosso alcance dispositivos e metodologia para uma prática psicanalítica que vá além do tratamento estrito senso. Os motivos de Lacan para não se dedicar à questão das instituições, tema tratado por seus contemporâneos, é algo a ser pensado. Roudinesco mostra que Lacan propõe a psicanálise em extensão na dependência da psicanálise em intensão para diferenciá-la de uma sociologia quantitativa e contribuir com algo mais próximo à crítica social: ele "repensa a ordem institucional em função de uma primazia atribuída à ordem teórica. E esta ordem teórica ele a deduz da experiência do tratamento enquanto passagem pela castração e pelo mito edipiano" (1994, p.476). Essas formulações indicam que a direção para lidar com os eventos sociopolíticos envolve o modo de intricação teoria-prática próprio da psicanálise. Teórica ou clinicamente, a psicanálise está necessariamente atravessada por pelo menos duas instituições: a família e as instituições de transmissão da psicanálise.

Como nos faz notar Lorau (Altoé, 2004), é na articulação extensão-intensão que se localiza o ponto cego da clínica psicanalítica. Althusser (1991/1964) nota essa ausência afirmando, no artigo "Freud e Lacan", considerar que cabe à psicanálise elucidar alguns problemas na articulação sujeito e sociedade. Pergunta-se também sobre as relações da psicanálise com sua condição de aparecimento histórico e sobre suas condições sociais de aplicação: "como entender, ao mesmo tempo, a aceitação da teoria freudiana, da tradição didática e do corporativismo das sociedades de psicanálise? Em que medida o silêncio – recalcamento teórico – com relação a esses problemas não afeta a teoria e prática da psicanálise?" (p.71).

Nesta direção Delgado(2002) é muito esclarecedor quando afirma que há um enodamento entre o trabalho em intensão e o trabalho em extensão, entre a formação dos analistas e o efeito analítico, e o que ele vai chamar de projeto terapéutico. "Ese nudo es importante sostenerlo. Desanudarlo, implica la desaparición del psicoanálisis mismo ya que se eliminaría la dimensión de extimidad. Un mundo sin psicoanálisis, sería un mundo sin el valor subversivo que éste porta. Un psicoanálisis sin mundo portando el goce de la auto segregación, haría de sí mismo un todo, lo que Freud llamó cosmovisión."(p.4).

A dimensão discursiva, tal como proposta por J. Lacan (1969), pode nos propiciar elementos de superação entre a clínica e a teoria da psicanálise, entre clínica intra e extramuros, e ser um dos dispositivos principais para a inclusão das instituições na prática psicanalítica. Segundo Alberti (2002), essa dimensão foi introduzida por Lacan como uma tentativa de responder às perguntas de Foucault por ocasião da apresentação de uma conferência sobre a questão da autoria: "Foucault sugeriu que talvez fosse possível construir uma tipologia dos discursos que se justificaria, segundo ele, dado que existem propriedade ou relações discursivas as quais é preciso se endereçar para distinguir as grandes categorias de discursos" (p.45). Ele ainda se pergunta sobre as condições e as formas em que algo como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos.

Quando destaca a dimensão discursiva dos laços sociais, Lacan procura elucidar justamente os modos como as relações de linguagem entre as pessoas definem as maneiras diferentes de distribuição de gozo. O discurso, um discurso sem palavras, mas não sem linguagem, dá conta dos laços sociais. Estes se constituem a partir da circulação de certos elementos que, ao transitarem por diferentes lugares, produzem laços sociais específicos e promovem diferentes efeitos ou sintomas. A dimensão política do gozo toma relevância na medida em que é um fenômeno que abrange o sujeito em um determinado laço social.

Jorge (2002) aponta que, nos discursos introduzidos por Lacan, estão as estruturas mínimas de todo e qualquer liame social, sempre concebido como fundado na linguagem. E acrescenta que "Todo discurso é, por um lado uma tentativa de estabelecer uma ligação entre o campo do sujeito e o campo do Outro e, por outro lado, a confirmação de que um impossível radical vigora entre o sujeito e o Outro" (p.27). Cada discurso inclui nele mesmo um único sujeito, o que elimina a intersubjetividade – são dois campos, o do sujeito e o do Outro, mas em cada um está implicada necessariamente a referência ao outro campo, condição para formular a referência à Outra cena que abre o sujeito para o enigma de seu ser.

Além da dimensão dos discursos, outras explicitações conceituais e metodológicas permitem articular teoria e clínica nas instituições. A concepção de dispositivos clínico-institucioanais apresenta-nos uma outra faceta metodológica decorrente da teoria dos discursos, presente e fartamente utilizada, mas não suficientemente explicitada. Quando solicitado a falar do sentido e da função metodológica dessa expressão, Foucault (1979) responde: "Através desse termo, tento demarcar, em primeiro lugar um conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito são os elementos do dispositivo, O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos" (p. 244).

Outro conceito que posiciona a prática psicanalítica na instituição é o de implicação (Altoé, 2004). Ao trabalhar a questão da transferência, apoiado no Banquete de Platão, Lacan (1960/61) afirma a simetria entre analista e analisando quanto à questão do desejo. Declara ser a contratransferência um efeito legítimo da transferência; nem um tema a parte nem uma falha, mas a implicação necessária do analista na situação de transferência e é precisamente isso que faz com que devamos desconfiar da impropriedade desse termo. A implicação vem caracterizar a posição do psicanalista nos discursos, incluindo nela a análise da instituição. Com o analista implicado na dimensão discursiva, consideramos a possibilidade de se exercer uma prática psicanalítica junto ao sujeito contemporâneo e às instituições que o atravessam.

A prática psicanalítica, balizada por princípios teóricos, metodológicos, éticos e políticos, pode contribuir de pelo menos três formas na instituição: com a escuta psicanalítica dos pacientes, levando em conta a especificidade da situação; como um analisador externo à instituição no modelo do mais um (oferecido pelo cartel1) e como um dos membros da equipe formuladora e instauradora do processo institucional.

A condição desse trabalho, do lado do psicanalista, está na sustentação de uma posição que supõe sustentar o desejo do analista e sua própria resistência em romper com o pacto com o discurso dominante, com o discurso de classe e com o da ciência; Tal rompimento com o discurso do Mestre diz respeito tanto a submissão a este discurso, como ao risco de somente inverter a posição (Rosa, 2002). Este risco pode ser notado nas situações de utilização do discurso da psicanálise como aquele que deve ser o hegemônico, desprezando os outros discursos. Tal modo de inserção tem dois efeitos antianalíticos: reafirmar que há discurso sem furo – e é uma questão de força que está em jogo – e ser submetido a um jogo em que as cartas estão marcadas. Nesta vertente o psicanalista torna-se portador de uma identidade que rivaliza com outras (médico, juiz). Recordamos com Jorge (2002), "que o próprio Lacan chama atenção para o fato de que seus quatro discursos recobrem as (três) atividades mencionadas por Freud como sendo, na verdade, profissões impossíveis, ou seja, lembra que estes discursos se referem fundamentalmente a impossibilidades".(p.17).

Concordo com Volnovich (2002) quando ressalta: "Não somos psicanalistas, estamos – isso sim – instituíndo a psicanálise. Instituímos a psicanálise quando construímos e reconstruímos o saber. Instituímos a psicanálise quando retomamos o poder que tínhamos delegado a outros. Quando nos perguntamos onde está o poder; quem toma as decisões que nos afetam a todos; em função de que interesses e de resposta a quais imperativos. Quando nos interrogamos sobre qual é a nossa relação com o poder, de que poder fomos despojados, que poder exercemos, como o exercemos, contra quem, então estamos instituíndo a psicanálise. Também estamos instituíndo a psicanálise quando refletimos acerca da nossa posição face dessa lógica anônima e difusa do Dinheiro Geral Equivalente. Quando nos questionamos de que modo jogamos com o interesse, a renda, o lucro e a ganância e quando esclarecemos a nossa posição face às diferenças das classes sociais e à ordem patriarcal, estamos instituíndo a psicanálise". A psicanálise se institui (ou não) em sua praxis, quando indica modos de romper a trama do instituído.

Considero prática psicanalítica a elucidação dos modos de captura do sujeito nas malhas institucionais, elucidação que por si mesma abala essa condição, dada a função do desconhecimento na formação e manutenção do sintoma e de seu gozo. Como afirma Zizek (1996): "ideológica é uma realidade social cuja existência implica o não conhecimento de sua essência por parte de seus participantes, ou seja, a sua efetividade implica que os indivíduos não sabem o que fazem".(p.306). Ou seja, a consistência do sintoma implica o não-conhecimento do que está em jogo da parte do sujeito, e que esse desvelamento pode ter efeito de dissolução, o que significa que, muitas vezes, a própria revelação das ilusões que sustentam os sintomas pode ter efeitos nos mesmos. Ou pode, ao menos, funcionar – como o discurso da histérica - como denúncia da inconsistência desse Grande Outro-organização social. O discurso histérico faz o mestre trabalhar e revela a sua verdade: sua castração. O discurso histérico faz o mestre trabalhar e revela a sua verdade: sua castração. Denunciar é diferente de enunciar, mas pode proporcionar esse efeito, não para erigir novo mestre, mas como produtor de um impasse que possibilite recriações. Recriações de espaços institucionais que permitam colher o desamparo do sujeito, promovam o seu engajamento, que tenham especificidades, que diferencio de especializações. Trata-se, enfim, de uma recriação nas instituições que, se por um lado mascaram esse impossível ao redor do qual se estrutura o campo social (Zizek, 1996, p.151), por outro, não faz delas espaços totalitários cujo fim último seja a preservação da instituição e de seus agentes.

Os lugares apontados para o psicanalista são diferenciados entre si, mas têm em comum uma condição política e metodológica de um trabalho psicanalítico: seja em que âmbito for, sustenta-se na possibilidade de tomar o discurso do mestre pelo avesso, ou seja, em uma vertente não totalitária ou fundamentalista, que torna homogêneos os modos de gozo. E uma posição: permitir uma transferência de trabalho que focalize os projetos, e que o pulsar dos sujeitos envolvidos não seja ameaça de destruição, mas a sinalização de uma nova direção. Nesse sentido, ocupar esses lugares será entendido como modo de sustentação do desejo e promoção de um atravessamento que rompa algo do simbólico e do imaginário e toque o real do sujeito e do Outro, promovendo separações que possibilitam construir uma história institucional com seus avanços e fracassos. É este o incerto (composto de inserção e não-certo, não total) lugar do psicanalista na instituição: estar atento ao ato analítico em seu caráter ético e político.

 

Referências bibliográficas:

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1 A lógica do cartel supõe três a cinco pessoas que se reúnem em torno de um tema, em função da identificação com uma questão para fazer um trabalho. Estes convidam mais uma pessoa para ocupar um lugar especial denominado como mais-um que será encarregado de velar pelos efeitos internos do dispositivo e de provocar sua elaboração.