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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Desenkantados: liberdade, responsabilidade, psicanálise

 

 

Orlando Calo

Universidad Nacional de Mar del Plata - Facultad de Psicología – Grupo de investigação "Psicología y moralidad"

 

 

Apresentamos algumas reflexões desenvolvidas como parte de um projeto de investigação da Facultad de Psicología de la Universidad Nacional de Mar del Plata, no qual abordamos o tema da constituição da moralidade a partir de perspectivas psicológicas.

Projetos como este não podem se furtar a considerar o debate entre aqueles que, por um lado, baseiam seu pensamento em princípcios fundamentais e, por outro lado, aqueles que opõem ao principismo dos primeiros o cuidado com as conseqüências.

A limitada extensão que deve ter essa comunicação impede o desenvolvimento cuidadoso que seria desejável para um tema tão vasto e importante como o escolhido e que entrelaça, como se pode notar, os campos filosófico, científico e político. Faremos apenas a contraposição entre as posições deontológicas e as particularidades que as investigações psicológicas e psicanalíticas descobrem no estudo da constituição da moralidade. Esta contraposição deve ser considerada como o eixo de nossa comunicação, sabendo-se que, como em toda confrontação, as posições podem extremar-se, obscurecendo assim o reconhecimento de eventuais convergencias entre elas.

Nossa escolha na abordagem do problema se inscreve a priori em uma linha que, por considerar o que é, em lugar do que deve ser, contraria o principismo, pelo menos em suas formas fundamentalistas. Entretanto, para evitar que caíamos na falácia naturalista, devemos sublinhar que não se deve esperar a legitimação de conteúdos morais da descrição dos processos de constituição dos mesmos.

A referencia a Kant é necesaria por ser o maior expoente deontologista e porque sua influência no campo da reflexão sobre a moral continua sendo merecidamente notória. Pode-se pensar a ética em total coincidencia com seu pensamento, pode-se aderir a algumas de suas formulações e não a toda sua doutrina, pode-se veeementemente opor-se a ele; o que não se pode é desconhecê-lo.

Alguns fragmentos de sua obra e outros da de Freud permitirão expor com clareza a distância que os separa ao discutirem o que é exigido do indivíduo.

Respondendo àqueles que consideram excesiva a exigência de atuar sem nenhum outro motivo além do dever que a razão indica, Kant admite que "talvez jamais um homem tenha podido exercer de maneira completamente desinteressada (sem contar com outros motivos) o dever reconhecido e honrado por ele; talvez jamais haja alguém que possa fazê-lo, mesmo com o maior esforço". (1984: 29 - 30). Mas acrescenta que, ainda assim, esse mesmo homem pode renunciar aos motivos que se contrapõem à idéia do dever e pode propor-se a atuar sem que estes motivos participem na decisão acerca do ato; o que conduz Kant a concluir que: "disto é capaz; e isto é também suficiente para o cumprimento do dever. Pelo contrário, criar uma regra para favorecer tais motivos com o pretexto de que a naturaza humana não permite tal pureza (o que, de qualquer forma, o homem não pode afirmar com certeza) é a morte de toda moralidade". (1984: 30)

Por sua vez, justamente invocando essa natureza humana tão desconsiderada por Kant no parágrafo citado, Freud critica tanto o cristianismo como o socialismo. Os mandatos morais, na forma de "super-eu cultural", impõem-se como preceitos sem questionar se ao humano será possível cumpri-los; é este o caso do "amarás ao teu próximo como a ti mesmo", que é "o rechaço mais intenso da agressividade humana e constitui um excelente exemplo da atitude antipsicológica adotada pelo super-eu cultural. Esse mandamento é irrealizável; tamanha inflação do amor não pode menos que deteriorar seu valor, e de modo algum conseguirá remediar o mal". (Freud, 1929: 3066)

Além disso, mesmo alinhando-se parcialmente ao pensamento socialista em um aspecto pontual, Freud não deixa de criticar o idealismo que acompanha este pensamento: "Eu também considero indubitável que uma modificação objetiva nas relações do homem com a propriedade seria, nesse sentido, mais eficaz que qualquer preceito ético; mas os socialistas impossibilitam tão justo reconhecimento, desvalorizando sua realização ao incorrer em um novo desconhecimento idealista da natureza humana". (Freud, 1929: 3066)

As investigações psicológicas pós-piagetianas da formação moral das crianças, que podem ser consideradas como as linhas de pensamento que têm gerado mais trabalhos teóricos e empíricos, apresentam fortes coincidências com o pensamento kantiano. As etapas de desenvolvimento moral propostas por Kohlberg, como exemplo mais representativo dessas investigações, culminam com o estágio 6, da ordem pós-convencional, no qual haveria sujeitos com a máxima capacidade de justiça, orientados por princípios de universalidade e neutralidade racionalmente fundamentados. A inspiração declarada nas teorias de Kant e de Rawls subjaz à categorização proposta por Kohlberg e nos orienta a um ideal de moralidade. Pode-se questinonar que tal estágio configura-se mais como uma expectativa de sucesso do que como a descrição de um conjunto de observações empíricas. São também legítimas as críticas feitas por Gilligan ao denunciar que o critério de moralidade escolhido sejam as observações, predefinindo como modelo de sujeitos morais os indivíduos masculinos e anglo-saxões. Isto não soa estranho se pensarmos a moralidade kantiana como uma visão masculina da ética (Guisán, 1988).

Os referidos estudos psicológicos restrigem suas investigações à argumentação moral, tendo por meta conhecer os processos de progresso cognitivo e de deliberação racional que levam à melhoria da capacidade de juízo moral, entendendo-a como o desenvolvimento da capacidade de fundamentar as opções morais com argumentos racionais, cada vez mais descentrados dos interesses particulares e mais próximos a princípios universais.

Habitualmente, vincula-se a Responsabilidade à Liberdade e pensa-se, kantianamente, que a vontade é livre apenas quando atua guiada por interesses racionais. Assim, a liberdade não se opõe à responsabilidade; pelo contrário, UNEM-se em uma síntese que o sujeito alcançaria na maturidade cognitiva, simbólica e política.

Para Kant a liberdade é liberdade dos impulsos sensíveis, da necessidade, do patológico, entendido como vinculado às paixões. Dessas determinações deriva que a vontade é livre.Vontade que temos que identificar ao agente racional, deliberativo, uma vez que cada decisão exige a análise da situação à luz de um imperativo.

Num progresso desta linha de pensamento, correntes político filosóficas pós-kantianas incluem a dimensão deliberativa dialogada com os outros como um crescimento na perspectiva democrática diante da posição do próprio Kant, para quem o sujeito é um tipo de indivíduo abstrato em diálogo consigo mesmo.

As linhas citadas reduzem a consideração da moralidade à dimesão racional e voluntária dos sujeitos, considerando, explícitamente ou de fato, que os componentes irracionais e/ou inconscientes constituem ou aberrações a serem corrigidas ou aspectos cujo estudo não parece significativo.

Diante disso, quatro são as contraposições que efetuaremos a partir da psicanálise:

1) A primeira questiona a unidade do sujeito que se pretende centrado em uma conciência racional e voluntária, contrapondo a ele um sujeito dividido e irredutível à dimensão voluntária e consciente.

Mannoni (1987) sustenta que Freud estabeleceu as bases da psicanálise em 1892, quando em Um caso de cura hipnótica nomeou com o neologismo Gegenwille (contravontade) a compulsão que levava uma jovem mãe a recusar o peito a seu filho cada vez que queria amamentá-lo. Esse neologismo foi logo substituído pela idéia de conflito intrapsíquico, mas estava nele o núcleo da psicanálise: o psiquismo humano apenas ilusoriamente pode ser considerado como unificado em uma instancia voluntária e consciente; o Eu não é mais que uma montagem de identificações que procura com pouco êxito manter um equilíbrio entre as exigências pulsionais, as demandas sociais e as reclamações superegóicas.

Lacan evidenciou que a descoberta freudiana implicou uma subversão do sujeito. Sua leitura crítica do cogito de Descartes permitiu mostrar que o ser e o pensar não estão no mesmo lugar, contrapondo a disjunção ou penso, ou sou como uma reversão absoluta da síntese cartesiana.

O imperativo freudiano Wo Es war, soll Ich werden não deve ser entendido como aspiração de que o Eu (moi), como instância da segunda tópica, desaloje o Isso; mas como afirmação de que aí, "onde Isso era, Eu (Je) posso vir a ser desaparecendo de mim mesmo" (Lacan, 1971: 313).

2) A segunda contraposição deriva do fato de que a dimensão pulsional não é redutível em sua totalidade à ordem simbólica, e, sendo assim, sempre restará um real fazendo obstáculo à possibilidade do livre arbítrio, a partir do qual a "natureza humana" vem a impossibilitar a aspiração kantiana.

A inclusão do humano na ordem cultural supõe a submissão das pulsões às regulações que resultam das leis de parentesco. Isto significou submeter a ordem natural à ordem simbólica, o que só pode ocorrer à medida em que o simbólico possa recobrir o real, o que ocorre sempre de maneira insuficiente. O mal-estar na cultura é efeito dessa impossibilidade.

Se isto não fosse assim, a ordem sibólica seria esse paraíso que nos prometeria um laço social harmônico. A desarmonia sempre existe quando se trata da pulsão e isto está sempre relacionado ao corpo. (Quiroga y Ferreyra, 2001)

A aspiração moralista tratou de responder ao problema da pulsão superdimensionando o valor que a sublimação tem no campo picanalítico. A este respeito, Silvestre destaca que "poucos termos se prestam tanto como o de sublimação a uma certa contaminação pelo ideal. O que poderíamos chamar ‘idealização do conceito’ consiste, por um lado, em escamotear o que esse conceito pretende captar do real clínico e, por outro, em servir-se dele para reagrupar o que se quis atribuir à psicanálise de ‘virtudes’ ideológicas". (1993: 129)

3) Em terceiro lugar, a ética do julgamento própria do pensamento de raíz kantiana, para a qual a responsabilidade é imputavel à decisão tomada como resultado da deliberação, a perspectiva psicanalítica vai opor duas questões fundamentais:

A primeira delas, que encontra correlato em filósofos como Deleuze e, mais ainda, Badiou, é a que resulta da consideração de que o ato ético não é exclusivamente o resultado de uma deliberação consciente por parte de uma vontade livre, mas a resposta a um acontecimento imponderado e imponderável que atravessa o sujeito e o arrasta a uma nova posição subjetiva. Esta maneira de pensar a ética está vinculada à noção psicanalítica de ato e é da ordem do encontro mais do que da busca. Assim, a responsabilidade subjetiva em relação ao ato e ao acontecimento implica que o sujeito responde de uma posição que não advém de nenhum procedimento deliberativo, reflexivamente mediado.

A segunda questão é a que tem a ver com a responsabilidade sobre os atos que não são produtos da vontade consciente, por exemplo, as formações do incosciente. As perspectivas centradas na vontade como expressão intencional consciente tendem a não reconhecer a responsabilidade sobre atos involuntários. Entretanto, a psicanálise soube ver que freqüentemente os síntomas neuróticos expressam o conflito que resulta da busca inconsciente de punição por censuras morais que não são conscientes para o sujeito, o que acarreta uma culpabilização do sujeito por causas que são alheias à sua vontade consciente, como nos mostra Freíd (1925) em A responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos.

4) Por fim, relativizaremos o valor que algumas correntes pós-kantianas dão ao diálogo racional como ferramente que contribuiria para um melhor exercício da democracia como via de realização ética. Estas posições consideram a linguagem como ferramenta de comunicação e supõem a possibilidade do acordo racional como regulador das relações intersubjetivas. Apresentam-se, com o rosto da comunidade de comunicação, como uma nova arkhé.(Cragnolini, 1994: 64)

Para a psicanálise, a linguagem não é primariamente ferramenta de comunicação, mas o meio em que os sujeitos se desenvolvem. Meio que preexiste e predetermina: não é que a linguagem esteja a serviço do sujeito, mas que o sujeito é resultado do efeito de encadeamento de um significante a outro.

Assim, naquilo que o psicanalista escuta vê-se com clareza o deslocamento do sujeito do lugar de agente voluntário de seu discurso . Diz Nasio: "Partamos do fato inaugural da descoberta freudiana, fato renovável no cotidiano de cada cura analítica: o sujeito diz sem saber o que diz. Seja na forma de uma lacuna (esquecimento) ou, ao contrário, de uma palavra excessiva que repentinamente passa a ocupar o lugar de outra (lapso), a ruptura do relato do paciente é considerada pela psicanálise como singularidade específica, chamada um dito. O paciente fala, constrói frases, emite sons, mas quando diz, ou seja, quando equivoca-se falando, esse dito lhe escapa". (1988: 25)

Não se pode pensar as condições de constituição da moralidade excluindo-se o que o inconsciente produz no intercâmbio entre os homens. Como dissemos antes, o conhecimento dos processos de constituição subjetiva pode contribuir para o princípio de de prudência necessária, pelo qual acreditamos que as investigações psicanalíticas, ainda que não sejam consideradas como políticas, podem contribuir para que a política seja mais possível.

 

Referencias Bibliográficas

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