5Desenkantados: liberdade, responsabilidade, psicanálisePediatria e saúde mental da criança: reflexões sobre ensinar author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Psicanálise e educação especial precoce: sobre trabalhar "na" diferença e o advir "da" diferença – um percurso pessoal e institucional

 

 

Priscila Varella

Psicóloga em formação psicanalítica; especialista em clínica e educação

 

 

Começo historiando o lugar onde estou construindo meu percurso profissional. Trago uma questão que recorta todo meu relato. Não há resposta. É a questão do momento: o que há de pedagógico especializado no trabalho em educação especial precoce?

O programa de estimulação precoce, criado em 1991, teve uma professora, habilitada em deficiência mental, na função de pedagoga, como responsável. A população atendida era de crianças com até 6 anos, com atraso no desenvolvimento e Síndrome de Down. Acima dessa idade ingressavam nas escolas especiais.

Mudanças funcionais foram acontecendo. A mais significativa, a meu ver, pois inverteu em definitivo a concepção primeira do trabalho, pois eliminou a possibilidade de ação técnica específica, vinculou tal programa às escolas especiais para deficientes mentais determinando o professor, em sua função mesma, agente da ação direta.

As crianças foram nomeadas alunos e constituídas salas de aula com atendimento (nomeação da ação do professor) individual, freqüência e carga horária diferenciadas – 50 minutos de atendimento, uma ou duas vezes por semana. Para 'apoiar' esta prática, 'trabalhar' com a família, fazer avaliação de ingresso, foi constituída uma equipe multiprofissional completa. O construtivismo piagetiano e o sócio-interacionismo como referências teóricas vigentes.

Em 1998 o programa constituiu-se como unidade educacional independente. Apesar de nomeado como Centro Municipal de Apoio à Educação Especial – unidade educacional e não escolar, portanto – a característica se manteve a mesma. O trabalho estava em detectar o 'essencial' que deveria ser oferecido à criança, entre 0 e 6 anos de idade, que procurava a educação precoce especial – "estimulação". Comumente havia algo a ser oferecido, determinado como ação do professor a ser efetivada através do plano pedagógico de "estimulação" (instrumental), exceto raras excessões – saúde gravíssima. Essa detecção, e proposição, delineavam também a ação da equipe técnica. Tudo e todos ao redor do pedagógico - essencial e fundamentalmente1 .

Devido a inserção de muitas crianças no ensino regular, o trabalho na "estimulação" teve que ser pensado para atender crianças cujo nível de limitação e dependência, desde o psíquico e o orgânico, vem aumentando. Novos desafios surgiram, principalmente ao professor, pela emergência de construir uma prática ampla e aberta em lugar do ensinar para a adequação das funções comprometidas.

Partindo dessa necessidade pontual, ensaiando um atravessamento psicanalítico, o grupo segue passando pelos fundamentos da noção de sujeito, querendo e, às vezes, não querendo propor que ele seja o eixo e a articulação entre as áreas técnicas. Agrega-se a tentativa de entendimento da diferenciação entre pedagogia e educação. Necessário compreender que trabalhar numa perspectiva educativa compete a toda e qualquer área e não apenas à pedagogia/professor. Tentando mudar o paradigma começamos propor atendimento direto à criança pelas áreas específicas. Um investimento tímido e incerto, posto que submetido ao movimento e disposição do grupo e também às deliberações administrativas.

Faço referência a um trabalho cuja prática se propõe interventiva no tempo em que se dá a constituição do sujeito psíquico. O aspecto constitutivo vale de sustentação para apontar que cumpre aos pais a tarefa educativa primeira, que é humanizar, socializar e construir a diferença que leve a constituição do sujeito psíquico - no que ela depende do constitucional e do maturativo desde o orgânico.

Se algo afetar o nascimento ou o curso do desenvolvimento, surgem efeitos para além do dano orgânico. Diante disto, se a impossibilidade de dar lugar ao filho e a dúvida sobre sua competência permanecerem, a função educativa vai ficando comprometida, e o saber sobre a criança cada vez mais deslocado para os profissionais-técnicos-especializados – na saúde ou educação.

A forma como os profissionais se colocam frente tal demanda marca fortemente o desenvolvimento da criança. Aí se faz importante às especialidades girarem em torno de um mesmo eixo, sem que percam suas especificidades - trata-se da noção de sujeito, formulada pela psicanálise, atravessando as diferentes disciplinas. Qualquer profissional vai se deparar com a transferência que os pais colocam em jogo, pois eles supõem o saber que fará da criança o que se espera dela. Se o trabalho assim se caracterizar, a criança vai ficar objetalizada, à margem e confirmando a idéia de que não pertence mesmo à sua própria família – é então da família Down, West, DGD, Encefalopata, etc.

Em geral, é assim que as crianças, com seus pais, chegam à "estimulação". Trazem um pedido, explícito ou não, de que temos a dizer e a fazer o que eles não sabem. Formulam questões que revelam suas dúvidas, apreensões, quanto se desautorizam do saber de pais. Dizem estar tudo bem, entretanto foram encaminhados porque é bom "estimular". Como não estudaram para isso, temem estar deixando de fazer algo que poderia ser importante para o filho, que possa vir a faltar mais tarde, no futuro. Um encaminhamento com foco no déficit, sobre o que nasceu faltando ou passou a faltar no real do corpo. Chega a ser comum que isso fique tomado, a priori, como impossibilidade para o desenvolvimento, não podendo prescindir de intervenções "estimuladoras" para recuperar o que ficou perdido. Isto deixa dúvidas e pode ameaçar a inserção da criança na família, na cultura e a filiação histórica.

Os pais pedem conserto, cura, ensinamentos. Ensinar a andar, falar, brincar, comer, tirar fraldas, obedecer... enfim, ensinar à criança ser o filho que esperavam. Inserindo esta criança nas programações pedagógicas, será que a "estimulação" toma, sem se dar conta, esse pedido de retificação formulado pelos pais? Da mesma forma, será que acaba por prometer o filho que esperavam, já que faz planejamentos pedagógicos que propõem estimular/ensinar aquilo que foi pedido? Parece que ficamos diante de um pedido onde a responsabilidade da educação, que é dos pais, fica transferida para os profissionais, configurando a "educação da deficiência" e não do sujeito.

PETRI (2003)2 refere Maud Mannoni - Educação Impossível/1988 – debatendo a educação idealmente colocada e o ideal da educação, que nos lembra: "A educação ideal é calcada no imaginário; pensa ter resposta para tudo, não havendo espaço para o imprevisto, para a criação, para o desejo enfim. Já o ideal da educação é simbólico; supõe que há enigma e abre possibilidade para o imprevisto, para a criação, para o surgimento do sujeito".

Essa referência possibilita diferenciar pedagógico de educativo. PETRI (2003) alude o já produzido sobre o assunto:"... pedagogia é a ciência que se preocupa em procurar e formular os melhores métodos para garantir uma boa aprendizagem, que considera o ser humano como indivíduo, no sentido de ser uno, indivisível, e procura fornecer elementos para uma melhor adequação às exigências sociais e para o desenvolvimento,o mais harmônico possível, das capacidades intelectuais. Na tentativa de alcançar esse fim, tem se servido cada vez mais de conhecimentos psicológicos..."

"... já na educação, se transmite tanto saber quanto conhecimento. A transmissão do conhecimento, socialmente compartilhado, se dá de geração em geração, como uma herança cultural que foi se acumulando, um ordenamento das coisas que foi se construindo através da história. Esta transmissão acontece pela via do consciente. O saber, de ordem inconsciente, é transmitido sob a forma de valores e ideais. Estes ideais podem ser simbólicos ou imaginários ... e produzirão efeitos distintos em cada caso..."

É grande o número de profissionais especialistas que hoje se ocupam do tratamento e educação de crianças. Historicamente, tratamento e educação não eram separados e opostos como atualmente e assim, observamos os pais sendo tomados como pessoas a serem ensinadas e os profissionais colocados como educadores dos educadores - os pais. Mesmo as crianças bem pequenas estão submetidas ao trabalho de inúmeros profissionais, isoladamente e/ou associados. Indicação de atendimento em todas as áreas clínicas. Indicação de escolinha especial de "estimulação" – porque dizem ser bom "estimular", etc, somados ainda aos acompanhamentos com as especialidades médicas. Nenhum problema haveria já que há, de fato, intervenções necessárias, se tais profissionais se articulassem em torno do sujeito e não apenas em torno das necessidades e/ou da deficiência. Mas é o que parece estar no imaginário social, profissional e parental remetendo à política do "quanto mais melhor". Quanto mais e mais cedo, a criança poderá ser aquilo que esperam que ela seja. É comum ouvir de pais e profissionais o imperativo: estimular! – o máximo possível. Uma ilusão que nega o real de cada singularidade marcado pela diferente patologia e condição de cada criança. Vindas de distintos campos disciplinares - escola, clínicas, hospitais, etc - torna-se importante para a educação especial pensar como atender tal demanda, quando não se tratar de reencaminhá-la.

JERUSALINSKY e BRANDÃO (1990)3 definem estimulação precoce como: "terapêutica precoce para crianças pequenas com problema de desenvolvimento. Visa apoiar a criança na construção de seus instrumentos de intercâmbio com o meio, levando em conta aspectos estruturais. O ponto central de referência é a estruturação ou re-estruturação da função materna, abrindo espaço para a constituição da criança como sujeito psíquico capaz de auto-significar-se". Este conceito autoriza apontar que, para tais crianças e seus familiares serem tomados em atendimento, na "estimulação", é necessário que este seja educativo. No âmbito da família ou da unidade educacional, o que está em jogo é educar, ou re-educar.

Apoiada no exposto, retorno à questão primeira recortando meu relato. A pergunta pela característica pedagógica especializada atribuída ao trabalho da "estimulação" desde o momento pontual em que o professor foi colocado à linha de frente do mesmo. Lembrando que na educação especial precoce ingressam crianças em tempo de constituição de subjetividade, perguntamos pelo 'pedagógico', especialmente entre 0 e 2 anos – tempo cronológico da "estimulación temprana".

Ora direis, mas a pedagogia, fundada no construtivismo piagetiano, trabalha com a construção do pensamento e com sua prática estimula a aquisição do conhecimento!

Ora direis, mais uma vez, que com a criança da fase sensório-motora – lógica ou cronológica - a pedagogia estimula aquisição do conhecimento submetendo a criança ao movimento e às sensações - oferece estimulação motora e sensorial!

Ocorre que sabemos haver crianças, com quadros motores e sensoriais, que constroem seu pensamento com integridade e sem que tenham sido submetidas a programações pedagógicas estimuladoras.

Sabemos haver crianças que, sob incidência do trabalho pedagógico, ao modo da estimulação à aquisição do conhecimento, não revelam avançar na construção do pensamento – são as crianças psicóticas e autistas quando não apresentam anomalia nas funções sensoriais e aquisições motoras. Questões!?...

A concepção que sustenta a premissa de que frente qualquer deficiência a criança precisa ser "estimulada", desde o instrumental, parece colocada como um imperativo e um equívoco que circula nas diferentes instâncias por onde ela transita. Igualmente, a premissa de que uma determinada estimulação, planejadamente oferecida e controlada, leva a um determinado fim desenvolvimental, antecipado como conquista futura. Reiteramos a referência a tal equívoco apontando que a aprendizagem de uma criança está em estreita relação com a constituição subjetiva, posto que o objeto do conhecimento é libidinizado - relação direta entre a pergunta pelo desejo e o desejo de saber. A criança dá pela falta, olha, faz pergunta, age. Aprende com e pela falta estrutural. Isto se efetiva em diferentes momentos de sua vida e com os recursos que tenha conseguido construir. JERUSALINSK (1999)4 propicia ampliar essa reflexão: "... as relações de reciprocidade no parentesco antecedem as relações de reciprocidade numérica, ou das transformações físicas. Isto parece se dever a que a alterização da criança constitui a matriz subjetiva de todo conhecimento, e não a sua ação, como afirma Piaget".

Assim, pensando, planejando, escrevendo me vi às voltas com questões que circundam meu dia-a-dia no trabalho educacional. Como o professor se estimula a aprender? Como constrói seu conhecimento? O faz como ensina? Que aluno foi? Que aluno é? Que lugar é esse dado institucionalmente para a permanente formação/reciclagem do professor? Há diferença entre buscar e receber? O que faz com que a prática seja educativa ou (psico)pedagógica hegemônica (lembrando Lajonquière) para uns e outros? Implicar-se com isto é um caminho na direção da transformação da prática. Manejar isto, parte da minha prática a partir de um papel que me foi designado cumprir, como integrante da equipe técnica constituída para apoiar o trabalho pedagógico e colaborar na formação do professor – será que também pretendido como ideal?

Minha prática, espero que faça marcas e produza alguma diferença - diferença que nomeio como constitutiva, porque diz de constituir/construir um outro olhar, outra prática... que não me cabe instituir, entretanto me cabe questionar, manejar... para que isto aconteça. Faço isto ouvindo, perguntando, respondendo, respondendo com perguntas, respondendo com silêncio. Por vezes não sabendo o que responder, mas disposta a procurar dentro ou fora de mim. Fomento dúvidas, tento desmontar certezas. Certeza que é comum se avolumar frente o recorte da deficiência – da criança e da família. Afinal, somos especialistas e tudo sabemos desde esse lugar técnico especializado... - será?

Nos muitos e diferentes momentos dos encontros formativos parece haver um fio que alinhava, até mesmo "enrosca" o grupo – a busca pelo entendimento da noção psicanalítica de sujeito, entre outras. Em outros parece impossível qualquer articulação e o fio mais parece um pavio que pode queimar, explodir no interior de cada um, frente o quê e quanto cada momento lhe causa. E com isto, provocar, ou não, mudanças. Um pavio também pode ser aceso para iluminar as práticas até então vigentes e produzir efeitos paralelos, colaborar na construção da linguagem da unidade. De qualquer forma, há que haver sujeitos implicados.

Para ocupar um determinado lugar e desempenhar uma determinada função há que se ter autorização simbólica. Não basta haver atribuição funcional. Há sujeitos e transferências em jogo. Aspectos que nenhum planejamento, por si só, é capaz de contemplar. Aprendi e aprendo com isto, ainda que um certo mal-estar, por vezes, se faça presente – o impossível da função?!

Uma história, muitas questões. Aluno? Criança? Aula? Atendimento? Escola? Centro de apoio? Pedagógico? Educacional? Ação direta do técnico? Clínico? Educativo? Responsabilidade da saúde? Responsabilidade da educação? Estimular o quê? Para quê?.... Piaget? Wygotski? Wallon? Freud? Construtivismo? Sócio-interacionismo? Psicanálise? Lacan? Tem atravessamento? Como, quando, onde, por quê? Quem?!!!... O quê?!!!!!.... O que querem de nós e o que queremos nós? Para qual direção apontamos? Para qual público e em nome do quê? Questões constitutivas!

Assim vem sendo construído o trabalho neste lugar, nesta unidade, na "estimulação"... No momento, nome, prática, não o definem. Está atravessado por uma questão de identidade. Questão fundante! Novos significantes vão surgindo... Hoje o tempo é de descobertas, escolhas, transição, ressignificação. E sobre tantas diferenças, que sua marca possa advir de sua própria história, ali onde ainda não é.

Que a prática seja educativa e promova o advir do sujeito criança, escondido na deficiência. Que dela possa advir a implicação da família no encontro com o filho real. Que advenha o mestre capaz de se apagar, desmontando as certezas, dando lugar às interrogações na direção de educar sem governar.

 

 

1 A equipe permanece no interior da unidade. Toda a prática e o investimento formativo dado pela seção destina a todos as mesmas propostas. O foco no "pedagógico" estabelecido como ponto de atenção das demais áreas mesmo quando da ação específica. "Uma equipe co-pedagógica - o adjetivo pedagógico qualificando genericamente a ação institucional". Conforme referenciado por VOLTOLINI, Rinaldo em PSICÓLOGO ESCOLAR OU CO-PEDAGOGO? UMA CONTRIBUIÇÃO CRÍTICA À DEFINIÇÃO DO PSICÓLOGO ESCOLAR – Dissertação de Mestrado/IP/USP/1994.
2 PETRI, Renata. PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO NO TRATAMENTO DA PSICOSE INFANTIL – quatro experiências institucionais. SP/SP. Annablume/FAPESP/2003.
3 JERUSALINSKY, Alfredo; BRANDÃO, Paulo. A trajetória da estimulação precoce à psicopedagogia inicial. In: ESCRITOS DA CRIANÇA nº 3. Centro Lydia Coriat. Porto Alegre/RS/1990.
4 JERUSALINSKY, Alfredo. A psicanálise e Piaget. In: PSICANÁLISE E DESENVOLVIMENTO INFANTIL. Porto Alegre/RS.