5Pediatria e saúde mental da criança: reflexões sobre ensinarA psicopatologia da educação e o retorno à barbárie author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

Anorexia mental – "Você tem fome de quê?

 

 

Renata Petri

Psicanalista, doutoranda no IPUSP

 

 

Ainda que o sujeito do inconsciente não tenha idade, é impreciso falar da criança como analisante de modo geral. A infância abriga o tempo de montagem da estrutura psíquica, o que traz especificidades à psicanálise com crianças. O sujeito, como efeito da estrutura, sofre mudanças constitutivas no decorrer deste período fundamental, atravessando operações lógicas distintas - elementos distintos organizados em torno de dialéticas distintas - em plena transformação da sua leitura e ação no mundo.

Lacan discute a necessidade de se referir a estágios para pensar a criança nos seguintes termos:

"A descrição dos estágios, formadores da libido, não deve ser referida a uma pseudo-maturação natural, que permanece sempre opaca. Os estágios se organizam em torno da angústia de castração. O fato copulatório da introdução à sexualidade é traumatizante (...) e tem uma função organizadora para o desenvolvimento."

"A angústia de castração é como um fio que perfura todas as etapas do desenvolvimento. Ela ordena as relações que são anteriores à sua aparição propriamente dita – desmame, disciplina anal etc. Ela cristaliza cada um desses momentos numa dialética que tem por centro um mau encontro. Se os estágios são consistentes, é em função de seu registro possível em termos de mau encontro."

"O mau encontro central está no nível do sexual. Isto não quer dizer que os estágios tomam uma coloração sexual que se difundiria a partir da angústia de castração. É, ao contrário, porque essa empatia não se produz, que se fala de trauma e de cena primitiva." (1956/57,p.65)

A angústia de castração é o motor da própria constituição psíquica, provocada pelo mau encontro, que é sexual. Interessa-nos portanto pensar como o mau encontro se (re)apresenta em cada estágio, pois o registro possível do mesmo em cada momento é diferente. Claramente não se trata aqui de uma simples sequência cronológica, mas de sucessivos tempos lógicos em que cada um engloba e reordena o anterior, aumentando sua complexidade, sempre tensionado pelo fio da castração.

O traumatismo, como a forma primeira em que se apresenta a função da tiquê, do real como encontro faltoso, ou seja, deste mau encontro, sexual, tem como formulação última o aforismo não há relação sexual. A transmissão realizada pelo Outro é feita via trauma, este real inassimilável. A criança constrói seu fantasma para contorná-lo. O fantasma, uma estrutura mínima, matriz de significação, é o substrato a partir do qual o sujeito se organiza na sua relação impossível com o objeto causa de seu desejo. Este objeto é extraído a partir deste encontro inaugural e faltoso da criança com o Outro. Importa lembrar que esta passagem do trauma à fantasia na infância ainda não engloba todas as consequências que esta articulação do sujeito com o impossível do encontro com o objeto vai trazer no adulto. A infância é o tempo de construção deste fantasma, que terá uma forma estável e acabada somente na adolescência.

Propomos a discriminação de três tempos, tendo como referência o complexo de castração, tomado como a introdução do mau encontro, transmissão da inexistência da relação sexual - num primeiro momento, localizamos o infans, caracterizado pela dialética da frustração na relação com a mãe, estabelecendo um circuito materno; em seguida a criança edípica, em plena travessia do complexo de édipo, às voltas com a castração, instalando um circuito paterno; e finalmente, a criança na latência, tendo escolhido um caminho na neurose, tempo de compreender a castração, definindo um circuito social, ainda que restrito, que se ampliará na adolescência.

O Outro tem importância fundamental em cada um destes tempos como o lugar em que a criança encontrará ou não os elementos necessários para sua elaboração. Quando esses elementos resultarem insuficientes para que a criança resolva os impasses psíquicos que se apresentam em sua confrontação com o real, ela passará a construir instrumentos com a função lógica de contorná-lo. Realizará então uma fomentação mítica, estruturando um determinado sistema simbólico para organizar seu mundo.

"Um mito é sempre uma tentativa de articular a solução de um problema. Trata-se de passar de um certo modo de explicação da relação-com-o-mundo do sujeito ou da sociedade em questão para outro modo – sendo esta transformação requerida pela aparição de elementos diferentes, novos, que vêm contradizer a primeira formulação. Eles exigem, de certo modo, uma passagem que é, como tal, impossível, que é um impasse." (Lacan,1956/57,p.300)

O mito que se cria nunca dá conta totamente deste impossível, mas o contorna, tornando possível outras articulações.

Neste trabalho, daremos ênfase ao infans e suas tentativas de resolução dos impasses próprios a este período da constituição do sujeito.

No momento inaugural temos o bebê, sujeito à necessidade, e a mãe, Outro primordial. O bebê grita frente a tensão orgânica causada pela fome. A mãe interpreta este grito como apelo e oferece o objeto alimento, acompanhado de uma tessitura desejante. A mãe se oferece então como matriz simbólica para a criança, alternando-se entre ausência e presença. A criança vive uma primeira experiência de satisfação neste momento mítico, a partir do encontro com o leite/seio materno, numa relação ilusoriamente homeostática com a mãe, como se o encontro com o Outro pudesse ser bem sucedido, no sentido de plenitude.

A primeira irrupção de real advém do fato da mãe falhar na sua matriz inicial presença/ausência, não comparecendo junto a criança no momento exato em que era esperada, mas antes, ou depois. A partir deste momento, a mãe que se apresentava como uma matriz simbólica, passa a se apresentar também como real. Os objetos que ela oferece à criança também sofrem uma mudança de estatuto e além de objetos reais a mãe passa a ser a possuidora de objetos de dom, simbólicos. A mãe aparece então munida de grande potência à qual a criança acaba se submetendo numa dependência aterrorizante. Lacan usa a figura da mãe insaciável para dar a dimensão da voracidade de seu desejo.

É importante ressaltar que o objeto aqui não é específico:

"Mesmo que não seja o seio da mãe, nem por isso ele perderá algo do valor de seu lugar na dialética sexual, de onde se origina a erotização da zona oral. Não é o objeto que desempenha, em seu interior, o papel essencial, mas o fato de que a atividade assumiu uma função erotizada no plano do desejo, o qual se ordena na ordem simbólica." (Lacan, 1956/57, p.188)

Esta situação exige a entrada de um novo elemento, para contornar este impasse: o falo. Temos agora três elementos: a mãe, a criança e o falo, e se instala a dialética da frustração. A criança passa, por causa de sua dependência dos objetos que a mãe oferece ou não, a se fazer o falo dela, obturando esta primeira brecha vislumbrada. A criança se presta ao jogo de engodo, por uma questão de sobrevivência. Identificando-se ao falo, a criança restitui ao Outro sua ilusão de completude, ainda que ao preço de manter-se alienada a ele.

Passemos então ao relato do caso.

Reno chega para tratamento com um ano e onze meses apresentando uma anorexia grave muito precocemente instalada que vem lhe custando atrasos no desenvolvimento.

A mãe conta que o amamentou com seu póprio leite, mas na mamadeira, porque seu peito "não tinha bico". Após três meses, o leite materno secou e outros tipos de leite foram introduzidos. Reno apresentou alergias, vomitando tudo que ingeria até a idade de um ano. Depois, passou a aceitar eventualmente um produto importado que, embora tenha solucionado a alergia, não resultou em ganho de peso como o esperado, pois a anorexia continuava.

A mãe de Reno conta ainda que passou por uma "depressãozinha" quando do nascimento de seu filho, pois as coisas não aconteceram como esperava: ficou grávida antes do momento ideal; o nascimento foi antecipado porque o feto havia parado de se mexer; não pôde alimentar o filho como sonhava; além de todos os problemas de saúde decorrentes da perturbação alimentar do bebê.

Ao que parece, a mãe, presa a um ideal que foi se tornando cada vez mais desproporcional e inatingível, se atrapalha, e não consegue imprimir na atividade da alimentação a marca de seu desejo. Demanda que seu filho ocupe o lugar de falo, que a complete e a satifaça, mas numa versão tão inalcançável para o bebê, que não permite a instalação do jogo do engodo. Este curto-circuito leva a mãe a seguir oferecendo objetos para a satisfação da necesidade da criança, tomando-a como um vazio a ser preenchido. Fica impossibilitada de realizar esta transformação fundamental do objeto real em objetos de dom, símbolo de seu amor. Esta operação exige que o Outro seja castrado, só assim pode propiciar as condições necessárias para a criança realizar esta nova organização. Vemos, neste caso, como a mãe ocupa uma posição frágil neste ponto, tomada pela decepção diante do ideal.

Lacan explica que a anorexia mental não é um não-comer, mas um comer nada. Nada é algo que existe no plano simbólico, e é através deste nada que a criança faz a mãe depender dela. "É no nível do objeto anulado como simbólico [pela mãe] que a criança põe em cheque a sua dependência, e precisamente alimentando-se de nada." (Lacan, 1956/57, p.190)

Reno recusa sistematicamente os objetos reais oferecidos, numa tentativa de marcar que não é de leite que tem fome, mas de objetos de dom. Através da anorexia, provoca uma báscula na relação de dependência com a mãe, tornando-se mestre da onipotência.

No seu segundo ano de vida, há períodos nos quais Reno se alimenta melhor, intercalados com semanas nas quais praticamente não aceita o alimento. Na última crise antes de procurarem um psicananalista, a mãe vive um momento de "baixo astral" pelo fato do médico dizer que era cedo para pensar em escola para Reno. Novamente o lugar de Reno como falo da mãe é colocado à prova, e ele responde com a anorexia.

A anorexia é uma resposta de ordem inconsciente que a criança formula, ainda que se articule ao desejo do Outro. Neste caso, ganha estatuto de sintoma ao ser endereçada ao analista. Logo na primeira sessão, Reno pega uma cesta de panelinhas e um fogão e propõe o jogo de "fazer comidinha". Embora ainda não fale, através das brincadeiras, Reno enuncia uma demanda de análise, põe em jogo suas próprias interpretações, buscando dar um sentido diante da angústia que desperta o enigma do desejo do Outro.

O analista passa a operar a partir do desejo de analista, embora sustente a dimensão de um Outro primordial, mas um Outro que não dirige demandas à criança, mas que lhe propõe um lugar vazio a partir do qual a criança pode se separar do fantasma parental e aceder a uma demanda própria.

Um mês após o início do tratamento, Reno passa a falar a palavra não. O que se operou? As cenas vividas com o analista, em torno da comida, parecem ter flexibilizado sua relação com o Outro primordial. O desejo em movimento precisa da palavra para ser veiculado na demanda. Neste sentido, a palavra não é um significante fundamental, afinal, como nos lembra Volnovich, implica a aceitação da falta em si mesmo e no outro. "A negativa constitui assim a mais preciosa jóia da subjetividade" (1991, p.40)

O analista como Outro castrado, viabiliza para a criança algum vislumbre da falta, sem a necessidade do sintoma para obturá-la, mas da própria palavra para operacioná-la.

Aos dois anos e quatro meses Reno começa a freqüentar a escola. Passa por uma fase de adaptação com alguma dificuldade em se separar da mãe, mas ao final de três semanas já está perfeitamente incluído, eventualmente provocando o vômito como um chamado pela mãe, um pedido para ir embora, mas que desaparece com o tempo.

Após dez meses de análise do menino, a mãe corta os cabelos compridos dizendo que havia feito a promessa de só cortá-los quando Reno melhorasse. Diz que agora sabe que ele não morrerá de fome, que se tiver fome, comerá. A mãe parece recuperar sua condição de educadora de seu filho, fazendo operar seu saber inconsciente, obstruído pelo apego ao ideal e pelo grave sintoma que havia se instalado em seu filho.

O analista, ao tomar um infans em tratamento, é convocado no lugar de Outro primordial, ainda que o desejo que sustenta seu ato seja o desejo de analista. O objetivo da análise é descongelar a dialética entre a criança e seu Outro primordial e permitir a continuidade da estruturação, o que se operou neste caso, e que pode ser entendido como um final de análise.

 

Referências bibliografia:

LACAN, J. (1956/57). O Seminário – livro 4 : A relação de objeto. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.

VOLNOVICH, J (1991). Lições introdutórias à psicanálise de crianças. Relume-Dumará, Rio de Janeiro.