5Anorexia mental: "Você tem fome de quê?A educação cindida e a formação do sujeito: para além de uma pedagogia do "bem" e do "mal" author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A psicopatologia da educação e o retorno à barbárie

 

 

Rita Maria Manso de Barros

Psicanalista; Mestrado em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO

 

 

Sendo a primeira tarefa da educação ensinar a criança a controlar suas pulsões, e diante do aumento da violência em nossos dias e as dificuldades de manter o desejo de aprender, supomos ser legítimo afirmar que há algo profundamente equivocado na forma ou no conteúdo do que vem sendo transmitido às nossas crianças. Como a história já nos demonstrou a partir da elucidação dos métodos educativos do Dr. Schreber, pai, na Alemanha, método que Maud Mannoni (1973) denominou "educação pervertida", vimos que o uso de práticas perversas, para o gozo do educador, conduziu ao "assassinato de almas" de seus filhos. O ponto culminante desta educação patológica e patologizante, em um nível de microcosmo foi, além do suicídio do filho mais velho, a produção paranóica de Schreber, filho. Em nível macrocósmico, a conseqüência foi muito provavelmente a produção do nazismo (Bursztein, 1998).

A educação, bem empregada, marcando as diferenças individuais entre as crianças, pode conseguir a superação dos traumas da infância, mas não pode suprimir o outro fator, bem mais problemático, que é aquilo que Freud denominou de uma constituição pulsional rebelde. Assim, o educador (pais, professores etc.) deve abster-se de extirpar essa constituição pulsional rebelde, restringindo-se a incentivar os processos pelos quais essas energias são conduzidas ao longo de trilhas seguras, tarefa onde encontrará mais êxito se buscar conhecer-se psicanaliticamente.

Um psicanalista sabe que todo tratamento gira em torno da instalação da transferência, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução. A instalação do dispositivo analítico faz com que a libido, que o sujeito mantém atada aos seus objetos, vá sendo gradativamente desviada e ligada à pessoa do analista: eis a base da transferência. A interpretação da transferência é o instrumento de que o analista dispõe para apresentar, à consciência do sujeito, a sua forma específica de estabelecer laços afetivos, tanto amorosos como hostis. Este procedimento dará origem à resolução da transferência dirigida ao analista e transformará o sujeito para as suas relações vindouras.

Do ponto de vista da psicanálise, a educação é necessária já que possibilita ao ser humano aprender a controlar suas pulsões. A educação de sua época, vitoriana e preconceituosa, tinha, do ponto de vista de Freud, o objetivo de "inibir, suprimir, proibir a colocação em prática de todos os impulsos, sem restrição" (Freud, 1933). Em nossos dias, e justamente por causa das contribuições da psicanálise, sabemos que não é possível impor restrições para alguns sujeitos sem causar o efeito colateral da doença psíquica. Além disso, convivemos com um dos fatores mais complexos e enigmáticos que é a pulsão de morte. A psicanálise como teoria, como saber do inconsciente e enquanto método terapêutico, veio defender e sustentar o percurso de abertura ao novo, oferecendo novas formas de subjetivação. Sendo uma disciplina científica gerada no final do século XIX, como a maior parte das ciências humanas, ela é um procedimento para a investigação de processos inconscientes que são quase inacessíveis por qualquer outro método, é um método baseado nessa investigação para o tratamento de distúrbios neuróticos, e é uma coleção de informações psicológicas obtidas por esse método. Como juntar algo subversivo com outro algo que requer o controle, a educação? Freud escreveu que

"A educação psicanalítica estará assumindo uma responsabilidade para a qual não foi convidada, se ela tencionar transformar seus discípulos em rebeldes. Ela terá desempenhado seu papel se os tornar tão sadios e eficientes quanto é possível. A psicanálise já encerra em si mesma fatores revolucionários suficientes para garantir que todo aquele que nela se educou jamais tomará em sua vida posterior o partido da reação e do recalque. Penso até mesmo que as crianças revolucionárias não são desejáveis, sob nenhum ponto de vista." (FREUD, S.,1933, Conferência XXXIV, p. 184).

Como psicanalistas, somos levados a pensar como a educação pode dar conta dos aspectos destrutivos da pulsão uma vez que ela busca incessantemente a satisfação, o gozo sem obstáculos, liberando-se em direção à barbárie.. Então, não se pode ignorar a relação da educação com a força pulsional.

A satisfação pulsional que preza o laço social só pode se dar nos limites impostos pelas suas facilitações, fornecidas pelas imposições da realidade, da linguagem que sinaliza a existência do outro. O processo educativo, com as barreiras que impõe à descarga pulsional, acaba por construir "dutos" psíquicos, isto é, vias ou caminhos de condução da pulsão rumo à satisfação. Mas enquanto as facilitações promovem a descarga, queremos chamar atenção para um caminho que admita a contenção sem descarregar. Esta capacidade de suportar o aumento da excitação sem procurar imediatamente a descarga é que possibilita à criança o processo de pensamento. O pensar se dá no intervalo de tempo entre o estímulo e a descarga. Ela deve tolerar o desconforto (mal-estar) para transformá-lo em aprendizagem, ou melhor, em palavras, em formas de estabelecer laços sociais e assim promover a cultura. Esse mal-estar, essa sensação de desconforto, é o preço que devemos pagar pela fruição de todas as grandes vantagens que obtemos da vida em civilização, fator necessário para uma existência confortável em termos de aquisições culturais.

O aspecto destrutivo da pulsão, no entanto, impõe-se ao pensamento a partir da clínica e das observações dos fatos de cultura. Afinal os homens nada têm de criaturas gentis que aspiram apenas ao amor e que, no máximo, defendem-se quando atacadas! Muito pelo contrário, carregam em si uma elevada disposição para a agressividade dirigida ao outro.

Na segunda teoria pulsional, Freud estabelece a irredutível fratura entre a pulsão sexual, pulsão de vida ou Eros, e a pulsão de morte, também chamada de pulsão agressiva ou simplesmente destrutividade. Parece-nos como se a função fundamental da pulsão sexual ou de vida fosse distrair a pulsão de morte de seu alvo principal: a morte da pulsão. A vida nada mais é do que uma luta constante entre as duas forças, uma querendo obter, no espaço de tempo mais curto possível, sua plena satisfação (a morte, a extinção de toda e qualquer excitação), outra buscando ganhar tempo para criar condições de a vida se manter no planeta (afinal, é preciso o amadurecimento dos corpos para que novos seres humanos possam ser gerados), criando subterfúgios, ilusões, distraindo a pulsão de morte.

Freud adota o ponto de vista de que a inclinação para a destruição constitui uma disposição pulsional original e que ela se auto-alimenta, sendo por esses motivos o maior impedimento à civilização. É claro que conter esta inclinação vai requisitar uma grande quantidade de energia só investida por amor. A contenção é violenta para a ambição pulsional, afinal sabemos que a pulsão (de morte) ruma cega em direção a sua extinção, sua morte. A educação é violenta nesse sentido. No entanto, ela promove a aceitação dos limites que a existência do outro impõe, como a margem limita o rio. A educação possibilita os efeitos da castração sobre o controle da energia pulsional. Tomando-se a castração como limite, libera-se o sujeito para melhor administrar seu capital, a libido. Amplia-se sua capacidade em reter, poupar, em nome de um gasto mais adequado a ele e ao outro no futuro, na formação e manutenção de laços sociais. Evita-se o desperdício de vida. Basta lembrarmo-nos da constatação freudiana do quão pouco as massas são propensas ao adiamento da satisfação pulsional. Os dias de hoje, cheios de pressa e aceleração, podem confirmar o quanto cada vez menos se tolera o adiamento da satisfação pulsional. A conseqüência desta pouca tolerância é o aumento da destrutividade, da violência contra o outro (aumento da violência, do racismo, do terrorismo etc.) ou contra si mesmo (consumo exagerado de drogas, de objetos, de comida, de imagens etc.). Até certo ponto, diríamos que quanto mais civilizado um homem, mais ele tolera a insatisfação pulsional por um período maior de tempo com a condição que a satisfação da pulsão esteja antevista no horizonte. Assim, a educação chega à criança como uma coerção.

Se a educação deveria inibir, suprimir, proibir a colocação em prática de todos os impulsos, sem restrição, fica claro por quais motivos Freud indispôs-se, inicialmente, contra o processo educativo de sua época. Ao impor restrições para a satisfação pulsional, a educação vitoriana retirava de cena a possibilidade de satisfação em um futuro próximo. Uma vez que a criança deve aprender a controlar suas pulsões até poder satisfazê-las, controle que representa o quão educada teria sido, estaria mais bem aparelhada para poder suportar o desconforto do acúmulo de energia pulsional (insatisfação) até a descarga (satisfação).

Considerando que a educação tem como tarefa primordial impor restrições à satisfação pulsional, e sendo a educação um fato de cultura, uma conquista da civilização, como psicanalistas podemos chamar de pós-educação à psicanálise uma vez que ela oferece à pulsão outros meios de satisfação que não aqueles restritos à criação de sintomas. Sabemos que a infância é um período tão crucial para a construção da subjetividade que alguns sujeitos ficarão a ele fixados.

Em O futuro de uma ilusão (1927), o mestre vienense afirma que o intelecto do homem não tem poder, em comparação com sua vida pulsional. Entretanto, há algo de peculiar nesta fraqueza, pois a voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não consegue uma audiência. Este é um dos poucos pontos sobre o qual se pode ser otimista a respeito do futuro da humanidade. Seu Deus é L o g o V , e este não promete nenhuma compensação para aqueles que sofrem penosamente com a vida. Contudo, em longo prazo, nada pode resistir à razão e à experiência, considerando impossível eliminar a divisão fundamental e constituinte do homem enquanto tal pois este é o preço que pagamos por nossa entrada na cultura.

Konrad Lorenz, famoso etólogo e humanista, ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1973, enumerou há três décadas (1974) suas preocupações com o futuro da humanidade. Dos oito processos descritos, estreitamente ligados através de suas causas, via não só a ameaça à destruição da cultura contemporânea, como também a da espécie humana. Primeiramente alerta para a (1) superpopulação já que nos leva cada vez mais a nos defender da profusão de contatos sociais e que, pelo amontoar de numerosos indivíduos num espaço restrito, provoca inevitavelmente a agressividade. Em seguida, e como conseqüência da primeira, destacou a (2) devastação do meio ambiente decorrente da perda, pelo homem, de qualquer respeito pela beleza e pela grandeza de uma criação que o ultrapassa. Segue-se a (3) corrida disputada pela humanidade com ela mesma, que se vê obrigada a exceder sempre, tornando os homens cegos aos valores verdadeiros, privando-os de tempo para pensar. Depois há o (4) desaparecimento de todos os sentimentos fortes e de toda a emoção, devido à intolerância a tudo que possa provocar o menor desagrado, o conhecido "narcisismo das pequenas diferenças" de que Freud nos alertava, e que conduz ao desaparecimento simultâneo da capacidade humana de alcançar a felicidade ao preço de muito esforço, num ritmo balanceado entre recompensa e castigo que se atenua até transformar-se em tédio mortal, perdendo sua capacidade de sentir e amar. (5) Infelizmente ou não, inexistem, no interior da sociedade moderna, fatores de seleção genética capazes de exercer sua pressão no desenvolvimento e na manutenção das normas de comportamento, não havendo como atribuir à genética a transformação de muitos jovens em parasitas sociais. Outro ponto crítico é a (6) ruptura com as tradições alcançada pelas jovens gerações que não conseguem mais se entender culturalmente com as mais velhas, e ainda menos se identificar com elas, originando-se provavelmente da falta de contatos entre pais e filhos, que já nos bebês provoca sintomas patológicos. A (7) doutrinação vem recebendo uma receptividade crescente, no aumento do número de homens reunidos num só grupo cultural, acrescido do extremo aperfeiçoamento dos meios técnicos que levam a possibilidades de influenciar a opinião pública e de criar uniformidade de opiniões, um bando de carneiros rumo àquilo que o mestre mandar. Sente-se como nunca os efeitos despersonalizantes dos meios de comunicação que são recebidos com prazer por todos aqueles que querem manipular as multidões. E finalmente, o (8) armamento nuclear faz pesar sobre a humanidade um perigo mais fácil de evitar que os sete processos descritos acima, que nos parece sob controle no início do século XXI,

Neste quadro, tão contemporâneo, pensamos que se a psicanálise ainda é, após mais de cem anos de sua criação, um dos produtos mais sofisticados da cultura, ela o é, sobretudo, porque a terapia psicanalítica possibilita aos sujeitos o aumento de seu limiar de tolerância para a frustração sem recorrer à descarga imediata, já que coloca nesse lugar o pensamento, a elaboração, a ligação da carga energética às palavras. A "pós-educação", avessa à doutrinação ou à adaptação a valores contrários ao desejo, possibilita ao sujeito uma espécie de segunda chance, pois redunda em aumento de eficiência e de capacidade de ganhar a vida. Assim, tem-se o direito de dizer que aqueles que passam pela experiência psicanalítica fizeram um bom negócio, já que ele afirmava que nada na vida é tão caro quanto a doença e a estupidez. Nossa questão vem sendo como utilizar esses conhecimentos no campo da educação, promovendo o desabrochar de sujeitos, conscientes de si, de seu tempo e do futuro das gerações que os seguirão.

Se disséssemos simplesmente que atualmente a educação vem cumprindo muito mal sua tarefa de proporcionar meios de controle e adiamento da satisfação pulsional, nada estaríamos acrescentando de novo desde Freud. Ocorre que o retorno à barbárie, visto diariamente em nosso cotidiano, destacando-se aqui aquilo que nos chega pela televisão, traz-nos o anúncio de que algo vai profundamente mal. Outra Sodoma e Gomorra anunciando o fim dos tempos? Qual a parcela de responsabilidade da educação, ou melhor, de sua falta, por tal estado de coisas?

 

Referência bibliografia:

BURSZTEIN, J. (1998). Hitler, a tirania e a psicanálise. (Dulce Duque Estrada, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.

FREUD, S. (1927). O futuro de uma ilusão. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad.) (Vol. 21, pp.15-79). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.

_____. (1930[1929]). O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad.) (Vol. 21, pp.81-177). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.

_____. (1933). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise: XXXIV – Explicações, aplicações e orientações. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad.) (Vol. 22, pp.167-192). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.

LORENZ, KONRAD (1973). Civilização e pecado. (Marina Colasanti, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Artenova, 1974.

MANNONI, MAUD (1974). Uma educação pervertida. In: Educação impossível. (Álvaro Cabral, trad.). (p.23-60). Rio de Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1988, segunda edição.

MANSO DE BARROS, R. e TARRÉ DE OLIVEIRA, G. F. (2004). As margens da pulsão. In: O corpo do Outro e a criança. Revista da Escola Letra Freudiana (número 33, pp. 95-100). Rio de Janeiro, RJ: Escola Letra Freudiana.