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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A educação cindida e a formação do sujeito: para além de uma pedagogia do "bem" e do "mal"1

 

 

Rogério Rodrigues

Docente da Universidade Federal de Itajubá

 

 

Ao falarmos em "educação cindida" e em "formação" estamos nos referindo diretamente a uma "prática educativa" que tende a fixar o sujeito entre dois extremos: o "bem" e o "mal". Contudo, entre esses dois pólos somente um lado é valorizado como sendo pertencente ao humano, pois não é pouco comum aqueles que trabalham com educação se perguntarem sobre o papel que a escola pode desempenhar na formação do "sujeito do bem". Portanto, quando essa questão é elaborada, os educadores, geralmente, centram as suas respostas apenas nos "aspectos positivos" dela.

O discurso educacional hegemônico apresenta-se como uma exaltada veneração da escola como se esta tivesse um papel primordial no processo de "formação de sujeitos críticos e participativos". Para tanto, a educação seria uma peça chave na consolidação de uma "sociedade harmônica" e "justa". Entretanto, deveríamos compreender o processo de escolarização como algo contraditório "em si", ou seja, não se pode negar que este possui um papel importante na transmissão do saber, mas isso não necessariamente deve resultar na "pacificação" dos impulsos destrutivos dos sujeitos. Muito pelo contrário, podemos "educar" sujeitos que sejam "aptos" para cometer "injustiças" e, até mesmo, para matar. Aqueles que pertencem aos agrupamentos se consideram no direito de "julgar" e "punir" o outro. Portanto, os que idolatram a "educação" deveriam ficar mais atentos aos resultados da "formação dos sujeitos" que após passarem anos nos bancos escolares acabam por se diplomar em técnicas sofisticadas de desrespeito para com a vida. Eles atuam de modo a desconsiderar por completo a existência do outro e assumem esse direito, pelo fato de que para eles próprio a vida não tem valor algum. Para Adorno, esta "educação para insensibilidade" constitui-se como o exercício de suportar "em si" a dor ao extremo, ou seja, "quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir"(Adorno, 1995, p. 128). Por atuarem de modo assustador, fazem de suas práticas algo terrificante. Suas relações consigo mesmos e com os outros acabam por "ser" a pura expressão do "terror".2 Essa "modalidade de educação" acaba por formar aquilo que podemos denominar como sendo os sujeitos brutamontes. Nas palavras de Adorno, diria que esse tipo de sujeito é aquele que se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. (...) Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo (Adorno, 1995, p. 129).

A educação pouco tem pensado e, principalmente, falado sobre o "retorno do recalcado", mais propriamente, sobre aquilo que podemos denominar como sendo os "aspectos negativos" da educação. Nas escolas, por uma questão de disciplina, muito se fala da distinção entre os alunos que ficam centrados entre o "bem" e o "mal". Em poucas palavras diria que o aluno do "bem" seria aquele que atende ao desejo do professor e, em contraposição a essa situação, o aluno do "mal" seria aquele que se distancia desse desejo. Nesta perspectiva, o aluno do "bem" estaria muito mais próximo de se tornar brutamontes do que o aluno do "mal", pois uma vez colado ao desejo do seu "mestre", ele anula por completo o seu "ser". Entretanto, o ponto primordial que pode ser considerado como o principal "fundamento da educação" para a insensibilidade do sujeito é tornar tudo coisa. Uma vez feito isso o tratamento entre os sujeitos é destituído de qualquer tipo de afeto. O primeiro objeto a tornar-se coisa é a si mesmo e os outros seriam apenas uma ampliação desse ódio para consigo mesmo e para qualquer manifestação de vida. Assim sendo, podemos afirmar que a educação para a insensibilidade seria aquela que faz com que o sujeito/coisa possa suportar a dor a ponto de reprimir o seu "vir a ser" (Sartre, 1997) e impõe-se a viver a todo custo a indiferença "em ser" algo completamente alheio ao seu próprio desejo e, por que não dizer, sem sentimentos próprios.

De um modo geral, a resposta para aqueles que possuem a preocupação de evitar a formação desses tipos de sujeitos/coisa e coisificadores, tem sido cada vez mais agravante, ou seja, a crença de que o "mal" resulte de uma "falta de educação" tem direcionado os "esforços dos educadores" somente para o "aspecto positivo" da educação. Estas "pedagogias" estão centradas na "tese" de que é preciso cada vez mais aumentar a "dose educativa" para tornar os sujeitos cada vez menos bárbaros. Nesta perspectiva, uma escola que tem por objetivo formar o "sujeito do bem" não deve medir esforços para alcançar tais resultados. Para tanto, os "educadores" buscam a formula da possível "solução pedagógica", ou seja, elaboram-se métodos de ensino e selecionam-se os principais conteúdos a serem transmitidos para que possam resultar numa didática apropriada, não se deixam de usar de técnicas ditas psicológicas para estabelecer "verdadeiros vínculos" na relação professor e aluno, enfim acabamos por criar uma "ciência da educação". Contudo, por mais que se faça o "processo educativo" de "maneira cientifica" sempre falta algo que complete plenamente o "sucesso escolar", pois sempre há um "erro pedagógico" ? aquele aluno que não aprende ou não está plenamente inserido na "ordem" dos agrupamentos. A educação do "cada vez mais" não tem evitado o surgimento do "cada vez menos" dos sujeitos brutamontes.

Os chamados "alunos problemáticos" fazem com que grande parte daqueles que trabalham com educação se frustrem no seu papel de educador. Entretanto, o que estaria em jogo não seria o próprio "narcisismo do educador" em não ter contemplado o pleno reconhecimento de que "é" um "mestre que educa"? Não podemos deixar de perceber que por mais que se busque o "método pedagógico adequado", quase sempre, os resultados têm se apresentado com um resto, ? que desagrada a todos os educadores ?, os "maus alunos". Esse resto é que proporciona um "mal estar pedagógico".

Somos possuidores de um "delírio educacional" de que um dia possa existir uma "ciência da educação" que seja extremamente exata em seus resultados, ou seja, uma "ciência", que uma vez "bem aplicada" terá como resultado o ensino e a aprendizagem para todos os alunos. Podemos dizer, nas palavras de Lajonquière (1999), que vivemos a "ilusão pedagógica" de querer encontrar a "solução" para todos os "males educacionais". Para esses "educadores" o trabalho educativo é primordialmente regido pelo princípio de prazer, ou seja, busca-se somente a satisfação e que esta seja somente a do "educador". Em contraposição a isso, podemos "praticar" uma "educação" que, para o "desespero dos pedagogos", seria uma situação completamente adversa aos "aspectos positivos" e, para tanto, os alunos na relação educativa romperiam com o desejo do "mestre educador". Neste rompimento, os educadores também teriam que lidar com o fantasma de que "os alunos não aprendem". São estes alunos ditos "fracassados" que apontam para o nosso não saber educativo — os "aspectos negativos da educação". Eles proporcionam o "princípio de realidade" que nos arranca do "delírio", mais propriamente, ameniza o nosso "fantasma pedagógico" de poder "ensinar tudo a todos" (Coménio, 1985). Enfrentar essa situação seria o fato de compreender que a falta estará sempre presente em nossa "prática educativa", ou seja, apesar de desejarmos "ser" deveríamos abandonar a possível posição de "ser" o "mestre educador" e assumirmos a "impossível" posição do "mestre ignorante"(Rancière, 2002) que permita na relação educativa o "vir a ser"(Sartre, 1997) tanto para o professor como para o aluno. Somente por ocupar magistralmente essa posição — o negativo da educação —é que se permitirá a existência do desejo do outro.

A existência do que se denomina como o "mau aluno" seria apenas a situação de espanto com os resultados das relações ditas educativas. Todas as relações entre sujeitos, apesar do nosso desejo de controle, não se podem estabelecer a priori para se traçar aquilo o que se denomina "adequado" ou "justo". Os educadores deveriam abandonar, de uma vez por todas, as manias de querer "vigiar" e "punir" (Foucault, 1991). A construção de uma "educação" que não tenha a obsessão de "julgar" o sujeito por "não ser" (Sartre, 1997) e que também não se pauta na "ciência da educação" teria uma forma diferente de lidar com aquilo que se denomina "erro pedagógico". Não teria como finalidade obter a exata resposta para os "problemas educacionais" e sim a conquista de uma constante reflexão sobre a prática educativa.

Sendo assim, em termos educacionais, basicamente, podemos viver de um lado, a "ciência da educação" que ao criar "exatos métodos de ensino" acaba por impedir de se pensar a prática educativa aquém do sujeito do "bem" e do "mal". Por outro lado, a "educação sem ciência" que, ao permitir a posição de "mestre ignorante" (Rancière, 2002), para o qual educar nada mais é do que um encontro entre sujeitos e não entre "coisas", seria algo que possibilitaria o surgimento do "impossível" "vir a ser" (Sartre, 1997) do sujeito para além do "bem" e do "mal" (Nietzsche, 1987). Entretanto, somos ainda possuidores de um "discurso pedagógico hegemônico" (Lajonquière, 1999) que insiste em fixar o sujeito entre as coisas do "bem" e do "mal" ao ponto de exigirmos a exatidão nos resultados da educação. Por que tanto queremos evitar pensar a educação tendo o resto — o espanto — como algo pertinente à prática educativa?

Diria que em determinadas circunstâncias atuamos nas escolas como verdadeiros educadores homem/máquina, pois não queremos pensar sobre o que fazemos em educação e em contrapartida, e em outros momentos, somos trincados e passamos a pensar insistentemente sobre a "prática educativa". Nestas relações fazemos de tudo para evitar a trinca a ponto de nada querer saber sobre o desejo e, para tanto, insistimos em reificar as relações entre professor e aluno com aquilo que se denomina o "método de ensino". Entretanto, tudo parece indicar que a "prática educativa" quebra a nossa coerência com aquilo que acreditamos "ser". Aqueles, nos quais, por algum motivo, as trincas são profundas, passam a desacreditar nas "promessas pedagógicas". Para estes, a escola começa a se apresentar como uma instituição que se tonar cada vez "menos educativa", apesar de todo o esforço para se tonar "mais educativa". Os que buscam a escola "mais educativa" acreditam que o "método de ensino" possa ser sempre aperfeiçoado ou até mesmo "trocado" por um outro cada vez melhor. Contudo, os que passam a compreender a escola como uma instância "menos educativa", passam a desacreditar nos "fundamentos da educação" e assumir uma "educação sem fundamentos".

Se hoje existe alguma saída em "termos educacionais" seria a de se permitir vivenciar os chamados "aspectos negativos da educação". Não deveríamos esperar resultados otimistas do "processo de escolarização" e, sim, apenas um encontro em que se trocam experiências humanas. Em poucas palavras, o papel primordial que uma escola poderia desempenhar seria o de ensinar aos alunos "a serem felizes com sua solidão"(Deleuze, 2004) e, até mesmo, a se reconciliarem com ela.

Assim, ao pensarmos uma Tese em Educação, não deveríamos ter como pressuposto a necessidade de ter que afirmar uma "nova verdade educativa", pois já existem tantas; e sim, abandonar por completo o anseio pela "verdade" e em seu lugar permitir que em cada relação educativa possa transparecer o "vir a ser pedagógico" que seria "humano, demasiadamente humano" (Nietzsche, 2000). Portanto, reconhecer os aspectos "negativos da educação" seria desde já assumir os "riscos" na formação do sujeito e aprender a ampliar a tolerância para com: o espanto, o inesperado, a diferença, e o outro. Um modo de educar para o "impossível" de uma relação que seja, até as suas últimas instâncias, entre sujeitos e não entre coisas. Diria também, que uma relação que seja "demasiadamente humana" (Nietzsche, 2000) seria um modo de evitar a formação dos agrupamentos — a escola básica dos brutamontes. Como podemos fazer isso, não sabemos. O que sabemos é que, para evitarmos os "sujeitos/coisas", será preciso centrar nossos "esforços educativos" para que, em vez das "certezas" dos grupos e as "manias" das massas, se consolidem as "incertezas" e as "novidades" da vida. A construção para um modo de educar que tenha o reconhecimento de que o sujeito cindido não se deva fixar entre o "eu" (o "bem") e o "outro" (o "mal"). Esse reconhecimento que poderá permitir o "impossível" de uma prática educativa para que os sujeitos não apenas "aprendam" a se reconciliarem com a solidão (Deleuze, 2004), mas que também possam amenizar seus conflitos com o estranhamento perante o outro. Um modo de aprender a lidar com os seus próprios sintomas. Um modo de educar para o "impossível" governo de si.

 

Referências bibliográficas:

ADORNO, Theodor W. (1995). Educação após Auschwitz. In: ________. Educação e Emancipação. (Wolfgang Leo Maar, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1995.

COMÉNIO, João Amós. (1985). Didáctica Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

DELEUZE, Gilles. (2004). O abecedário de Deleuze. In: NETO, Alcino Leite. Confissões de um Pensador. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 30 de maio. p. 6.

FOUCAULT, Michel. (1991). Vigiar e punir: o nascimento da prisão. (Ligia M. Ponde Vassallo, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.

LAJONQUIÈRE, Leandro de. (1999). Infância e Ilusão (Psico) Pedagógicas: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis, RJ: Vozes.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. (2000). Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. (Paulo César de Souza, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.

________. (1987). Para além de bem e mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. (Hermann Pflüger, trad.). Lisboa: Guimarães Editores.

RANCIÈRE, Jacques. (2002). O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. (Lílian do Valle, trad). Belo Horizonte, MG: Autêntica.

SARTRE, Jean-Paul. (1997).O ser e o nada. (Paulo Perdigão, trad). Petrópolis, RJ: Editora Vozes.

 

 

1 O título desse texto é tema da nossa tese de doutorado defendida na Unicamp no dia 24 de agosto de 2004.
2 Podemos compreender a "aplicação do terror" nas relações entre sujeitos como um "artifício didático" para que o outro aprenda a "ser". Isso seria uma "modalidade de educação" para manter o outro "terrificado", mais propriamente, imobilizado e, paradoxalmente, mobilizado para atender prontamente as exigências que o subjuga enquanto coisa que "é".