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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

A psicanálise na instituição

 

 

Rômulo Ferreira da Silva

Escola Brasileira de Psicanálise – São Paulo

 

 

A psicanálise e a psicose – Tomei a psicose como uma espécie de sinônimo de doença mental. Em Freud tínhamos uma contra-indicação para a aplicação da psicanálise aos pacientes psicóticos, porém, o próprio Freud faz uma análise do texto de Schreber e trata o Homem dos Lobos, manejando a transferência de modo especial por se tratar de uma estrutura algo diferente no que diz respeito à forma do recalque. Freud nos adverte, mas diz que se a técnica fosse modificada poderíamos pensar na aplicação da psicanálise às psicoses.

Lacan dedicou-se à psicose em vários momentos de seu ensino, tomando inclusive, a psicose como paradigma da neurose na condução do tratamento. No texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível das psicoses", de 1958, Lacan nos orienta sobre a prática analítica nessa estrutura, salientando que é necessário levar em conta a foraclusão do Nome-do-Pai e sua conseqüente influência na transferência, para que se possa "remar".

Michel Silvestre, inicia sua apresentação na jornada da École de la Cause Freudienne em 1984 dizendo que há um fato que devemos admitir: "Há psicóticos em análise". Ou seja, muito se avançou no campo do tratamento das psicoses desde Freud. O analista na posição de secretário do alienado e os desenvolvimentos que esse lugar sofreu ao longo dos anos nos colocam em melhores condições para o trabalho.

Muitas questões são colocadas a respeito dessa prática, desde a entrada em análise, o tipo de interpretação, até se existe final de análise na psicose. Apesar de termos ainda um grande percurso pela frente, hoje, podemos dizer que há entrada em análise na psicose, a transferência ocorre, e podemos começar a pensar o final de análise nas psicoses como disse Eric Laurent na revista "O Curinga" n. 14, da EBP-MG, apesar de afirmar que mesmo que um sujeito psicótico termine sua análise, um telefonema no mínimo, irá sempre ocorrer, haverá uma insistência do paciente em manter o analista mesmo que à distância.

É no final do ensino de Jacques Lacan que podemos melhor nos orientar em relação à análise dos psicóticos, visto que, a partir de Joyce, o Sinthoma e da teoria dos nós, o fato de ser o Nome-do-Pai que faz a amarração do sujeito na neurose é um mero acaso, pois o sujeito pode fazer sua amarração, sua constituição subjetiva, de maneiras diversas, sem utilizar o Nome-do-Pai.

A psicanálise e a instituição – Quando falamos de psicanálise e instituição nos perguntamos sempre qual é a influência no funcionamento da instituição, seja qual for sua especificidade (pública/privada, de educação/de saúde etc.). Podemos falar da aplicação da psicanálise nos tratamentos conduzidos nas instituições, e da aplicação da psicanálise na condução da instituição. O discurso analítico não se instala enquanto tal na instituição, ou seja, a psicanálise não se torna cadeira cativa. A orientação pode ser psicanalítica e ter efeitos analíticos. Mas, o discurso analítico será sempre contingente.

Se por um lado, podemos nos perguntar sobre a aplicação da psicanálise nas psicoses, sua indicação, seu alcance e seus resultados, por outro, podemos também, perguntar como a psicanálise se introduz na instituição. O que podemos vislumbrar é que a presença do analista, seja como médico, psicólogo ou professor, faz com que, em momentos privilegiados, e de forma sutil, o discurso analítico se apresente, fazendo girar os outros discursos, ou seja, não permite que se instale um discurso fixo de produção de saber. Há terrenos propícios ao aparecimento desse discurso, devendo a instituição estar aberta ao novo de alguma maneira. Os efeitos do aparecimento da psicanálise questiona não só a posição dos usuários da instituição, mas também, aquela da equipe e da própria direção.

Trata-se de fazer circular a palavra a fim de que surjam sujeitos ali onde havia usuários ou funcionários. O simples exercício da palavra e uma posição democrática da instituição não bastam. Essas são condições para que a psicanálise se introduza e sua inserção depende do desejo do analista que ali está e sua conseqüente sustentação de que há algo que não encontra na palavra uma resposta.

Durante a preparação do meu trabalho para esse colóquio fiquei sabendo que os responsáveis pelo financiamento do evento avaliaram que o tema fugia ao interesse da educação e por isso a verba que se destinaria à efetivação do colóquio não foi aprovada. Não conheço os trâmites que geraram essa conclusão mas me pareceu de tal forma obtusa, posso estar equivocado, que achei melhor me colocar ao trabalho. Esse é um evento voltado para a educação e sem dúvida aborda, para além do cotidiano, questões difíceis, muitas vezes negligenciadas e que podem ajudar a avançar nos impasses mais freqüentes da vida educacional.

Foi assim que para Lacan a psicose passou a ser o paradigma para a neurose, ou seja, a partir do que se verificou na prática analítica das psicoses, que parecia não ser da alçada da psicanálise e portanto não interessá-la, é que se pôde avançar no tratamento das neuroses.

Situações nas quais me vi envolvido e que articulavam psicanálise, instituição e educação, as discussões e soluções tiveram influências notáveis no funcionamento da instituição, no modo de se praticar a educação, para além do caso específico. E, é claro na minha prática analítica. A psicanálise também se renova a partir de suas conexões.

Foi assim que redirecionei minha fala de hoje e resolvi trazer um recorte de um caso que venho atendendo há pouco mais de um ano.

É um adolescente de 16 anos, com diagnóstico de Síndrome de Down, freqüenta escola normal, classe normal e não tem nenhum programa especial voltado para suas dificuldades de aprendizagem. Lê e escreve muito mal, as formações de frases são às vezes incompreensíveis mesmo na fala, e resolve com dificuldade as operações matemáticas mais simples. Nas outras disciplinas decora palavras chaves que constam no conteúdo programático sem conseguir discorrer sobre os temas. Ele está na oitava série.

Trata-se de uma escola muito boa mas nesse caso, o que ela oferece é o acolhimento. A professora e os colegas têm paciência e tolerância com ele e não exigem muito. É o "café-com-leite". Apesar de não acompanhar a turma ele vem passando ano após ano porque – justifica-se – "adaptou-se bem aos colegas e é uma maneira de se socializar". Porém, são constantes as queixas dos colegas, da escola e dos pais, sobre ele estar sempre isolado e não conseguir interagir normalmente com os outros.

Não há projetos para depois do primeiro grau. A escola me disse: "Aí acaba nosso compromisso". A instituição escola não foge ao imperativo da inclusão, acolhe, mas não se responsabiliza eticamente por seu aluno. Se é assim para esse será diferente para os outros, os ditos normais?

Os pais são separados desde a gravidez e por isso os recebo separadamente. A mãe, mais que orientada pelos diversos tratamentos que o filho recebeu ao longo de todos esses anos, encara seu desenvolvimento e suas perspectivas com naturalidade mas não deixa de ter seus incômodos. A queixa principal que fez com que mudassem de "psi" foi uma conduta agressiva e violenta que apareceu nos últimos anos e que não teve melhora com a psicoterapia que vinha fazendo.

O pai, um pouco mais distante do filho, permanece otimista. Ele pesquisa sobre a síndrome na internet e interpreta tudo que o filho fala como fabulações normais nos "Síndrome de Down". Tranqüiliza-se com a preocupação que a mãe tem sobre o futuro do filho, já que não são tão jovens, através dos dados que tem sobre a média de vida entre os portadores da Trissomia do 21.

O paciente criou duas organizações secretas nas quais exerce a função de líder. Existe uma hierarquia em que ele posiciona seus bichos de pelúcia, seus colegas, e sua família – nessa ordem. Essas construções delirantes invadem as relações do paciente e é comum ele introduzir o assunto em meio às conversas de pátio, o que faz com que o entorno trate a questão de forma banal por se tratar de um débil, não aparecendo a vertente psicótica de sua estrutura, por enquanto. Conforme o tempo vai passando ele se distancia mais ainda dos assuntos e dos interesses dos colegas, tem mais dificuldade em acompanhar os temas próprios da adolescência, como por exemplo, a sexualidade. Nas suas elaborações delirantes aparecem os conteúdos que não conseguem entrar no encadeamento simbólico. Suas histórias vão se tornando mais violentas, sexualizados e com inúmeras passagens ao ato de suas personagens.

Quando terminar a oitava série o paciente vai ficar um tempo maior em casa, não vai usufruir do laço social mínimo que possui hoje e não há nenhuma idéia do ele possa vir a fazer. O compromisso da escola termina no final do ano. Compromisso do quê? Ao menos com os outros alunos espera-se que seja ter transmitido os conteúdos exigidos no primeiro grau. E com esse jovem? Qual é o compromisso? Ter tolerado sua presença?

Esse paciente, deixado ao sabor dos acontecimentos, vai mergulhar em sua solidão delirante e começar a passar ao ato.

Venho conduzindo o tratamento no sentido de estabilizar as construções delirantes, possibilitando que ele fale das questões que fogem à sua compreensão. O gozo tem sido melhor contornado e ele apresenta uma inserção melhor no seu meio. Mas, há algo além dessa intervenção que visa a instituição, tanto na vertente escolar como familiar.

A psicanálise ao se oferecer cria uma demanda. A instituição passa a querer saber da psicanálise o que fazer. Nas situações em que família ou escola não pararam para pensar nas conseqüências de seus atos, aparece a demanda imperativa de uma resposta concreta, ágil e pragmática, na tentativa de coibir os riscos anunciados.

O psicanalista, ao se inserir nessas instituições, corre o risco de se colocar no lugar do saber e a partir da teoria e da experiência acumulada, traçar metas, estabelecer condutas, avaliar e ditar normas de funcionamento.

Ora, Freud nos aconselhou que, ao praticarmos a psicanálise, deveríamos esquecer tudo o que aprendemos e recebermos cada paciente como se fosse o primeiro. Além disso, o analista conduz o tratamento e não a vida do sujeito.

Assim, já está posto que o psicanalista não vai entrar na instituição, seja ela qual for, com um saber a mais para tentar completar, totalizar um universo que se apresenta falho.

O analista opera, ao contrário, a partir do não-saber. A presença do analista como tal é pontual e contingente e é necessário que haja um campo fértil para que isso aconteça. É a transferência e outras condições, quando se trata da instituição, que permitem o aparecimento do analista.

A presença daquele que sustenta um desejo de analista questiona os outros saberes que tentam elaborar um saber que diga pelo sujeito.

No caso da "Síndrome de Down" aparece o discurso da ciência que diz do sujeito o que ele é e até onde ele pode ir, o que facilita para a educação se colocar de forma recuada em relação ao investimento, já que, sendo sua debilidade geneticamente determinada, o sujeito não irá muito longe. Com todos esses discursos, a família se vê autorizada ao desinvestimento, corroborando para uma espécie de justificativa da falta de desejo envolvida na concepção da criança.

Assim, o que vemos é um investimento protocolar. Acolhimento. Investimento libidinal zero. A escola com a posição ou até a obrigação de incluir, o que não significa não segregar, suporta a presença e desenvolve algo mais parecido com a caridade.

O sujeito dividido está mais próximo de se responsabilizar por aquilo que o leva à instituição. Quando tratamos de sujeitos nessa situação podemos ir na direção de fazê-los se responsabilizar pelo gozo que envolve a situação dada. Na psicose podemos verificar esse efeito, ou seja, uma certa responsabilização pelo gozo, porém, há uma diferença no modo disso ocorrer. Até onde podemos ir aí? Há muito o que percorrer nesse campo e ainda necessitamos do trabalho institucional em muitas situações que envolvem esse tipo de sujeito, pois, por estrutura, ele não quer saber nada sobre a castração. Na instituição o analista deve saber que seu lugar nunca será o de se instalar confortavelmente. Será sempre um lugar strapontin.

O que diferencia o trabalho quando se introduz a psicanálise na instituição ‘é que a orientação passa a ter um imperativo ético. O psicanalista tem compromisso com o sujeito naquilo que ele pode ir na via de seu desejo. Não se ancora nos contratos estabelecidos entre as partes, mas sim, se podemos dizer, no trato com cada sujeito.

 

Referências bibliográficas:

CURINGA – Revista da EBP-MG n.14 "Há algo de novo nas psicoses" - Ano 2000

FREUD,S. Obras Completas . Ed Stander. Imago

LACAN,J. Escritos. Ed Jorge Zahar. Rio de Janeiro – 1995

LACAN,J. Le Séminaire livre XXIII " Le sinthome" . Ed Seuil – Paris.2005

SILVESTRE,M. Amanhã a Psicanálise – Ed. Jorge Zahar – Rio de Janeiro 1991