5A psicanálise na instituiçãoO corpo "educado" na educação do corpo: contribuições reichianas para a educação author indexsubject indexsearch form
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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

O pai de avental – considerações sobre a transmissão do pai e a infância; ou de como o pai tem educado e o que as crianças têm aprendido

 

 

Rosa Maria Marini Mariotto

PUC-Paraná

 

 

Quem sabe faz quem não sabe ensina. Quem não sabe ensinar, ensina a ensinar. Quem não sabe ensinar a ensinar, vira crítico.
Bernard Shaw (1856-1950).

 

Se estamos diante de um tempo de profundas modificações talvez seja preciso ter em mente que o caminho percorrido pela humanidade está constantemente acompanhado por estes fenômenos, não nos deixando levar pela idéia de que o hoje é prenúncio de que não haverá amanhã. Munidos então de certa carga extra de otimismo – ou será discernimento? -, o que nos interessará aqui será alcançar a questão do pai portanto, menos pelo discurso que versa sobre seu suposto declínio do que pela sua transformação.

Assim sendo, as reflexões aqui consideradas se organizam em torno de três eixos, já que procura estabelecer uma conexão entre a suspeita de um redimensionamento da esfera paterna, a perda da infância enquanto dispositivo discursivo e a questão da transmissão na educação dos pequenos.

Lacan, em meados dos século XX já se preocupava com esta questão, fazendo de sua empreitada teórica um alerta aos tempos sombrios que poderiam pairar sobre este planeta. Em Complexos Familiares, datado de 1938, ele credita ao já aparente declínio social da imago paterna o advento da psicanálise, denunciando que a função paterna é afetada não apenas pela subjetividade de quem a exerce mas também pelo campo social.

Pode-se fazer aqui uma relação entre os autores que contam os dias para que finalmente o apagamento do pai triunfe e aqueles que consideram a infância como um tempo que também corre o risco de se extinguir. Lajonquière (2001), particularmente preocupado com esta última hipótese, considera que "o desarranjo ou a desproporção no plano das práticas discursivas contemporâneas revela-se incapaz de metaforizar o real produzido pela introdução de uma ‘criança’ no mundo adulto". Enquanto realidade psíquica, a infância corre o risco de se tornar peça de museu, em que sua extinção vem como o representante de "um mundo que não quer saber mais da exigência de se tentar o impossível de um sonho, que não quer mais inventariar uma e outra vez o passado, que não quer mais fazer memória para não ter de se confrontar com o fato de que somos realmente feios, sujos e malvados" (Lajonquière, op. cit.).

Assim sendo, resta-nos a tarefa de pensar de que aquilo de que necessita a infância para manter-se enquanto tal depende de qual idéia de pai que o discurso vigente tem operado.

 

O pai em 1

Uma primeira questão se impõe: de que pai se trata quando tratamos de falar do pai. Alerta necessário posto que encontramos ao longo dos escritos lacanianos posições teóricas em torno do tema que, se não são em sua essência divergentes, revelam no entanto importantes avanços. Em Mito Individual do Neurótico, texto de 1949, Lacan considera que em nossa estrutura social o pai será sempre discordante relativamente da sua função, onde há uma distinção nodal entre o que o sujeito percebe e a função simbólica. Afirma que quando o pai da realidade tem que assumir os pais RSI, o sujeito enfrentará problemas, localizando aqui a gênese da neurose.

Logo, o pai, diferentemente da mãe, não é apenas um, mas vários, já que é possível reconhecermos no mínimo 3 funções por ele exercidas: a de genitor, provedor e educador, dando à prole um nome e legislando sobre as regras de aliança e filiação1.

Idéia que se sustenta no seminário dedicado às relações de objeto, onde Lacan (1956-57), estabelece que a função simbólica do Pai – o Nome-do-Pai – exige que as três instâncias paternas – RSI – se inscrevam na estrutura, exatamente para dar estrutura ao que se forma.

Neste período de composição teórica Lacan propõe que o Pai Real tem como função interditar o gozo absoluto, dando à criança a castração simbólica, empurrando-a para sua destituição enquanto falo imaginário da mãe. Este pai Real será encarnado pelo pai da realidade, que na vida da criança pode ser um ou vários. Portanto, sua instância é o pai da realidade, o pai como normal. Já o Pai Imaginário se constrói a partir do imaginário infantil aliado ao imaginário cultural e terá como suporte o pai da realidade. A função do pai imaginário é, fundamentalmente, a de privar o sujeito do falo simbólico, que a partir de então estará atribuído ao pai. É o pai todo poderoso.

Por fim, tem-se o Pai Simbólico cuja função é a de proteger o infans da psicose na medida em que, ao frustrá-lo em relação ao seio, oferece a língua e o nome. Será então, o mediador do mundo simbólico para a criança. É o pai como normatizador2.

Interessante também é a forma como tegiversa Hurstel (1999) a respeito do pai e que aqui pode servir de suporte para nossas reflexões. Ela adverte que, ao se discorrer sobre paternidade, fundamental se faz estabelecer a diferença entre função, papel e pessoa do pai. Quanto à função entende-se a ordem da linguagem e da palavra, onde sua eficácia se encontra no simbólico. No que se refere ao papel, localiza-se o imperativo social estabelecendo o lugar de onde o pai vai responder; "o papel assim definido, delimita um lugar de ‘bom’ ou de ‘mau’ pai que chamarei de ‘imaginário’, no sentido em que J. Lacan faz uso desta noção" (p.112). E, por fim, a autora descreve a pessoa do pai como aquele homem a quem é designado sob este nome - o de pai -, assegurando esse papel na ordem familiar, definindo ainda como o ‘real’ da paternidade os próprios espermatozóides fecundantes. Esclarecidas estas proposições, Hurstel propõe então chamar de ‘pais na realidade’, "os pais que estão em relação com o simbólico da função, o imaginário do papel e o real do esperma, que portanto, enodam em si os três registros da paternidade" (p. 114).

Ora, o dilema neurótico se circunscreve justamente no fato de se confrontar com um pai que fracassa em sua função "3 em 1", mas que ao mesmo tempo legaliza o simbólico. Portanto, significa dizer que além da transmissão de um nome e de um lugar na rede de significações cabe ao pai a transmissão de um incerteza. Segundo Kupfer (2001), a incerteza pela qual o pai é responsável transmitir é "precisamente o que caracteriza o humano como aquilo que escapa ao programado, àquilo que é fixo no instinto. O humano é o que não se sabe".

Talvez seja por isso que, diante da educação que cada um recebeu haja a suspeita de que tanto se alcançou o sucesso desejado, quanto de que em algum ponto algo fracassou. Aí talvez se atinge o limite imputado a todo ente que humano advém.

A compreensão do pai e sua função na transmissão – e portanto na educação – a partir do enodamento RSI permite-nos refletir sobre com tem sido amarrado atualmente este nó.

 

Do pai ocupado ao pai preocupado

A prática em consultório e a inserção nos espaços escolares tem nos possibilitado testemunhar um aumento da presença paterna nestes lugares. De domínio quase que exclusivo do feminino, hoje vemos muitos pais assumindo ‘as rédeas’ do tratamento e do acompanhamento escolar. Ao pai dito moderno cabe ocupar-se de suas atividades de ‘pãe’, neologismo que concentra na figura do pai as competências maternas. A transformação do ‘pai ocupado’ em ‘pai preocupado’ faz com que este apele às instâncias terceiras – o psicólogo, o orientador pedagógico e até mesmo o psicanalista – para traduzir-lhes em ação a complicada tarefa de educar, que vai desde como trocar uma fralda até de que forma ajudar nos problemas de aprendizagem do filho.

A título de ilustração, fazemos um curta comparação entre 2 filmes dirigidos ao público infantil que alcançaram estrondoso sucesso na época em que foram lançados. Em 1994 o longa-metragem animado "Rei Leão" entra para a história cinematográfica como um dos melhores filmes produzidos pela Disney. Quase dez anos depois – em 2003 – as crianças se vêem ‘mergulhadas’ nas peripécias marítimas do filme "Procurando Nemo". Em ambos a questão do pai é particularmente retratada, mas com versões muito distintas.

No drama shakespeareano ambientado nas savanas africanas, o dilema vivido pelo leãozinho Simba se localiza no seu sentimento de culpa pela morte do pai, e no imperativo de se confrontar com o fantasma do pai morto e do rei posto. Encontramos aqui a idéia de um pai falível, posto que mortal, mas que perpetua simbolicamente sua função através de seus descendentes. Mufasa, pai de Simba, nunca se furta a mostrar para seu intrépido filho o alcance e o limite de seu ‘reinado’. Parafraseando Lajonquière (2003), pai é aquele que não pode não proibir3. Proíbe, mas autoriza, convocando o filho a vir ocupar um dia seu lugar na linhagem animal.

Já em "Procurando Nemo", Marlin é um peixe-palhaço – clown-fish - que se vê obrigado a criar sozinho seu filho Nemo que tem um defeito em uma de suas nadadeiras. Acometido por uma fobia de seu próprio habitat – o oceano – Marlin é um pai que vive sob a proteção dos arrecifes de corais, encarregando-se de impedir que seu filho Nemo lance-se aos riscos da vida submarina. Vigilante, atento e preocupado, o peixe-pai-palhaço contemporâneo revela-se em sua mais genuína incapacidade de supor que seu filho – que para ele é um descapacitado também - possa dele prescindir. Assim como em Rei Leão, aqui há um pai que não se furta à sua função de interditor, porém o faz sustentado na idéia de proteção e não de aposta de que ao filho cabe lançar-se às empresas que a vida impõe. Mais do que pela qualidade cinematográfica, este filme é um convite à reflexão sobre o que se passa em nossa cultura acima do nível do mar.

Neste sentido, o pai da realidade revela-se menos em seu não saber ou na incerteza típica da raça linguajeira, do que na sua impotência diante da tarefa hercúlea de preparar seu filho para o futuro. Busca assim, aquilo que lhe outorgue uma espécie de ISO 9000 paterno, qualificando-o para o exercício de sua função.

Estabelecendo uma parceria parental, papai e mamãe aliam-se a este ideal em que, enquanto um busca ultrapassar os muros do doméstico o outro veste o avental julgando encontrar no livro de receitas da ciência aquilo que o confere na posição de pai. Desta forma, esta domesticação paterna o transforma numa espécie de mensageiro familiar das certezas científicas onde encontra sustentação para seu ato. Em um dos muitos seminários onde Lacan discute a respeito do pai, destacamos um comentário que aparece no seminário sobre a transferência (1960/61) e que vale para esta reflexão. Do texto extrai-se que "a mãe é tanto mais castradora quando não está ocupada em castrar o pai"(p.288). Ou seja, não há necessidade de uma mãe castradora se não houver um pai.

"Que orientação você pode me dar quanto à minha conduta" solicitava um pai após breves 4 encontros com seu filho de 10 anos. Ou seja, observamos que o saber ser pai – assim como o de ser mãe – que se fundamenta na transmissão simbólica geracional ("de pai para filho desde...") precisa ceder espaço ao que a psicologia e a pedagogia ensinam sobre o adequado desempenho desta função junto à prole. Tanto uma forma quanto a outra indicam que a palavra do pai se sustenta numa referência terceira mas não se pode negar que operam de modo diverso. Há uma diferença radical entre o saber paterno que se transmite na incerteza mas que por isso mesmo mantém-se potente e aquele que para alcançar sua força precisa apoiar-se na certeza científica. Sustentar o ato paterno da palavra menos na impossibilidade do que na impotência é o que em nossa contemporaneidade se revela freqüente. Esta idéia novamente nos leva ao seminário sobre a transferência em que Lacan (1960/61) adverte que o pai contemporâneo se sustenta numa imagem de pai humilhado.

Sobre isso, Hurstel (1999) comenta que apesar dos valores pessoais, quando um homem hoje se torna pai sua função acaba se desvalorizando no discurso dos especialistas: "tão desvalorizante que, na verdade aparece como um discurso de exclusão dos pais em proveito do superpai-especialista. Diremos que, de fato, esses pais carentes do século XX são, em primeiro lugar, os pais excluídos pelos teóricos da educação" (p.119). Parece não haver o que não possa mais ser esclarecido. Aliás, é comum que os profissionais que de crianças se ocupam orientem os pais para nunca deixá-las sem resposta, a explicar-lhes os motivos de suas decisões e a jamais omitir informações. Nas famílias de imigrantes – hoje mais raras em nossa geografia tupiniquim -, é freqüente o uso da língua ou do dialeto de origem nas conversas entre os adultos que querem ‘preservar’ as crianças do tema versado. Assim, quando os pequenos ouvem esse ‘estrangeiro’ falando da boca dos seus pais, eles sabem que existem coisas que não podem saber. E, em muitos casos é isso que os leva às suas locubrações interrogativas.

 

E agora crianças?

Se a vida é o tempo que nos resta para respondermos às questões que nos tocaram, é justamente na infância que elas puderam se formular. O que tem se verificado algumas vezes porém, é que a questão que tem se imposto às crianças é de que não há pergunta que não possa ser respondida, basta para isso, ter um bom computador, uma internet de acesso rápido e pais que compareçam sempre às palestras ofertadas pelas escolas de seus filhos. O que sobra de tarefa a se fazer na infância parece ser não apenas a de construir teorias que possam responder à questão do ser, da ética e do desejo, mas a de reconhecer que nesta empreitada nem o Google pode ajudar, pois diante do ‘quem eu sou’, o ‘que devo ser’ e o ‘que me causa’, o pai não pode ser anônimo, mas sim, sinônimo de inscrição da falta estrutural, livrando o sujeito de uma deriva existencial frente ao impossível de poder gozar daquilo que deseja. Talvez esteja aí uma resposta frente à ‘por que um pai faz falta?’

"O que a criança demanda não é saber como foi procriada, mas como a vida lhe foi transmitida...o que ela interroga é o desejo dos pais. Poder interrogar esse desejo é o que coloca em jogo a transmissão da vida, isto é, coloca em jogo a filiação como instituição da vida no que ela tem de especificamente humano. Mas para isso, é necessário que a dimensão constitutiva do sujeito humano, a da palavra e a da dúvida4, do questionamento que a acompanha, não seja desconhecida daqueles que estatuem sobre a designação de pai de uma criança" (Hurstel, 1999, p. 143-4).

A partir destas considerações, retomar a questão do pai RSI significa indagar basicamente os seguintes aspectos: (1) em nome do quê o pai da realidade tem atuado enquanto agente da castração já que parece não ser mais sob a égide de um saber como meio de gozo; (2) em troca do quê a criança é levada a renunciar ao gozo do Outro materno – frustração - pelo pai simbólico. Trata-se ainda de uma renúncia?; e, (3) qual pai tem sido forjado no imaginário da infância, enquanto ideário do agente privador.

A isto acrescenta-se o comentário de Melman (1996) de que, enquanto significante, ‘criança’ é certamente um dos Nomes-do-Pai. Ainda seguindo seu raciocínio, se o significante paterno é concebido como um efeito produzido pelos nomes RSI é justamente por isso que nos permitimos ressituar sua função.

Abordar como se pretendeu aqui a questão do pai e a educação dos pequenos requer uma última justificativa para tal discussão. Simpatizante da afirmação de Marques (2002) de que "a vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda, e como recorda para contá-la", não resta dúvida de que o que se contou aqui foi um dia contado por outro contador. Se, no popular do dito, quem conta um conto aumenta um ponto vai ficando cada vez mais difícil saldar esta dívida, a não ser transmitindo-a.

Como marca do perdido da infância restou a seguinte inscrição paterna: "quem sabe faz, quem não sabe ensina" – que se cita na íntegra no exergo do artigo. Se, só se sabe ensinante aquele que transmite um não saber, talvez então, meu pai tenha sido um bom professor.

 

Referências bibliográficas:

HURSTEL, F. (1999).Novas Fronteiras da Paternidade. Campinas, Papirus.

___________. (1999) A Função paterna, questões de teoria ou: das leis à lei. In: ALTOÉ, S. Sujeito do Direito, Sujeito do Desejo – Direito e Psicanálise. Rio de Janeiro: Revinter, 103-129.

LACAN. J.(1938). Complexos Familiares. Lisboa: Assírio & Alvim, 1987.

_________. (1949). Mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio & Alvim, 1980.

_________. (1956/57) O Seminário livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.

_________. (1960/61). O Seminário livro 8: A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

LAJONQUIÈRE, L. (2001). A Infância e a educação nos tempos sombrios do narcisismo. In Anais do Colóquio Franco Brasileiro, Paris, Universidade de Paris XIII.

KUPFER, M. C. (2001). A transmissão do pai e suas conseqüências para a psicanálise de crianças. Op. cit.

MARQUES, G. G. (2002). Viver para contar. Rio de Janeiro, Record.

MELMAN, C. (1996). Estrutura Lacaniana das Psicoses. Porto Alegre, Artes Médicas.

 

 

1 De acordo com as idéias de F. Hurstel encontradas em Novas fronteiras da paternidade, Campinas, Papirus 1999.
2 Tema anteriormente abordado com maior precisão pela autora em Laço conjugal homossexual: família ou irmandade? Publicado na Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, nº 6, 2002.
3 Expressão creditada a Leandro de Lajonquière, a quem dirigimos sinceros agradecimentos pelas inquietantes interrogações produzidas a partir de suas não menos impetuosas aulas de pós-graduação na Faculdade de Educação (USP, 2003).
4 Grifo nosso.