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On-line ISBN 978-85-60944-06-4

An. 5 Col. LEPSI IP/FE-USP 2004

 

O corpo "educado" na educação do corpo: contribuições reichianas para a educação

 

 

Sara Quenzer Matthiesen

Docente do Departamento de Educação Física da UNESP-Rio Claro

 

 

Por mais curiosas e incomuns que pareçam, são inúmeras as referências de Wilhelm Reich à psicanálise e à educação, afinal, Reich foi – e não apenas em tese – um psicanalista atuante e um militante no campo da educação.

Como se os princípios clínicos e suas atividades de caráter didático não bastassem para comprovar tal afirmação, basta lembrarmos que Reich foi membro da Associação Psicanalítica Internacional desde muito cedo, atuou na Clínica Psicanalítica juntamente com Freud e escreveu vários textos pautados no referencial freudiano dos primeiros tempos inclusive tendo como foco questões voltadas à educação de crianças.

Mesmo que o próprio Reich (1984, p. 13) anuncie que sua "separação material da matriz" se deu por volta de 1928, é também fato que até 1934 não havia se afastado oficialmente da International Psychoanalytic Association.

O debruçar-se sobre a escrita, apresentação e aplicação de seus trabalhos a seus pares, foram apenas conseqüências do interesse desse, então, psicanalista, aceito como membro da Sociedade Psicanalítica de Viena aos 23 anos, ainda como estudante de Medicina.

Como médico formado a partir de 1922, membro da Sociedade Psicanalítica de Viena e empenhado em várias investigações de ordem clínica, aprofundou-se no campo da esquizofrenia e, em seus estudos de pós-graduação, nos meandros da neuropsiquiatria. Mas, foi a partir desse ano que passou a atuar na Clínica Psicanalítica de Viena, experiência que logo lhe revelou a necessidade de investigação dos limites impostos pela técnica terapêutica então utilizada. Não por outro motivo, contribuiu para a instalação do "Seminário de Técnica Psicanalítica de Viena" por ele presidido a partir de 1924. Esse, certamente, foi o estopim para o movimento que culminou na revelação de características reichianas que revelariam seu afastamento da psicanálise freudiana em prol do nascimento de sua teoria da economia sexual.

Mas, o que Reich teria a dizer à Educação? O que Reich teria a dizer aos educadores? Certamente sem esgotarmos as possibilidades, precisamos pontuar algumas de suas contribuições, a fim de incitarmos o leitor a um aprofundamento nesta temática.

Se ainda são poucos os trabalhos que se concentram na Educação, é visível o crescente entusiasmo pela escrita reichiana que desponta, sobretudo, em programas de pós-graduação, que se aventuram a inseri-lo nas discussões filosóficas, políticas, educacionais e psicológicas próprias de dissertações e teses acadêmicas.1 Assim, aos poucos, o viés clínico que predomina – ou predominava? – sobre a difusão do pensamento de Wilhelm Reich, particularmente no Brasil, vai cedendo espaço a questões tão relevantes quanto e que nos levam ao conhecimento mais abrangente daquilo que foi alvo das preocupações deste autor tão importante para a educação contemporânea.

Mas façamos isso a partir de um ponto tão caro a Reich. Façamos isso a partir de sua preocupação com a profilaxia das neuroses, tal qual se configura no âmbito do pensamento freudiano dos primeiros tempos, mas que terá, mais tarde, no âmbito da teoria reichiana, desdobramentos que, em última instância, nos remonta à prevenção dos encouraçamentos. Melhor dizendo, façamos isso a partir do referencial educacional presente tanto entre psicanalistas - dada a discussão reinante entre psicanálise e educação2 - como entre os educadores que atuam em diferentes espaços e cujas questões de ordem pedagógica norteiam as ações cotidianas.

Para tanto, lancemos um desafio. Façamos isso a partir do olhar sobre o corpo, ou melhor, do corpo da criança que se educa e que se pretende educada. O corpo que registra em si aquilo que o sujeito é. O corpo o qual, ainda que não seja o objeto primeiro da psicanálise, assim se transformara nos desdobramentos da teoria reichiana para a qual, certamente, se constitui em expressão nítida das interferências da Educação na formação do caráter da criança. Aliás, é preciso registrar que foi Reich quem inaugurou, no campo clínico, a importância do olhar sobre o corpo, revelando os benefícios terapêuticos de uma boa leitura corporal. Ou seja, para além do que se expressava por meio da linguagem humana na esfera clínica, Reich provocou o olhar, direcionando-o para a forma como isso ocorria, revelando como o indivíduo se expressava, em meio a censuras, distorções entre outras coisas manifestadas no corpo e pelo corpo.

"Como se deve educar as crianças?", perguntava-se Reich (1975a) nos anos 20, se é que isso é possível. A provocação proferida por argumentos do tipo já era objeto das preocupações freudianas. Aliás, não foi o próprio Freud que inseriu a educação entre as profissões impossíveis?3

Sem nos alongarmos neste particular, objeto de análise de outros pesquisadores,4 pensemos na nossa realidade de trabalho educacional. Ou seja, na sala de aula, diante inúmeros olhos atentos, o que pretende o professor? Qual sua intervenção possível? Reprodução pura e simples do conhecimento? Controle da turma, das crianças, de seus corpos? Qual o olhar deste professor sobre seus alunos?

Disciplina, palavra de ordem entre os profissionais da educação, de maneira geral; rendimento, objetivo final a ser alcançado; fracasso escolar, não só inadmissível, mas a ser abolido dentre as possibilidades educacionais.

Não obstante, são amplamente comuns frases "educativas" cujo efeito sobre a criança é certo. "Fique quieto"; "silêncio"; "pare" desespera-se o educador que em sua intenção educativa – muitas vezes estéril – procura arrebanhar as crianças como se fossem animais. "Sente-se direito"; "feche as pernas"; "endireite as costas", grita o professor o tempo todo.

Exposta a uma voz estridente combinada a uma feição que evidencia as angústias do educador, a criança parece sem alternativa. A única, talvez, seja a contenção, provocada quase que instantaneamente como defesa às expressões tão temíveis.

Sob a égide de "frustrações desnecessárias", próprias de um verdadeiro "bombardeio educativo", a criança atende ao aclamado em alto e bom som. Ela pára, não se move, na verdade, fica quase congelada, imobilizando-se para o não-movimento, cujas conseqüências foram tão bem apontadas por Reich (1975b). É ele quem faz questão de frisar o quanto se evidencia a indiferença, a timidez, a apreensão e a temeridade de crianças já consideradas como neuróticas cujo comportamento revela nada mais do que uma obediência e dependência doentia.

Ainda que a emersão do corpo como objeto de análise fosse algo latente na fase psicanalítica de Reich, não é difícil observar em alguns de seus textos da segunda metade dos anos 20 um olhar claro para o corpo, a partir das interferências da educação capaz de substituir o vigor motriz, a agilidade, a dinamicidade, próprios do mundo infantil, pela inibição da motricidade, da corrida, do salto, da agitação, em suma, da atividade muscular. A rigidez expressa em crianças de quatro, cinco ou seis anos, diz Reich (1975b), é a expressão mais triste da perda de seu "encanto natural". Tornam-se, em contrapartida, frias, acanhadas, insolentes, enfim, difíceis de educar ao passo que começam a se couraçar contra o mundo exterior, apoiando-se em ideais imaginários ao mesmo tempo em que se tornam introvertidas, neuróticas e sonhadoras.

Em outros tempos já havíamos destacado a facilidade de visualizarmos tais interferências por parte de alguns profissionais da educação, em especial da educação física, já que isso parece ser, no mínimo, um contra-senso. Ou seja, ao mesmo tempo em que trabalham com a educação, com o corpo e com o movimento, fazendo destes seus instrumentos de trabalho, os professores, de maneira geral, são orientados por objetivos educacionais e princípios escolares que muitas vezes, nada mais fazem, do que cercear o movimento, inibindo, pelo corpo, o psíquico, em prol da formação de alunos bem educados (MATTHIESEN, 2001a).

Levante a mão quem nunca se referiu a uma criança cobrando-lhe comportamentos educados ao dizer-lhes: comporte-se; tenha modos; sente-se direito; pare quieta; não encha! Isso faz de nós educadores?

Esta, certamente, é uma das grandes contribuições de Reich para a educação, já que enaltererá a necessidade das frustrações, ainda que nelas, evidencie a necessidade de limites. O habitual é observarmos que a grande maioria das intervenções educativas figura-se dentro daquilo que Reich (1975b) classifica como frustrações "desnecessárias", gerando, nada mais, do que conseqüências plenamente dispensáveis. Estão vinculadas, quase sempre, àquilo que denomina como uma "compulsão a educar" oriunda, por exemplo, do desejo insatisfeito de ter filhos ou da necessidade de corrigir a própria infância.

Mas, notem bem: ainda que necessárias, as frustrações devem, segundo as idéias de Reich (1975a), colocar um limite, um basta, ao "desejo primitivo" da criança, notavelmente orientado para a obtenção do prazer, lembrando que, ainda que parcialmente, a satisfação pulsional deva ser satisfeita.

Pelo contrário, nota-se, ainda que não seja regra, que as frustrações próprias do ambiente educacional de maneira geral sufocam severamente, e desde o início, qualquer possibilidade de manifestação da criança ou propiciam o alcance de seu pleno e irrestrito desenvolvimento. Assim, as medidas disciplinares de que lançam mão os educadores para atingir seus objetivos provocam, tanto em um como em outro caso, conseqüências, muitas vezes irreparáveis à formação do caráter infantil. Ou seja, em função da primeira ação - ou melhor, intenção - educativa, rígida e autoritária, é nítido o aparecimento de comportamentos que expressam a paralisação, a contenção e a inibição próprias da impossibilidade das crianças serem elas mesmas, provocando, entre outras coisas consideradas por Reich (1975a), dificuldades no processo sublimatório.

Ao contrário do que deveria ocorrer, diz ele, a frustração não se efetua gradualmente, progressivamente, mas é abrupta, excessiva e a criança nem ao menos entende o porquê. Condições, certamente, propícias para a formação de um caráter inibido.

Do outro lado, o extremo oposto. Educadores que sob a égide do laissez-faire, deixam as crianças ao léu, negligenciando seu papel de educador – leia-se, frustrador – em prol de um mimo excessivo que abomina toda e qualquer possibilidade de frustração. O resultado não poderia ser outro: crianças mimadas, quase que insuportáveis! A permissividade, necessária até certo ponto, torna-se, neste caso nociva, com resultados incontroláveis levando, fatalmente, a uma intervenção desesperada por parte dos educadores. Talvez ainda mais drástico do que no primeiro caso, os educadores mudam da "água para o vinho" e sem mais, nem menos, agem brutalmente com base em "processos corretivos" e manuais de auto-ajuda de como lidar com crianças mal-educadas. Tarde demais, mas não para a formação de crianças com dificuldades de auto-contenção, próprias da formação de um caráter impulsivo, diz Reich (1975).

Com base nas contribuições reichianas diríamos: nem tanto uma, nem tanto outra! Isto é, nem a total inibição pulsional, nem uma brutal frustração tardia, já que nem uma, nem outra demonstram, por parte dos educadores, a menor compreensão do significado de educar. Ao menos em teoria - faz ele questão de ressaltar ¾ "a educação deveria permitir aos instintos alcançar primeiro certo grau de desenvolvimento, para depois ¾ sempre num ambiente de boas relações com a criança ¾ introduzir paulatinamente as frustrações" (REICH, 1975a, p.60).

Para além da obviedade aparente nesta constatação reichiana não é demais frisarmos que no processo de formação do caráter infantil, considerando-se uma situação educativa ideal, tanto a frustração gradativa como a satisfação, devem ser parciais. Ou seja, frustrações são necessárias, reforça Reich, mas além de gradativas devem garantir espaço para as satisfações pulsionais.

Pois bem, mas qual é o limite, ou seja, como dosar o que é ou não necessário quando o assunto é a frustração?

Assentado em princípios da Psicanálise, Reich (1975a) é claro ao dizer que as frustrações necessárias são aquelas cujos objetivos não são outros que não controlar e canalizar os instintos da criança capazes de comprometer sua adaptação na sociedade. Servem, portanto, não apenas aos interesses da sociedade como também aos da própria criança, já que se permanecesse tal como quando nasceu, "primitiva", "egoísta", "preocupada apenas com a obtenção do prazer", certamente, mais tarde, sucumbiria "na luta pela vida". Saber que os limites existem, que as dificuldades fazem parte da vida, que a relação entre os pares é condição para a vida, apenas contribuiria para o seu "autodomínio" rapidamente revertido em seu próprio bem, diz ele (REICH, 1975a, p. 60).

Com base nesse registro Albertini (1994) ressalta que uma "boa" ou "má" educação na visão reichiana está diretamente vinculada ao grau de frustração e satisfação pulsionais existentes. Ou seja, é como se houvesse uma "medida certa", uma "dosagem ótima", por mais que pareça impossível tal quantificação. Assim, tanto o excesso quanto a falta de frustração trariam conseqüências estrondosas à formação do caráter infantil.

Por fim, é preciso que se diga que os erros e acertos em termos educacionais estão aí para serem conferidos e o corpo, quer se queira ou não, é um instrumento passível de visualização dos sucessos e insucessos da educação. Enfim ... por mais difícil que seja, cabe a nós, educarmos!

 

Referências bibliográficas:

ALBERTINI, P. (1992) Reich: história das idéias e formulações para a educação. São Paulo, SP: Agora.

CIFALI, M. & IMBERT, F. (1999). Freud e a Pedagogia. (Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral, trad.). São Paulo, SP: Loyola.

KUPFER, M. C. (1995). Freud e a educação: o mestre do impossível. 3. ed. São Paulo, SP: Scipione.

MATTHIESEN, S. Q. (2001). A educação em Wilhelm Reich: da psicanálise à pedagogia econômico-sexual. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Marília, SP.

______. (2001a). Criança, corpo e educação: fragmentos da obra de Wilhelm Reich. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 22 (2), 133-41.

______. (2002). Caminho das pedras: as publicações de Wilhelm Reich em português. Rio Claro, SP: Majograf.

REICH, W. (1975). The impulsive character. In: ________. Early Writting: vol. I. (Philip Schmitz, trad.). New York, NY: Farrar, Straus and Giroux.

________(1975a). Os pais como educadores: a compulsão a educar e suas causas. In: Conselho Central dos Jardins de Infância Socialistas de Berlim; SCHMIDT, V. & REICH, W. Elementos para uma pedagogia anti-autoritária . (J. C. Dias, Antônio Sousa, Antônio Ribeiro e Maria C. Torres, trad.). Porto, Portugal: Escorpião.

________ (1975b). Os jardins de infância na Rússia Soviética. In: ________. Elementos para uma pedagogia anti-autoritária. (J. C. Dias, Antônio Sousa, Antônio Ribeiro e Maria C. Torres, trad.). Porto, Portugal: Escorpião.

______.(1984). A função do orgasmo; problemas econômicos-sexuais da energia biológica. (Maria da Glória Novak, trad.). 10 ed. São Paulo, SP: Brasiliense.

 

 

1 Sobre o assunto ver: MATTHIESEN, S. Q. (2002). Caminho das pedras: as publicações de Wilhelm Reich em português. Rio Claro, SP: Majograf.
2 Sobre o assunto ver: MATTHIESEN, S. Q. (2001). A educação em Wilhelm Reich: da psicanálise à pedagogia econômico-sexual. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Marília, SP.
3 Cf. CIFALI, M. & IMBERT, F. (1999). Freud e a Pedagogia. (Maria Stela Gonçalves e Adail Ubirajara Sobral, trad.). São Paulo, SP: Loyola.
4 Ver, por exemplo: KUPFER, M. C. (1995). Freud e a educação: o mestre do impossível. 3. ed. São Paulo, SP: Scipione, 1995.